Policiais entre a cruz e a espada: nexo de causalidade (Parte 3)

Guilherme Nucci ensina que nexo causal é o vínculo estabelecido entre a conduta do agente e o resultado por ele gerado, com relevância suficiente para formar o fato típico”.

Na parte 2 dessa série de artigos falamos sobre o “excesso culposo e o uso da força na abordagem policial”i. Nesse artigo, em determinado momento, mencionamos o seguinte ensinamento de SOUZA:

Um movimento brusco, por exemplo, poderá levar o policial a se julgar amparado por uma descriminante putativa[5], ou mesmo por uma excludente de ilicitude[6]. E ainda que não estejam presentes quaisquer das situações postas, há de se considerar a possibilidade de eventual culpa concorrente, ainda que inadmissível a compensação de culpas[7].

Desse ensinamento e de uma indagação feita por SOUZA, concluímos que, em alguma medida, o abordado violento também é responsável pelas lesões causadas em sua própria pessoa, pois suas ações influenciam o comportamento do policial, de maneira a contribuir com reações que não seriam necessárias, por parte deste, caso os comandos legítimos houvessem sido obedecidos.

Essas considerações são necessárias para iniciarmos uma discussão sobre a responsabilidade do policial com o resultado da abordagem a um suposto infrator da lei que recebe voz de prisão por encontrar-se em flagrante delito. Nem sempre se pode responsabilizar o policial pelas lesões corporais ou morte resultantes de abordagem em infratores da lei que desobedecem ou resistem à prisão, haja vista que o policial usará a força suficiente e necessária para conter a injusta agressão ou para conduzi-lo preso. A força utilizada pelo policial deve ser proporcional. Assim sendo, a depender da força ou violência usada pelo infrator da lei, o policial usará força em maior ou menor proporção.

O uso da força pelo policial pode resultar em lesões corporais ou até mesmo em morte. Em ambos os casos os resultados não são desejados. O que o policial deseja é que o infrator da lei acate as ordens e se entregue pacificamente. Infelizmente, não é o que acontece costumeiramente, para não serem presos os agentes criminosos pegos em flagrante, ou por ordem judicial, resistem à prisão e agridem os policiais, tentando até matá-los.

Poderíamos dizer que nesses casos os policiais não teriam nenhum problema legal pois estariam amparados pela excludente de ilicitude, tema que abordamos nos artigos anteriores. Mas, não é bem assim. As circunstâncias nem sempre são tão claras e, por vezes, geram dúvidas na autoridade policial, ministério público e/ou juiz criminal.

A dúvida é: quem deu causa ao resultado lesão ou a morte do agente criminoso? Agiu ou não em legítima defesa ou estrito cumprimento do dever legal?

O art. 13 do Código Penal estabelece que “o resultado, de que depende a existência do crime, somente é imputável a quem lhe deu causa. Considera-se causa a ação ou omissão sem a qual o resultado não teria ocorrido“.

Foto: Erlon Rodrigues/Polícia Civil AM

Se analisarmos de forma superficial o referido artigo, podemos incorrer em erro e responsabilizar os policiais por todas as ações que resultaram em lesão corporal ou morte do infrator da lei que resistiu à prisão. Vejamos: se para efetuar uma prisão o policial usar a força para conter o agente e algemá-lo, e nesse momento o agente sofre uma torção no braço, podemos dizer que foi a força utilizada pelo policial que causou a lesão no preso. É um raciocínio correto. Se o policial atira contra o agente criminoso que resistiu a prisão atirando contra os policiais, vindo aquele a falecer, podemos concluir que a causa da morte do agente criminoso foi o tiro desferido pelo policial. Em ambos os exemplos citados, quem deu causa ao resultado lesão corporal ou morte foram os policiais. Assim sendo, todos “deveriam” ser responsabilizados criminalmente, processados e condenados. No entanto não seria justo, nem tão pouco razoável. Se fosse assim, ninguém mais iria querer ser policial. As polícias acabariam. Obviamente, o texto comporta interpretação.

