O teu direito de ir e vir acaba quando esbarra no meu direito à vida

Em razão da pandemia do COVID-19, os gestores públicos têm discutido muitas medidas para combater a circulação do vírus para reduzir o contágio e as mortes

O tema de hoje foi resultado de conversas com os colegas, Prof. Dr. Sérgio Willian e a Profa. Dra. Andréia Alves de Almeida. Em momentos distintos, ambos me instigaram a escrever, e sugeriram referências, sobre as medidas de restrições à liberdade de locomoção para combater a pandemia do COVID-19. Um tema bastante atual e polêmico, com reflexo direto na saúde pública e na segurança pública.

No último ano, em razão da pandemia do COVID-19, os gestores públicos têm discutido muitas medidas para combater a circulação do vírus para reduzir o contágio e as mortes.

Na maioria dos estados brasileiros os hospitais estão com lotação de 100%. Faltam leitos de UTI, médicos, oxigênio medicinal, kit intubação etc. A rede de saúde está vivendo um verdadeiro caos. O número de contágios e mortes cresceu assustadoramente. 

Diante desse cenário caótico, onde já atingimos mais de 370.000 mortes, retoma-se a discussão sobre lockdown, toque de recolher, quarentena e isolamento social, entre outras restrições à liberdade de locomoção, todas visando conter a circulação do vírus. O Presidente da República, em um de seus vários pronunciamentos, em sua maioria, lamentavelmente, minimizando a gravidade da pandemia, comparou essas medidas àquelas tomadas em estado de defesa ou de sítio, alegando que só ele, o presidente, teria poderes para isso.

Foto: Rovena Rosa / Agência Brasil

A Constituição Federal, em seu art. 136, estabelece que o estado de defesa é utilizado para “preservar ou prontamente restabelecer, em locais restritos e determinados, a ordem pública ou a paz social ameaçadas por grave e iminente instabilidade institucional ou atingidas por calamidades de grandes proporções na natureza”.

O estado de sítio, por sua vez, ocorre, segundo a Constituição Federal, em seu art. 137, nos casos de: I – comoção grave de repercussão nacional ou ocorrência de fatos que comprovem a ineficácia de medida tomada durante o estado de defesa; e II – declaração de estado de guerra ou resposta a agressão armada estrangeira.

A redação de ambos os dispositivos deixa claro que a pandemia não seria uma causa que justificasse o emprego dessas medidas, haja vista que não tem relação com “instabilidade institucional ou atingidas por calamidades de grandes proporções na natureza”; nem tão pouco com “estado de guerra ou resposta a agressão armada estrangeira”. Talvez, se forçássemos um pouco a barra, pudéssemos enquadrar em “comoção de grave repercussão nacional”, mas não seria bem o caso. 

Se por um lado a Carta Magna, em seu art. 5º, XV, garante o direito de locomoção, estabelecendo que:

é livre a locomoção no território nacional em tempo de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, nele entrar, permanecer ou dele sair com seus bens

Ela também estabelece que essa liberdade pode ser limitada: prisão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de Juiz (art. 5º, LXI); prisão civil (art. 5º, LXVII); durante vigência de estado de sítio, para determinar a permanência da população em determinada localidade, única situação na qual há permissão expressa de restrição generalizada deste direito (art. 139).

Como podemos ver, nenhum direito é absoluto, mesmo aqueles garantidos pela Constituição Federal. Esta protege, além da liberdade, outros bens jurídicos, tais como a saúde e a vida, devidamente protegido em seu art. 196: 

 “A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”.

A Constituição Federal protege a liberdade de locomoção, mas também protege a vida e saúde. Quando esses direitos fundamentais entram em rota de colisão, está-se diante de um conflito aparente de normas ou princípios.

Recorremos a Canotilho (1999, p. 1.191) para explicar esse fenômeno. Segundo ele:

uma colisão autêntica de um direito fundamental ocorre quando o exercício de um direito fundamental por parte do seu titular colide com o exercício do direito fundamental por parte do outro titulari.

O que fazer diante desse conflito aparente entre os princípios da liberdade de locomoção e do direito à vida e saúde? Nesse caso, utiliza-se a regra da proporcionalidade, que consiste na utilização de um juízo de ponderação, no qual se procura encontrar e justificar o resultado mais coerente com os conjuntos de valores constitucionais existentes.

Ferreira e Moribeii lembram-nos de um julgamento paradigmático, nesse sentido, o 

Caso Ellwanger“, em que o Ministro Gilmar Mendes explica no seu voto que: “[…] o princípio da proporcionalidade alcança as denominadas colisões de bens, valores ou princípios constitucionais. Nesse contexto, as exigências do princípio da proporcionalidade representam um método geral para a solução de conflitos” 

(HC 82.424, j. 17.09.03). 

Foto: Marcelo Seabra/AgênciaPará

Há pouco falamos que a liberdade pode ser limitada pela prisão em flagrante delito (art. 5º, LXI, CF). Pois bem, entraremos no campo dos delitos.

