O Estado do Pará possui aproximadamente 8 milhões de habitantes, dos quais cerca de 5 milhões são católicos, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Em mais de 100 dos 144 municípios paraenses são realizadas procissões, com estrutura semelhante ao Círio de Nossa Senhora de Nazaré, que ocorre na capital, Belém, e por isso também são denominados círios. Estas informações fazem parte do estudo sobre os Círios do Pará, de autoria do mestre em Ciências da Religião e doutor em Educação, Antônio Paraense.
Nossa Senhora de Nazaré é venerada em 35 círios; 12 são dedicados a Nossa Senhora da Conceição; 60 homenageiam as diversas aparições da Virgem Maria, e seis procissões homenageiam santos, como São José, São Sebastião e Santo Antônio.
O estudioso explica que o ser humano tem a necessidade de transcender o cotidiano e se ligar (ou religar, sentido da palavra religião) ao divino. A formação do povo paraense, colonizado por católicos portugueses, deixou uma herança e tradição próprias a esse tipo de manifestação. Para o pesquisador, a aproximação do homem amazônico com a natureza possibilita ainda mais o desenvolvimento da religiosidade.
Antônio Paraense destaca que os círios proporcionam momentos de agregação, como o retorno de filhos da terra durante as festividades, para reencontrar suas origens.
Segundo estimativas da Secretaria de Estado de Turismo (Setur), o número de turistas que visitarão Belém no Círio deste ano vai superar 77 mil. Entre estes estão paraenses que retornarão a Belém para passar o Círio com suas famílias. “O paraense é um povo que tem muito orgulho de suas raízes e identidade, e o Círio é a oportunidade de ligação com essa identidade e retorno a essas raízes”, ressalta.
A festa do Círio de Nazaré, em Belém, conta Antônio Paraense, é uma das maiores manifestações religiosas do mundo realizadas em um só dia. Ele explica que em alguns países, como a Índia, há manifestações religiosas intensas, que se prolongam por vários dias, “mas aqui todas as manifestações se concentram no mesmo dia”.
Um elemento formador do Círio que está presente nas procissões, e chamou a atenção do estudioso, diz repeito aos pagadores de promessas. Para ele, esta é uma forma de agradecimento e ligação com o divino. “O que é forte é a necessidade de demonstrar ao outro, humildemente, que ele foi agraciado com um olhar do divino sobre ele, e o sacrifício demonstra a intensidade com que o pagador recebeu a graça. O importante é que mostre que, quanto maior for a graça, maior é a dívida e a forma do agradecimento”, afirma.
Graças e agradecimentos
Em Vigia de Nazaré, município do nordeste paraense, o pedreiro Rosivaldo Pereira Leal, 46 anos, todo ano acompanha o Círio carregando um saco de cimento na cabeça. O sacrifício foi a forma que Rosivaldo encontrou para agradecer pela construção de sua casa própria. “Enquanto vida eu tiver, eu irei agradecer a Nossa Senhora por esta graça”, conta o pedreiro.
“É como se houvessem pesos e medidas para medir a graça recebida. Se você observa uma pessoa segurando um objeto leve, como uma vela, você logo interpreta que a graça é menor da de alguém que caminha de joelhos durante toda a procissão”, explica o pesquisador.
Antonio Paraense também destaca que os Círios são acompanhados por grandes demonstrações de fé. Mas, ao mesmo tempo, trazem um lado alegre, profano, marca das festividades religiosas no Pará.
“O sacrifício, o agradecimento, sempre vêm acompanhado da alegria e da satisfação pelo ato, o que gera o lado profano da festividade. Além de tudo, é uma coisa muito nossa. Outro fato agregador das manifestações dos círios é a reunião de mais um elemento da cultura paraense, que é a aparelhagem. Sempre o dia anterior à procissão é marcado por festas de aparelhagens, uma forma de expressão típica do povo paraense. A festa não diminui a fé que o devoto tem na santa”, garante. Somado a este fato, vem ainda a culinária. “Os círios também agregam a alimentação do espírito e do corpo através da fartura de alimentos”, acrescenta.
Antônio Paraense, professor da Universidade do Estado do Pará (Uepa), sonha em poder acompanhar todas as procissões religiosas dos municípios paraenses. Está esperando apenas sua aposentadoria para concretizar esse desejo.
“Um dado que se repete muito nas procissões é a predominância do feminino como devoção maior. O fato de Nossa Senhora estar em 60 das procissões marca a presença da mulher e esse apego ao acolhimento, à maternidade e ao nascimento”, informa o pesquisador.
Peculiaridades
Entre o incomum, ele destaca os círios fluviais, como o realizado no município de Oriximiná, na região oeste, em homenagem a Santo Antônio, que ocorre há mais de meio século. Uma manifestação de fé e cultura dos católicos da região, que nos últimos anos também virou atração turística, por conta do espetáculo de luzes e cores que toma conta do Rio Trombetas em uma noite de agosto.
