Na Calha Norte paraense, região que abriga o maior mosaico de Unidades de Conservação e Terras Indígenas do mundo, o extrativismo comunitário da castanha-do-brasil revela uma oportunidade de futuro para a Floresta Amazônica.
Na lancha rápida, chamada de “voadeira” pelos ribeirinhos, o percurso entre a cidade paraense de Almeirim, às margens do Rio Amazonas, e a comunidade do Cafezal dura quase três horas. “Já para chegar aos castanhais, são mais três horas no barco a motor”, conta o agroextrativista Otacílio França Alves, cofundador da Associação dos Moradores Agroextrativistas das Comunidades (Asmacaru). Nesse percurso, os barcos atravessam o igarapé Marapi acoplados a batelões, canoas que servem para escoar a produção desde a área da floresta onde vicejam as castanheiras.
A Asmacaru foi instituída em 2001 com o objetivo de organizar a cadeia da castanha, gerando renda e ampliando as condições de comércio para as famílias. Na safra, de março a julho, os coletores permanecem na mata em busca da castanha-do-brasil (Bertholletia excelsa), semente de uma das espécies mais emblemáticas da Floresta Amazônica. A árvore é reconhecida por ser uma “pioneira de longa vida”: em solos de terra firme, onde ocorre, vive até 500 anos e pode atingir 50 metros de altura e 5 metros de diâmetro em seu tronco.
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Os grupos dividem-se nas “colocações”, como são denominadas as áreas ocupadas pelos castanhais. Cafezal conta com a concessão permanente para atividade de extração em sete delas, todas de uso dos 26 associados da Asmacaru. A área de ocorrência das castanheiras é grande e dispersa: a distância entre duas colocações pode chegar a mais de 10 km.
No extrativismo, um modelo para o futuro
Na Calha Norte paraense, região que abriga o maior mosaico de Unidades de Conservação e Terras Indígenas do mundo, o extrativismo comunitário da castanha revela uma oportunidade de futuro para a Amazônia: a exploração da floresta em pé permite, ao mesmo tempo, a preservação do meio ambiente e o desenvolvimento local.
Na região do Rio Paru, onde fica a comunidade do Cafezal, essa tem sido a lógica econômica desde os anos 1970. “Nossa comunidade já está na quinta geração de extrativistas”, conta Otacílio França Alves. “Não se separa a renda que a coleta gera do significado da atividade para as famílias. A gente não existe sem castanha. Ela está na nossa essência.”
O manejo das matas é o coração do modo de vida das populações ribeirinhas, acredita Renata Bergamo Caramez, gestora ambiental e doutora em Recursos Florestais pela Esalq/Universidade de São Paulo. “Na Amazônia, o modo de vida castanheiro representa uma existência integrada à floresta. A atividade econômica produz cultura e relação de identidade. Os saberes são transmitidos de pai para filho”, pondera.
Para a pesquisadora, o contraponto ao desmatamento não é a floresta intacta, mas o manejo correto para a exploração com conservação. “O que esses povos disponibilizam são nutrientes maravilhosos e fármacos cada vez mais necessários. Há uma tendência de aumento da demanda para preservar os produtos patrimoniais que representam também a cultura e a manutenção da floresta”, diz.
Dados do relatório “The State of the World’s Forests“, da FAO (Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura), de 2022, confirmam que a construção de economias inclusivas e resilientes será crucial no combate a crises iminentes, tais como as mudanças climáticas e a perda da biodiversidade. As ações precisam emergir de políticas de comando que criem subsídios para instrumentalizar as populações que detêm a capacidade de conviver de forma harmônica com a natureza e adquirir, por meio do associativismo, ferramentas para a formulação de estratégias para a autogestão de seu território.
A região do Rio Paru é um recorte exemplar da mensagem do relatório. “Os moradores dali são os protagonistas da conservação”, enfatiza Renata.
“A castanha organiza as relações pessoais e coletivas, isto é, os modos de vida. As pessoas não trabalham juntas apenas porque é economicamente mais vantajoso, mas porque existem elementos tradicionais, do viver ali, na comunidade, que dão sentido àquilo”.
Renata Bergamo Caramez, gestora ambiental e doutora em Recursos Florestais pela Esalq/USP
Em Almeirim, que possui cerca de 80% de seu território coberto por áreas protegidas, 41% da população se concentra na zona rural – são por volta de 150 comunidades. No Cafezal, a mobilização dos castanheiros abriu novas perspectivas. Otacílio, o primeiro agroextrativista do Paru a entrar na vida pública, foi eleito vereador da Câmara Municipal, ocupando a presidência da casa até 2022. “Quanto mais unidos na linha de frente, mais possibilidades de fortalecer as comunidades”, comenta.
Luta pela terra e biodiversidade
Os castanhais acessados para a prática do extrativismo sustentável se concentram abaixo da cachoeira do Panama, no entorno da Floresta Estadual do Paru. A Unidade de Conservação ocupa uma área de 3,6 milhões de hectares e serve de habitat para uma gama expressiva da fauna e flora amazônicas. Pesquisas do Museu Emílio Goeldi registraram, no local, 300 espécies de plantas, 295 de aves, 95 tipos de peixes e 55 de mamíferos.
