Os policiais nem sempre se sentem seguros para realizar seu trabalho, pois o ordenamento jurídico e jurisprudência não pacificada sobre as ações policiais os deixam vulneráveis, sujeitos a responderem criminalmente por cumprirem com seu dever.
No dia 23 de março último passado publicamos o artigo Os policiais precisam de segurança para fazerem a segurança da sociedade. Nele falamos sobre a falta de segurança que sofrem os policiais, pois não tem segurança para gozar dos direitos fundamentais previstos na Constituição Federal. Entre as inúmeras inseguranças pelas quais passam os policiais brasileiros, destacamos a falta de segurança jurídica para realizarem seus trabalhos.
José Afonso da Silvai ensina que
“a segurança jurídica consiste no ‘conjunto de condições que tornam possível às pessoas o conhecimento antecipado e reflexivo das consequências diretas de seus atos e de seus fatos à luz da liberdade reconhecida‘. Uma importante condição da segurança jurídica está na relativa certeza que os indivíduos têm de que as relações realizadas sob o império de uma norma devem perdurar ainda quando tal norma seja substituída” (SILVA, J., 2006, p. 133).
Infelizmente, os policiais nem sempre se sentem seguros para realizar seu trabalho, pois o ordenamento jurídico e jurisprudência não pacificada sobre as ações policiais os deixam vulneráveis, sujeitos a responderem criminalmente por cumprirem com seu dever. Muitos são investigados, indiciados, denunciados, processados, condenados e até perdem o emprego por algo que foram obrigados a fazer na defesa do Estado e da sociedade.
Pela natureza do seu trabalho, o policial não pode recusar missão e a executa em nome do Estado, que deve dar a eles a segurança jurídica necessária para que esse profissional possa desempenhar suas funções, especialmente nos casos em que há a ruptura da ordem e a periclitação da vida. O Estado que o obriga a exercer a atividade de risco, precisa também assumir as responsabilidades da ação em vez de abandonar o seu agente à própria sortei.
Na ocasião da publicação desse artigo, comprometi-me a voltar a tratar desse tema, pois ele é muito complexo e delicado. Chegou a hora de tratarmos mais detalhadamente sobre esse assunto.
O art. 301 do Código de Processo Penal estabelece que “qualquer do povo poderá e as autoridades policiais e seus agentes deverão prender quem quer que seja encontrado em flagrante delito“.
As situações de flagrante deleito são as previstas no art. 302 do CPP:
Art. 302. Considera-se em flagrante delito quem:
I – está cometendo a infração penal;
III – é perseguido, logo após, pela autoridade, pelo ofendido ou por qualquer pessoa, em situação que faça presumir ser autor da infração;
IV – é encontrado, logo depois, com instrumentos, armas, objetos ou papéis que façam presumir ser ele autor da infração.
Os policiais deparando-se com quaisquer dessas situações que caracterizam o flagrante delito deverão agir, ou seja, efetuar a prisão em flagrante.
O dever de agir não está previsto apenas no Código de Processo Penal, mas também nos Estatutos das Categorias Policiais (Militar ou Civil).
Trazendo para o Estado de Rondônia, o Estatuto dos Policiais Militares, em seu art. 32, dispõe que é dever do policial militar “I – a dedicação integral ao serviço policial-militar e a fidelidade à instituição a que pertencer” e “V – o rigoroso cumprimento das obrigações e ordens”.
Em seu artigo 34, o Estatuto dispõe que o policial deverá fazer o seguinte juramento solene:
“Ao ingressar na Polícia Militar do Assessoria de Legislação PM/RO Consolidação pela Assessoria de Legislação Estado de Rondônia, prometo regular a minha conduta pelos preceitos da moral, cumprir rigorosamente as ordens das autoridades a que estiver subordinado, e dedicar-me, inteiramente ao serviço policial-militar, à manutenção da ordem pública e à segurança da comunidade, mesmo com o risco da própria via“.
Mesmo não estando de serviço os policiais militares os deveres persistem e os policiais deverão agir diante de uma ocorrência policial:
Art. 50. (…)
§ 9º O Policial-Militar que não estando de serviço e se envolver no atendimento de ocorrência policial-militar ou de bombeiro-militar, será considerado como se de serviço estivesse para todos os efeitos legais.