“Cada Círio tem peculiaridades e características próprias. É como se a comunidade quisesse que os fiéis se sentissem em casa. Em alguns municípios, como Primavera, no nordeste paraense, a realização do Círio nasceu de uma iniciativa da própria população. Uma das características do religioso é agregar e formar grupos, comunidades em torno de algo comum. Assim é a fé que marca o povo paraense. Ela agrega, fortalece, dá identidade e sentido de comunidade aos municípios”, finaliza o pesquisador.
Em Vigia está a origem dos Círios no Pará
O Círio da “Imagem milagrosa de Nossa Senhora de Nazaré”, no município de Vigia de Nazaré, é a primeira procissão da qual se tem conhecimento no Pará. O padre Jesuíta José Ferreira, em 1697, visitou Vigia e deixou o relato histórico que firmou a procissão como o primeiro círio do Estado: “A milagrosa imagem de Nossa Senhora de Nazaré… que de todas as partes se frequenta de romeiros que vão lá fazer suas romarias e novenas”.
A experiência do sagrado no Círio leva o homem a modificar sua vida, e produz uma experiência de fé, que se concretiza na realidade subjetiva do ser e se perpetua nas gerações, tornando-se uma intervenção da devoção mariana na identidade histórica e cultural do homem paraense, explica o padre Pedro Paulo Espírito Santo Queiroz em seu estudo “Círio de Nazaré: Identidade religiosa, histórica e cultural do povo paraense”.
Realizado sempre no segundo domingo de setembro, o Círio de Vigia de Nazaré traz todos os elementos que inspiraram as outras procissões registradas no Pará. É como uma arqueologia e um retorno às origens deste tipo de manifestação religiosa.
Entender como o homem amazônico se entrega integralmente a uma manifestação de fé motivou o estudo feito pelo padre. Mais do que um evento religioso que marca a sociedade paraense em diversos fatores, o aspecto sagrado que ocorre no Círio influenciou diversas gerações, mudou hábitos, tradições, reformulou a vida social do romeiro.
“Desenvolver o aspecto da origem e motivação do Círio é percorrer um caminho que nos leva a entender a identidade de um povo. Pois esta manifestação reúne, em si, principalmente os aspectos religiosos, históricos e culturais da identidade do paraense”, explica em seu artigo.
Vigia de Nazaré é banhado por um braço do Rio Amazonas, em frente à costa do Arquipélago do Marajó. É o centro pesqueiro de maior importância do Pará. Os símbolos da cultura pesqueira são muito presentes na procissão e nas homenagens prestadas a Nossa Senhora de Nazaré.
Comércio e evangelização
O município foi fundado seis dias antes de Belém, em 1616. Ali funcionaria um posto de fiscalização das embarcações que abasteciam Belém. A história do município é também a história da fé cristã do paraense.
Os padres da Ordem de Jesus desbravaram a região para converter e espalhar a fé cristã, catequizando os habitantes que, naquele tempo, ficavam em aldeias dos índios Tupinambás, que deram o nome de Uruitá.
Os jesuítas trouxeram para a região as devoções aos santos, como a Nossa Senhora de Nazaré, e utilizaram a mão de obra indígena e dos negros escravos para ajudar a construir monumentos e ajudar a transmitir a evangelização, como a Igreja de Pedra e a Igreja Matriz, também chamada Igreja dos Romeiros.
O escritor vigiense José Ildone, 75 anos, poeta e membro da cadeira 31 da Academia Paraense de Letras, com mais de 30 livros publicados, defende que a história do Círio de Vigia é anterior à chegada dos jesuítas naquele município, em 1730. Segundo ele, há registros históricos concretos relativos às viagens realizadas ainda no século XVII.
José Ildone reafirma a importância da crônica dos padres jesuítas da época na datação dos primeiros círios do município. A “Crônica dos Padres da Companhia de Jesus no Estado do Maranhão”, do padre João Felipe Bettendorf, foi editada na década de 90 do século passado, mas é do século XVII o registro mais antigo do trabalho dos jesuítas na região.
No documento, o padre faz duas referências à “Milagrosa Imagem da Virgem Nossa Senhora de Nazareth”. “Além da referência a uma imagem milagrosa, o documento comprova que o Círio, que neste ano se realiza em sua 320ª edição em Vigia, é o Círio do qual o documento histórico faz referência, e que já era venerada por romeiros que vinham de todas as partes fazer suas romarias e novenas”, afirma o escritor.
O milagre no rio e a promessa na romaria
O pescador Juraci Moraes Corrêa, 70 anos, foi vítima de um naufrágio e ficou durante três dias à deriva, com fome e sede, em cima de uma canoa com mais três amigos. “Foram três dias e três noites de dificuldades, e quando eu pensei em desistir pedi a Nossa Senhora de Nazaré para que ela mandasse socorro, pois nós já víamos a morte diante de nós”, narra Juraci Corrêa.