A exploração predatória do território é constante. Em novembro de 2022, o SAD-Imazon apontou a Floresta Estadual do Paru como a quinta Unidade de Conservação mais desmatada da Amazônia em outubro do mesmo ano. A pressão da grilagem, do garimpo e da extração de madeira são alguns dos desafios da nova gestão do Indeflor-bio (Instituto de Desenvolvimento Florestal e da Biodiversidade do Estado do Pará), responsável pela área.
Fora dos limites da Unidade de Conservação, as áreas de coleta das comunidades estão no centro de um conflito histórico, que remete a José Júlio de Andrade, latifundiário que grilou cerca de 3 milhões de hectares de floresta no começo do século 20. Ao longo das décadas, a suposta titulação da terra foi passando de empresa para empresa.
Um estudo do projeto Amazônia 2030, publicado em janeiro, revelou a retomada de 386 mil hectares, cujo título ilegal pertencia à empresa Jari S/A. Mesmo registrado pelo governo do Pará em 2018, o território ainda não foi destinado às comunidades da região.
A situação segue instável. Dos sete castanhais do Cafezal, dois ainda contam com a anuência da empresa Jari. Os outros cinco possuem concessão estadual. “Desde que fizemos o inventário das colocações, com mapas e castanheiras enumeradas, conquistamos a posse por tempo indeterminado. O propósito sempre foi o de explorar a área para fins de extrativismo”, enfatiza Otacílio.
O instável mercado da castanha
Não há um levantamento preciso dos pontos de coleta da semente, mas estima-se que a Amazônia possua 417 milhões de castanheiras. “A frequência costuma variar de 0,005 a 37 árvores por hectare. A variação é atribuída a causas naturais, como clima e
solo, e às práticas tradicionais de povos indígenas do período pré-colombiano”, diz o biólogo Diego Oliveira Brandão, doutor pelo Programa de Pós-Graduação em Ciência do Sistema Terrestre do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais).
Na Amazônia, cerca de 300 mil pessoas dependem da cadeia produtiva da castanha para a sua subsistência. Quase 190 municípios promovem atividades comerciais com o recurso.
Os elos frouxos da cadeia se tornam visíveis desde a base de dados disponíveis. De acordo com os índices da Produção da Extração Vegetal e da Silvicultura do IBGE de 2021, Almeirim é o sétimo município no ranking de produção paraense, comercializando cerca de 210 toneladas de castanha; Óbidos, que ocupa a primeira posição, pesou 1.700 toneladas.
Para a pesquisadora Renata Caramez, tais números não condizem com a realidade local, uma vez que toda aquela região é de alta produtividade. “Isso é fato porque os castanhais são bastante condensados. Eles possuem muitos indivíduos por hectare. Como os registros só entram para a estatística quando a mercadoria chega na fábrica, os maiores centros de produção passam a ser os municípios com um maior número de agroindústrias, como Óbidos”, explica. Tudo ainda é muito informal.
Mesmo estando entre os três principais produtos extrativistas do país (IBGE 2021), a castanha tem uma participação instável no mercado. Seu preço oscila de ano a ano. Quase 99% da mercadoria que sai do Baixo Jari em direção ao Baixo Amazonas é transportada sem documento fiscal. Para agravar o quadro, a crise do clima tem gerado impactos significativos.
Os reflexos de uma grande seca na Amazônia em 2016 ainda surtem efeito no mercado. “A safra parou por causa do clima. O preço foi lá em cima. Hoje a lata de castanha custa R$ 30. Mas, em 2017, ela valia R$ 175”, enfatiza Cleberson Evandro Nascimento, proprietário da Só Castanhas Comércio e Serviços Ltda, agroindústria de Monte Dourado, distrito de Almeirim. “Em 2018, muitos pegaram empréstimo no banco, esperando novas altas. Só que, na hora de vender, os grandes players europeus excluíram a castanha do mix de produtos que importavam”, conta. Muitos trabalhadores não conseguiram saldar suas dívidas.
“2023 é um ano de crise. Teve fábricas que viraram o ano com 15 mil caixas de 20 kg em estoque. A exportação deu uma freada por diversos motivos, entre eles a guerra da Ucrânia”,
diz Nascimento.
“A Rússia era um grande importador de castanha, mas a União Europeia agora está dando prioridade para grãos. Então a produção caiu”, completa.
Segundo o IBGE, o Pará representa 18% da produção nacional de castanha-do-brasil, com 5,9 mil toneladas lançadas no mercado em 2021 – o terceiro maior produtor da semente no país. Cleberson questiona. “Se pensarmos em uma só calha de rio, o Vale do Jari é uma das regiões do país por onde sai uma quantidade representativa de castanha. Há outras que dão mais, só que o produto provém de vários pontos, e aqui é de um local específico”. A estimativa média, em uma safra regular, é de que circulem 80 mil sacas, ou 4 mil toneladas na região – 1,5 mil toneladas do Paru e Alto Paru. “Vale ressaltar que, pelo menos, 70% dos nossos castanhais ainda não foram explorados”, diz Nascimento.