Então, como deve ser interpretada essa norma da causalidade?

NUCCI ensina que “nexo causal”

“é o vínculo estabelecido entre a conduta do agente e o resultado por ele gerado, com relevância suficiente para formar o fato típico. Portanto, a relação de causalidade tem reflexos direto na tipicidade e, para reconhecê-la, é preciso definir causaii.

Causa, por sua vez, segundo NUCCI, é “toda ação ou omissão que é indispensável para a configuração do resultado concreto, por menor que seja seu grau de contribuição“.

Por esse conceito de “causa”, parece que o comerciante que vendeu uma arma de longo alcance (fuzil) para alguém que a usou para matar outra pessoa, um inimigo, que morava em um prédio a 400 metros do seu, também seria responsabilizado pelo homicídio, pois se não tivesse vendido o fuzil o homicídio não teria ocorrido. Se fosse assim, teriam que responsabilizar, também, o fabricante do fuzil, pois se a arma não tivesse sido fabricada ele não teria sido usado para matar alguém. Com certeza, não é essa a interpretação que se faz do nexo de causalidade. Não se pode regredir ao infinito. É imperioso que se utilize de critérios limitadores.

Nos casos mencionados, a figura do vendedor e do fabricante de armas não pode ser responsabilizada criminalmente, pois eles não sabiam que o comprador iria praticar crimes com essa arma, e, além do mais, fabricar e vender arma de fogo são atividades lícitas, desde que cumpra as exigências legais.

A teoria que cuida do nexo de causalidade é a teoria da equivalência dos antecedentes. Considerando que essa teoria é muito ampla e insegura, podendo causar injustiça, pois se fosse aplicada literalmente poderia regressar ao infinito, ou seja, responsabilizar quem inventou a arma de fogo (se estivesse vivo, obviamente), necessário se faz estabelecer limites.

A doutrina estabeleceu pelo menos cinco limites à teoria da equivalência dos antecedentes causais: 1) concausa superveniente relativamente independente (art. 13, §1º, do CP); 2) juízo de desaprovação da conduta (só responde por crime, resultado jurídico, quem cria riscos proibidos relevantes); 3) exigência de um resultado jurídico desvalioso (ofensa a o bem jurídico); 4) imputação objetiva do resultado; e 5) dimensão subjetiva, nos crimes dolosos.

Não vamos aqui discutir cada uma dessas limitações, pois a coluna não comportaria uma abordagem tão profunda. Mas, importante se faz, deixar claro que, com base nesses limites, “uma coisa é causar um resultado, outra bem distinta é imputar esse resultado ao agente“. Causar desvalor (desaprovar) e imputar são coisas distintas em Direito Penal. Em outras palavras, o policial até pode ter causado o resultado naturalístico, ou seja, a lesão corporal ou morte, mas, necessariamente, pode não ser responsabilizado criminalmente por esse resultado. Para ser responsabilizado criminalmente pelo resultado, necessário se faz, além da causalidade natural ou mecânica, verificar os juízos valorativos: 1) juízo de desaprovação da conduta (criação ou risco proibidos); 2) juízo de desaprovação do resultado jurídico (ofensa desvaliosa ao bem jurídico); 3) juízo de imputação objetiva do resultado. Depois de se verificar esses juízos valorativos, restará verificar se houve dolo ou culpa, ou seja, se o agente queria o resultado lesão corporal ou morte, ou se contribuiu com ele por imperícia, imprudência ou negligência.

Boa parte do que escrevemos até aqui tem cunho jurídico, talvez de difícil entendimento pelo público que não está familiarizado com a redação jurídico-penal. Utilizamos muitos termos jurídicos. Mas era necessário, pois queríamos chegar a esse ponto: juízo de desaprovação da conduta. Como mencionado anteriormente, o juízo de reprovação da conduta é um dos juízos valorativos verificados quando se analisa o nexo de causalidade, para que se possa responsabilizar criminalmente alguém em face de uma conduta que resultou em dano ao bem jurídico.