Esses deveres de agir estão previstos na maioria dos Estatutos dos Policiais Militares do Brasil e de muitos Policiais Civis Brasil afora.
Conforme já vimos, os policiais deverão prender quem quer que seja encontrado em flagrante delito. É seu dever funcional. Ocorre, no entanto, que toda prisão em flagrante envolve riscos, tanto para os policiais quanto para as vítimas e para os agentes criminosos. Os policiais estão acostumados em lidar com o risco de morte, até fazem um juramento de cumprirem com seu dever “mesmo com o risco da própria vida”. Para minimizar esses riscos os policiais devem agir respeitando os protocolos de segurança e estarem devidamente preparados técnica, física e psicologicamente. Devem, também, fazer uso de equipamentos de proteção individual e supremacia de forças.
Todo esse preparo também minimizará ou até eliminará os riscos das vítimas. No entanto, com relação aos agentes do crime, nem sempre o cumprimento de todos esses protocolos de segurança será suficiente para eliminar os riscos e efetuar a prisão do criminoso.
Lamentavelmente, é comum que infratores da Lei reajam à ordem de prisão dada pelos policiais: alguns fogem e outros usam de violência ou grave ameaça para evitar a prisão em flagrante. Em quaisquer desses casos, os policiais deverão cumprir sua missão prendendo quem estiver em flagrante de crime. E para isso, farão uso da força suficiente e necessária para prenderem o infratos da lei. O resultado dessa ação pode acarretar sérias lesões corporais ou até a mesmo a morte dos atores envolvidos na ocorrência, ou seja, de policiais ou infratores da lei.
Ninguém deseja um resultado desses, mas é comum acontecer. Muito disso se deve a “cultura do desacato, desobediência e resistência” que assola este país. Muitos não respeitam às autoridades constituídas e se negam a cumprir suas ordens, preferindo, fugir ou até mesmo agir com violência contra os policiais.
Lembremos que “lesão corporal” e “morte” são tipos penais previstos no Código Penal Brasileiro:
Homicídio simples
Art. 121. Matar alguém:
Pena – reclusão, de seis a vinte anos.
Caso de diminuição de pena
§ 1º Se o agente comete o crime impelido por motivo de relevante valor social ou moral, ou sob o domínio de violenta emoção, logo em seguida a injusta provocação da vítima, o juiz pode reduzir a pena de um sexto a um terço.
Homicídio qualificado
§ 2° Se o homicídio é cometido:
I – mediante paga ou promessa de recompensa, ou por outro motivo torpe;
II – por motivo fútil;
III – com emprego de veneno, fogo, explosivo, asfixia, tortura ou outro meio insidioso ou cruel, ou de que possa resultar perigo comum;
IV – à traição, de emboscada, ou mediante dissimulação ou outro recurso que dificulte ou torne impossível a defesa do ofendido;
V – para assegurar a execução, a ocultação, a impunidade ou vantagem de outro crime:
Pena – reclusão, de doze a trinta anos.
Feminicídio
VI – contra a mulher por razões da condição de sexo feminino:
VII – contra autoridade ou agente descrito nos arts. 142 e 144 da Constituição Federal, integrantes do sistema prisional e da Força Nacional de Segurança Pública, no exercício da função ou em decorrência dela, ou contra seu cônjuge, companheiro ou parente consanguíneo até terceiro grau, em razão dessa condição:
VIII – com emprego de arma de fogo de uso restrito ou proibido:
Pena – reclusão, de doze a trinta anos.
§ 2o-A Considera-se que há razões de condição de sexo feminino quando o crime envolve:
I – violência doméstica e familiar;
II – menosprezo ou discriminação à condição de mulher.
Homicídio culposo
§ 3º Se o homicídio é culposo:
Pena – detenção, de um a três anos.
(…)
Lesão corporal
Art. 129. Ofender a integridade corporal ou a saúde de outrem:
Pena – detenção, de três meses a um ano.