Uma das lacunas da cadeia produtiva é a falta de incentivo para a agregação de valor ao produto, que de ponta a ponta circula como exclusivamente extrativista. Grande parte da castanha chega ao consumidor final no mesmo formato com que saiu da região de origem: in natura. A exceção, no Cafezal, são os 5% da safra anual que se destinam à fabricação de biscoitos com venda vinculada ao Programa Nacional de Alimentação Escolar.
Sem estrutura adequada para o beneficiamento da castanha, porém, nem mesmo a comunidade mais organizada do Paru tem autonomia para produzir derivados, entre os quais a farinha e o óleo usado como cosmético. Além disso, não há como manter estoque por período indeterminado. Se pudessem embalar a castanha a vácuo, para que durasse mais, os moradores poderiam ter o recurso o ano inteiro, seja para venda, seja para consumo doméstico.
Para o engenheiro ambiental e de recursos renováveis Ruan Cabral, da Agência de Defesa Agropecuária do Estado do Pará, subsídios fortaleceriam os elos da cadeia.
“Políticas de preço mínimo poderiam garantir um melhor retorno financeiro para as famílias extrativistas. Embora protegida por lei federal, a castanheira ainda é derrubada em grande quantidade para uso da madeira, e isso é sintoma da falta de incentivo com foco na extração do fruto”,
diz.
Paisagens dinâmicas
O calendário dos ribeirinhos do Cafezal costuma ter quatro meses de coleta da castanha, a partir de março. “Passamos de 10 a 12 dias acampados na floresta, com voltas para abastecer de mantimentos e rever a família”, diz Otacílio. Na entressafra, as famílias se dedicam à pesca e ao cultivo de pomares e lavouras temporárias.
Tudo o que cozinham enquanto estão na mata tem a castanha como base – tanto a amêndoa fresca quanto o leite extraído dela, com o qual fazem suco de cupuaçu e de cacau, mingau de açaí e de bacaba, e também o preparo da caça. A principal fonte de proteína é a carne de animais silvestres, assada em braseiros alimentados por cumbucas de ouriços da castanha, o fruto onde estão contidas as sementes.
Esta interação promove a limpeza dos castanhais e dispersão de sementes. Os castanheiros fazem parte da ecologia da floresta, considera Renata. “Só o fato de abrirem os ouriços significa que já estão espalhando sementes.” Ao longo das trilhas que percorrem com a castanha, há muito mais regeneração natural do que nas áreas de vegetação original. A queima dos ouriços transforma a matéria orgânica em carvões que, com o tempo, estimulam a fertilização do solo. “Isso vai virar terra preta. É preciso aprender com eles sobre como alterar paisagens, criando diversidade e esses solos férteis”, diz a cientista.
As Terras Pretas Antropogênicas, também conhecidas como Terras Pretas de Índio, são legados dos povos amazônicos. As manchas que a caracterizam estão espalhadas por todo o bioma.
Nas margens do Rio Paru, cerca de 20 castanhais adensados, a citar apenas os localizados nas zonas de acesso das comunidades, evidenciam o manejo das matas – uma herança de povos antigos, segundo Renata Caramez. “A regeneração natural das árvores não é capaz de formar castanhais com essas características. Os recursos da abundância são resultado de milênios de ocupação indígena.”
Efeitos da crise do clima
“O extrativismo é importante não apenas para a subsistência das famílias ribeirinhas. Preservar costumes e florestas ajuda no enfrentamento das mudanças climáticas e da perda da biodiversidade”,
afirma Aldemir Pereira da Cunha, presidente da Cooperativa dos Produtores e Produtoras Agroextrativistas do Baixo Amazonas (Coopabam), fundada em 2021.
Ainda de acordo com o documento publicado pela FAO, quase metade das florestas e áreas agrícolas do mundo (4,35 bilhões de hectares) são ocupadas por populações locais e povos indígenas. Estima-se que os pequenos proprietários de terra gerem uma renda bruta anual de até US$ 1,29 trilhão. Mas o agravamento da crise do clima, os baixos investimentos em ciência e desafios tecnológicos colocam a perspectiva extrativista em cheque.
“Antigamente, a água entrava em maio, ficava um mês e em junho já baixava. Agora, passamos três meses embaixo da água”, esclarece Otacílio. Em 2023, ainda não há data prevista para a realização do Festival da Castanha, no Cafezal, por conta das inundações. A situação de vulnerabilidade das povoações ribeirinhas é grande.
“As castanheiras estão sendo reduzidas”, afirma Diego Oliveira Brandão. Segundo o biólogo, mudanças no ciclo hidrológico causam secas e enchentes que aumentam a mortalidade da espécie. O desmatamento causa ainda mudança climática regional, que altera a fisiologia das castanheiras. “A floresta tem sido substituída por uma vegetação de dossel aberto do tipo savana, que não é típica da Amazônia e muito menos das regiões onde a castanheira está presente. Para existir a cadeia produtiva da castanha, é preciso existir a floresta”.
*O conteúdo foi publicado originalmente pela Mongabay, assinado por Carolina Pinheiro.