Policiais entre a cruz e a espada: o excesso culposo e o uso da força na abordagem policial (Parte 2)

O policial, para cumprir seu dever legal de prender quem estiver em flagrante delito, fará uso da força legítima para conter e prender o infrator que desobedeceu ou resistiu à prisão. Mas o uso da força pelos agentes de segurança só será permitido quando indispensável.

Dando continuidade à série de artigos sobre a insegurança jurídica para o exercício da missão policial, intitulada “POLICIAIS ENTRE A CRUZ E A ESPADA”, falaremos hoje sobre o excesso punível.

No artigo anterior, informamos que

“com base no inciso III do artigo 23 do Código Penal, que dispõe que “não há crime quando o agente pratica o fato em estrito cumprimento do dever legal“, é que os policiais não respondem criminalmente quando lesionam ou matam um infrator da lei que resistiu à prisão”.

Necessário se faz fazer uma observação: nenhum policial tem o dever de lesionar ou matar o infrator da lei. No Brasil não existe pena de morte – salvo nos crimes militares em tempo de guerra – nem de castigos físicos. Os policiais não são “carrascos”, ou seja, pessoa responsável por executar uma sentença de morte.

Quando os policiais lesionam ou matam alguém (letalidade policial) é porque esse alguém, infrator da lei penal, resistiu à prisão usando de violência contra o agente da lei. Infelizmente, ocorre que por vezes as lesões e mortes decorrentes da ação policial estão relacionadas ao despreparo de alguns policiais e aos excessos cometidos voluntariamente por eles. Mas, esse assunto, trataremos em outra ocasião.

O policial, para cumprir seu dever legal de prender quem estiver em flagrante delito, fará uso da força legítima para conter e prender o infrator que desobedeceu ou resistiu à prisão. Assim dispõe o artigo 284 do Código de Processo Penal, in verbis:

Art. 284. Não será permitido o emprego de força, salvo a indispensável no caso de resistência ou de tentativa de fuga do preso.

O Código de Processo Penal Militar acaba sendo mais abrangente, pois inclui as causas que justificam o emprego da força o crime de desobediência, in verbis:

Art. 234. O emprego de força só é permitido quando indispensável, no caso de desobediência, resistência ou tentativa de fuga. Se houver resistência da parte de terceiros, poderão ser usados os meios necessários para vencê-la ou para defesa do executor e auxiliares seus, inclusive a prisão do ofensor. De tudo se lavrará auto subscrito pelo executor e por duas testemunhas.

O uso da força pelos agentes de segurança só será permitido quando indispensável. Rogério Sanches ensina que

por vezes, a necessidade do emprego da força se mostrará inevitável, sobretudo nos dias de hoje, com a vertiginosa escalada da violência. Resistindo o sujeito à prisão, poderá o agente da autoridade, portanto, valer-se da força física para fazer cumprir a ordem judicial ou efetivar a prisão em flagrante. Não faria qualquer sentido que, ante uma reação daquele que será preso, ficasse a autoridade à mercê de tal comportamento, inibida de cumprir a ordem, em omissão capaz de acarretar inequívoco desassossego à sociedade”i.

Conforme já vimos no artigo anterior (parte 1), aquele que se opõe à ordem legal de autoridade, por meio de violência ou grave ameaça, incorre no crime de resistência, previsto no art. 329 do Código Penal. O policial, então, pode, e deve, quando indispensável, usar a força proporcional e razoável para prevalecer o comando judicial. O excesso, contudo, será punido.

Rogério Sanches ensina, ainda, que a Lei n° 13.060/14, em seu art. 2º, parágrafo único, inc. I, dispõe que não é legítimo o uso de arma de fogo “contra pessoa em fuga que esteja desarmada ou que não represente risco imediato de morte ou de lesão aos agentes de segurança pública ou a terceiros“.

Foto: Reprodução/Acervo SSP-AM

Quando falamos de uso proporcional e razoável da força, estamos nos referindo a força suficiente e necessária para conter o infrator da lei que reage à ação policial, seja desobedecendo ou resistindo usando de violência contra o agente policial. A força usada pelo policial será proporcional a resistência oferecida pelo infrator abordado pelo policial. A violência do abordado irá refletir no comportamento do policial.

O policial antes de usar a força, precisa identificar o objetivo a ser atingido. A ação atende aos limites considerados mínimos para que se torne justa e legal sua intervenção, a partir dos parâmetros julga a necessidade.

Ao afirmarmos que a força precisa ser suficiente e necessária para conter o infrator da lei que desobedece ou resiste, precisamos deixar claro que o policial deverá respeitar os princípios da necessidade e proporcionalidade.

O policial deve avaliar o momento exato de cessar a reação que foi gerada por injusta agressão, ou seja, a força legal deve ser proporcional à injusta agressão, o que passa dessa medida pode ser considerado abuso de autoridade. Essa avaliação deve seguir os princípios da necessidade e proporcionalidade.

De acordo com o princípio da necessidade, o policial antes de usar a força, precisa identificar o objetivo a ser atingido. A ação atende aos limites considerados mínimos para que se torne justa e legal sua intervenção, a partir dos parâmetros julga a necessidadeii.