Lesão corporal de natureza grave
§ 1º Se resulta:
I – Incapacidade para as ocupações habituais, por mais de trinta dias;
II – perigo de vida;
III – debilidade permanente de membro, sentido ou função;
IV – aceleração de parto:
Pena – reclusão, de um a cinco anos.
§ 2° Se resulta:
I – Incapacidade permanente para o trabalho;
II – enfermidade incurável;
III perda ou inutilização do membro, sentido ou função;
IV – deformidade permanente;
V – aborto:
Pena – reclusão, de dois a oito anos.
Lesão corporal seguida de morte
§ 3° Se resulta morte e as circunstâncias evidenciam que o agente não quis o resultado, nem assumiu o risco de produzi-lo:
Pena – reclusão, de quatro a doze anos.
Vejam que se um policial praticar usar a força para prender um infrator da lei que resistiu à prisão e acabe com o infrator lesionado ou morto o policial terá praticado um fato típico penal, podendo responder criminalmente pela prática desses tipos penais. Ocorre, no entanto, que a mesma lei que prevê que as condutas que resultam em lesão corporal ou morte (tipos penais) necessariamente não correspondem à crimes, pois não basta que se pratique um fato típico penal para que uma conduta seja considerada criminosa. Para ser crime a conduta precisa, além de ser típica, ser antijurídica e culpável.
Sobre conduta típica, podemos, de forma simples, afirmar que seja toda conduta descrita como infração penal na legislação criminal, ou seja, são as previstas nas leis penais, ex vi, art. 121(Matar alguém) e art. 129 (Ofender a integridade corporal ou a saúde de outrem).
Como dito anteriormente, não basta que se pratique um fato típico para que exista um crime. Necessário se faz que essa conduta seja também antijurídica e culpável. A antijuridicidade ou ilicitude é o fato típico que é contrário ao ordenamento jurídico. Em regra, todo fato típico é antijurídico, no entanto, existem circunstâncias que excluem a antijuridicidade. São as chamadas excludentes de ilicitude.
Essas excludentes são um mecanismo previsto no Código Penal que estabelece a possibilidade de uma pessoa praticar uma ilicitude sem que se considere isso um crime. Esse mecanismo permite que uma pessoa pratique uma ação tipificada como crime, mas não responderá criminalmente por essa conduta, pois o legislador disse que, se praticada nos seguintes casos não será crime:
Exclusão de ilicitude
Art. 23 – Não há crime quando o agente pratica o fato:
I – em estado de necessidade;
II – em legítima defesa;
III – em estrito cumprimento de dever legal ou no exercício regular de direito.
Com base no inciso III do artigo 23 do Código Penal, que dispõe que “não há crime quando o agente pratica o fato em estrito cumprimento do dever legal“, é que os policiais não respondem criminalmente quando lesionam ou matam um infrator da lei que resistiu à prisão.
Ocorre, no entanto, que as coisas não são tão simples. O mesmo artigo que trata das excludentes de ilicitude, dispõe, em seu parágrafo único, sobre o excesso punível, estabelecendo que “O agente, em qualquer das hipóteses deste artigo, responderá pelo excesso doloso ou culposo“.
Daremos continuidade a esse assunto no próximo artigo desta coluna. Esse tema, “os policiais entre a cruz e a espada”, gerará vários artigos. No próximo trataremos dos excessos puníveis.
Não percam o próximo artigo e os conflitos que envolve esse assunto.
i SILVA, José Afonso da. Comentário Contextual à Constituição. São Paulo: Malheiros, 2006.
i SOARES, Dirceu Cardoso. O policial militar e a segurança jurídica. https://monitormercantil.com.br/o-policial-militar-e-a-seguran-a-jur-dica/
Sobre o autor
Sávio A. B. Lessa é Doutor em Ciência Política; pós graduado em Ciências Penais, Segurança Pública, Direitos Humanos e Direito Militar; Advogado Criminalista; Professor de Direito Penal e Processual Penal da FCR; Pesquisador do PROCAD/MIN. DEFESA; e Coronel da Reserva da PMRO.
*O conteúdo é de responsabilidade do colunista