Com relação ao juízo de desaprovação da conduta, vimos que ele está relacionado a criação de riscos proibidos relevantes. Em regra, toda ação policial envolve riscos, alguns criados pelos policiais, outros criados pelo infrator da lei que foi abordado pelos policiais.

O juízo de desaprovação da conduta precisa atender a algumas regras básicas. As principais, segundo GOMESiii, são: 1) o sujeito só responde penalmente se, com sua conduta, criou ou incrementou um risco proibido relevante; e 2) não há desaprovação da conduta quando o risco criado é permitido ou tolerado ou aceito ou juridicamente não desvalorado. Com relação a esta última regra, GOMES dá 16 exemplos de situações de risco permitidos ou tolerados ou aceitos. No entanto, vamos nos ater a apenas duas:

  1. Não há desaprovação da conduta na “ação da vítima a próprio risco”, ou seja, quando a vítima, autorresponsável, se autocoloca em risco, praticando ela mesma a conduta perigosa;
  2. Se a vítima, depois de ferida, decide, por si só, não permitir qualquer tipo de ajuda.

Agora chegamos no ponto de partida deste artigo. Iniciamos ele afirmando que

o abordado violento também é responsável pelas lesões causadas em sua própria pessoa, pois suas ações influenciam o comportamento do policial, de maneira a contribuir com reações que não seriam necessárias, por parte deste, caso os comandos legítimos houvessem sido obedecidos.

Se o abordado desobedece a ordem legal ou resiste à prisão, praticando violência contra os policiais, com certeza cria uma situação de risco, pois exigirá que os policiais usem a força para fazer valer a ordem e para se protegerem de uma injusta agressão. Até quando o infrator da lei tenta fugir da polícia, resistindo à ordem de prisão, acaba por criar uma situação de risco, pois os policiais usarão da força para efetuar a prisão. E o uso da força acarreta, comumente, lesões corporais ou, a depender da violência empregada ao opor a ação da autoridade policial, em morte.

É muito importante que ao se analisar a conduta de um policial que age movido pelo dever legal, e dentro dos limites da lei, vem a causar lesão ou morte para conter as agressões do infrator da lei que se considere o fato desse agressor (infrator da lei abordado) tenha, possivelmente, criado a situação de risco.

As ações policiais, como já disse em outras ocasiões, são muito complexas e arriscadas. Não se pode fazer um juízo de valor sem que se conheça todos os detalhes da abordagem.

O próprio texto normativo e as teorias doutrinárias são de difícil compreensão, o que deixa os policiais, muitas vezes, à mercê da própria sorte quando usam a força para cumprir com seu dever legal. As inseguranças relacionadas ao ordenamento jurídico, a interpretação das normas e o entendimento dos tribunais acaba por causar um certo receio nos policiais, que acabam por terem dúvidas sobre o que fazer em certas ocorrências policiais de alta complexidade e risco, pois, a depender do resultado, as consequências penais podem ser drásticas para o policial.

i https://portalamazonia.com/seguranca-publica-e-cidadania/policiais-entre-a-cruz-e-a-espada-o-excesso-culposo-e-o-uso-da-forca-na-abordagem-policial-parte-2

ii NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Direito Penal. 9 ed. São Paulo – Editora Revista dos Tribunais. 2013.

iii GOMES, Luiz Flávio, MOLINA, Antônio Garcia-Pablos de. Direito Penal, v. 2, parte geral. São Paulo. Editora Revista dos Tribunais, 2007.

Sobre o autor

Sávio A. B. Lessa é Doutor em Ciência Política; pós graduado em Ciências Penais, Segurança Pública, Direitos Humanos e Direito Militar; Advogado Criminalista; Professor de Direito Penal e Processual Penal da FCR; Pesquisador do PROCAD/MIN. DEFESA; e Coronel da Reserva da PMRO.

*O conteúdo é de responsabilidade do colunista 

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