Com relação ao princípio da proporcionalidade, o policial deve avaliar o momento exato de cessar a reação que foi gerada por injusta agressão, ou seja, a força legal deve ser proporcional à injusta agressão, o que passa dessa medida pode ser considerado abuso de autoridade.

SOUZA ensina que

Um movimento brusco, por exemplo, poderá levar o policial a se julgar amparado por uma descriminante putativa[5], ou mesmo por uma excludente de ilicitude[6]. E ainda que não estejam presentes quaisquer das situações postas, há de se considerar a possibilidade de eventual culpa concorrente, ainda que inadmissível a compensação de culpas[7]iii.

Importante enfatizar que a proporcionalidade da força usada para conter o abordado depende da força usada por este para opor-se a ação da autoridade policial.

Sendo assim, respondendo a uma indagação feita por SOUZA, poderíamos afirmar que, em alguma medida, o abordado violento também é responsável pelas lesões causadas em sua própria pessoa, pois suas ações influenciam o comportamento do policial, de maneira a contribuir com reações que não seriam necessárias, por parte deste, caso os comandos legítimos houvessem sido obedecidos.

Voltando ao excesso punível, o Código Penal, em seu artigo 23, parágrafo único, estabelece que o agente que, nos casos de excludente de ilicitude, praticar excessos responderá pelo excesso doloso ou culposo.

Segundo NUCCIiv, os excessos, doloso e culposo, são:

a) excesso doloso: ocorre quando o agente consciente e propositadamente causa ao agressor, ao se defender, maior lesão do que seria necessário para repelir o ataque. Atua, muitas vezes, movido pelo ódio, pela vingança, pelo rancor, pela perversidade, pela cólera, entre outros motivos semelhantes.

O excesso doloso, uma vez reconhecido, elimina a possibilidade de se reconhecer a excludente de ilicitude, fazendo com que o autor da defesa exagerada responda pelo resultado típico que provocou no agressor.

b ) excesso culposo: é o exagero decorrente da falta do dever de cuidado objetivo ao repelir a agressão. Trata-se do erro de cálculo, empregando maior violência do que era necessário para garantir a defesa. Se presente o excesso, o agente responde pelo resultado típico provocado a título de culpa.

Avaliar o momento exato de cessar a reação que foi gerada por injusta agressão não é tarefa fácil, principalmente quando se está em uma ocorrência em que houve resistência com emprego de violência contra o policial. A depender da gravidade da violência empregada na resistência, das lesões sofridas pelo policial ou por quem o auxilia, misturada ao cheiro de pólvora e sangue, e o vislumbre dos olhos da morte, a avaliação do momento exato de cassar a reação pode ficar comprometida. Ele pode “calcular errado” o quantum de força ou violência empregada para se defender.

Fazer esse “cálculo” estando sob condições anormais de temperatura e pressão não é tarefa fácil. É preciso ter muito sangue frio, controle emocional, preparo profissional e experiência. Caso contrário, pode ocorrer eventuais excessos na legítima defesa ou no estrito cumprimento do dever legal.

Por isso que afirmamos: a carreira policial não é para qualquer um. O perfil profissiográfica para a carreira policial deve ser rigoroso, como deve ser igualmente rigoroso o processo seletivo para contratação de policiais.

Se o policial, diante de uma situação de flagrante delito não age, incorrerá em crime de desobediência; se age, e o infrator ou abordado resiste, corre sério risco de calcular errado o uso da força e responder pelo excesso praticado.

Essa é a vida do policial, sempre entre a cruz e a espada. Ele não tem o direito de errar, mesmo pertencendo a uma sociedade imperfeita e a um Estado muitas vezes omisso e negligente.

Até o próximo artigo. O assunto ainda não acabou.

Referências

i CUNHA, Rogério Sanches. Código de Processo Penal e Lei de Execução Penal comentados. 4ª ed. – Salvador: JusPodium, 2020. p. 878.

ii https://monografias.brasilescola.uol.com.br/sociologia/uso-forca-policia-militar-seus-niveis-utilizacao.htm#indice_7

iii SOUZA, Kel Lucio Nascimento de. A abordagem policial e o comportamento do abordado. Uso legítimo da força em abordagem policial – Jus.com.br | Jus Navigandi

iv NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Direito Penal. 16. ed. – Rio de Janeiro: Forense, 2020POLICIAIS ENTRE A CRUZ E A ESPADA (parte 2): o excesso culposo e o uso da força na abordagem policial.

Sobre o autor

Sávio A. B. Lessa é Doutor em Ciência Política; pós graduado em Ciências Penais, Segurança Pública, Direitos Humanos e Direito Militar; Advogado Criminalista; Professor de Direito Penal e Processual Penal da FCR; Pesquisador do PROCAD/MIN. DEFESA; e Coronel da Reserva da PMRO.

*O conteúdo é de responsabilidade do colunista 

Publicidade
Publicidade

Relacionadas:

Mais acessadas:

Povo Juma luta para sobreviver em meio a invasões e desmatamento no sul do Amazonas

Avanço do desmatamento na região preocupa indígenas Juma, que quase foram exterminados em 1964.

Leia também

Publicidade