Após esse apelo, conta ele, apareceu uma embarcação, e Juraci prometeu que, enquanto tivesse saúde, acompanharia a procissão da forma como se encontrava na hora que o socorro chegou. Todos os anos ele acompanha a procissão realizando suas preces, de corpo molhado pelas águas do rio, e segurando um instrumento de navegação.
Em o “Círio de Nazaré: Identidade religiosa, histórica e cultural do povo paraense”, o padre Pedro Paulo Queiroz explica que a religiosidade do paraense é composta principalmente do cristianismo popular, resultado de um processo histórico, no qual o povo foi seu próprio doutrinador e responsável por sua fé.
Segundo ele, após a expulsão dos jesuítas do Brasil pelo Marquês de Pombal, a fé popular ficou desprovida de religiosos, e o povo acabou construindo sua fé. A construção dos símbolos, do tempo e do espaço, relata o padre em seu estudo, veio como consequência da experiência que aquela comunidade teve com Nossa Senhora.
“Neste sentido o Círio de Nazaré apresenta-se como a principal identidade religiosa do paraense, pois demonstra uma manifestação religiosa onde o povo é soberano em sua relação de fé com o sagrado, não havendo uma obrigação de uma mediação institucional. Portanto, no círio manifesta-se o cristianismo popular”, assegura o pesquisador.
Além do promesseiro pescador, molhado pelas águas do rio, e que muitas vezes traz as boias que salvaram ele e seus amigos, o Círio de Vigia também possui símbolos característicos de suas crenças que, de certa forma, influenciaram as demais procissões pelo Pará, como o carro de madeira puxado por boi ou búfalo, que segue à frente do cortejo, conduzindo um fogueteiro, que a cada quarteirão acende um foguete como anúncio da chegada da imagem.
Simbologia
A queima de fogos é outra característica da procissão no município. Segundo José Ildone, em Vigia se localizavam muitas pequenas fábricas de foguetes, cuja produção abastecia o Estado inteiro. O carro de fogos já fez parte do Círio de Nossa Senhora de Nazaré, em Belém, mas foi abolido por causa dos riscos aos romeiros.
Um símbolo presente na procissão de Vigia que não se repete em outros círios é a figura do “Anjo do Brasil”, uma menina ou menino montado em um cavalo, vestido de túnica verde e amarela, levando a Bandeira Nacional, o que representa a Proclamação da República Brasileira.
A sede municipal de Vigia, cheia de Igarapés, semelhante à cidade de Belém, motivou o maior e mais forte símbolo da procissão, a corda, que servia para puxar a berlinda quando atolava, e depois se transformou em instrumento de sacrifício para pagadores de promessas, e de agradecimento por graças recebidas.
“O círio de Vigia tem como peculiaridade o encontro entre a história e a origem da congregação das famílias ao redor da fé em Nossa Senhora. Em Vigia começou todo o processo da evangelização do nosso povo. A fé é a base da vida e o Círio faz com que a fé robusteça em todos “, explica o padre José Charles, pároco de Vigia de Nazaré.
Projeto Círio de Nossa Senhora 2017
A Secretaria de Estado de Comunicação (Secom) abre sua programação para a maior festa religiosa do povo paraense. Neste ano, acompanhando o Círio de Nazaré, todas as ações estarão no endereço www.cirio.pa.gov.br, repleto de conteúdos sobre a romaria e a cultura local, como a Ciriopedia – glossário com os principais termos da festividade; #MeuCirioeAssim – reunindo fotos e vídeos de seguidores, marcados com a TAG nas redes sociais; Notícias da Agência Pará; Agenda Cultural – com os principais eventos do Estado relacionados ao Círio; KD a Berlinda? – aplicativo da Prodepa (Empresa de Tecnologia da Informação e Comunicação do Estado do Pará) e vídeos.
A TAG #MeuCirioeAssim terá conteúdos produzidos pelos seguidores, que também serão enviados para transmissão da TV Cultura no dia do Círio de Nazaré. Os conteúdos digitais do endereço círios.pa.gov.br conterá informações indispensáveis para turistas, relacionadas às procissões, e a série de fatos sobre os números grandiosos do Círio de Nazaré, que, em outubro, movimenta positivamente a economia do Estado. Serão cinco vídeos.
Uma segunda série intitulada “Círios do Interior” contará as histórias de fé que movem romeiros do interior do Pará até a capital para acompanhar o Círio de Nazaré. A ideia é mostrar esse trajeto de devoção, renúncia e entrega, que conecta a realidade dessas pessoas em suas cidades e a festividade em Belém.
Para quem gosta de música, a Secom vai dispor de uma playlist no Spotify, com muita música paraense. A Secretaria também terá uma Sala de Imprensa, que disponibilizará à imprensa local e nacional um espaço para descanso, produção de conteúdo, carregamento e envio de materiais, com internet, água e alimentação nos dias da Trasladação (sábado, dia 7) e do Círio de Nazaré (domingo, dia 8).