Carolina Fidalgo, citada por Sérgio Rodasiii, afirma que “a Lei 13.979/2020, que reconheceu a situação de emergência na saúde pública, também mitigou tais direitos ao autorizar a adoção de medidas como quarentena, isolamento e restrição de locomoção”. Segundo a ilustre professora:

“A situação de emergência em questão impõe a adoção de medidas adequadas e necessárias para conter o espalhamento da doença e colapso das redes pública e privada de saúde, inclusive com restrições justificadas ao direito de ir e vir. Se é discutível a necessidade de prévia decretação de estado de sítio ou de defesa, é certo que tais medidas devem ser fundamentadas em lei (e aí se pode discutir se a Lei 13.979/2020 já é suficiente para isso) e devem ser justificadas diante da situação específica de cada município”

A Lei 13.979/20 previu, em seu art. 3º, o isolamento e outras recomendações sanitárias de restrições à liberdade de locomoção:

Art. 3º Para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional de que trata esta Lei, as autoridades poderão adotar, no âmbito de suas competências, entre outras, as seguintes medidas:

I – isolamento; 

II – quarentena;

(…)

VI – restrição excepcional e temporária, por rodovias, portos ou aeroportos, de:

a) entrada e saída do País; e

b) locomoção interestadual e intermunicipal;

Os infratores podem ser responsabilizados penalmente, nos termos do art. 268 CP: “Art. 268 – Infringir determinação do poder público, destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa:

Pena – detenção, de um mês a um ano, e multa.

Parágrafo único – A pena é aumentada de um terço, se o agente é funcionário da saúde pública ou exerce a profissão de médico, farmacêutico, dentista ou enfermeiro”.

Este tipo penal representa uma norma penal em branco, ou seja, precisa ser complementada por “outra norma”. Essa “outra norma” são as leis e decretos, federais e estaduais, criados pelo poder público para impedir a introdução ou propagação de doença contagiosa. No caso em questão, estamos tratando das medidas para conter o avanço da pandemia.

O Supremo Tribunal Federal já reconheceu que os estados e municípios tem competência para legislar sobre medidas para o enfrentamento da pandemia:

“O Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF), por unanimidade, confirmou o entendimento de que as medidas adotadas pelo Governo Federal na Medida Provisória (MP) 926/2020 para o enfrentamento do novo coronavírus não afastam a competência concorrente nem a tomada de providências normativas e administrativas pelos estados, pelo Distrito Federal e pelos municípios.

A maioria dos ministros aderiu à proposta do ministro Edson Fachin sobre a necessidade de que o artigo 3º da Lei 13.979/2020 também seja interpretado de acordo com a Constituição, a fim de deixar claro que a União pode legislar sobre o tema, mas que o exercício desta competência deve sempre resguardar a autonomia dos demais entes”i.

O Código Penal ainda possui outros tipos penais que punem atitudes relacionadas ao desrespeito à determinação de isolamento, medida aplicada a pacientes diagnosticados com coronavírus (COVID-19). São elas:

Foto: Marcelo Camargo / Agência Brasil

Perigo de contágio de moléstia grave

Art. 131 – Praticar, com o fim de transmitir a outrem moléstia grave de que está contaminado, ato capaz de produzir o contágio:
Pena – reclusão, de um a quatro anos, e multa.

Perigo para a vida ou saúde de outrem

Art. 132 – Expor a vida ou a saúde de outrem a perigo direto e iminente:
Pena – detenção, de três meses a um ano, se o fato não constitui crime mais grave.
Parágrafo único. A pena é aumentada de um sexto a um terço se a exposição da vida ou da saúde de outrem a perigo decorre do transporte de pessoas para a prestação de serviços em estabelecimentos de qualquer natureza, em desacordo com as normas legais.

Epidemia

Art. 267 – Causar epidemia, mediante a propagação de germes patogênicos:
Pena – reclusão, de dez a quinze anos.
§ 1º – Se do fato resulta morte, a pena é aplicada em dobro.
§ 2º – No caso de culpa, a pena é de detenção, de um a dois anos, ou, se resulta morte, de dois a quatro anos.

Importante destacarmos aqui o entendimento do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios sobre a conduta criminosa prevista no art. 132 do CP:

“A conduta recriminada nesta norma é a exposição da vida ou saúde de outra pessoa a perigo. Algo que pode acontecer caso o infectado com COVID-19, ciente de sua condição, descumpra a determinação de isolamento ou outras medidas impostas para evitar a propagação da doença”.

Com relação a essa conduta, frisamos que ela pode ser praticada, também, na modalidade de dolo eventual, ou seja, quando a pessoa não tem certeza de que está contaminado, mas suspeita, pois está com sintomas ou teve contato com alguém contaminado. Nesse caso, ele não quer contaminar, mas assume o risco de contaminar outras pessoas, pois não está nem aí; dane-se se alguém vai se contaminar.

Diante do exposto, concluímos que não há nenhuma inconstitucionalidade na aplicação de medidas restritivas de liberdade de locomoção.

Vida, saúde e direito de ir e vir são direitos fundamentais garantidos pela Constituição Federal. Nenhum direito, no entanto, é absoluto. Quando direitos entram em colisão, o intérprete deve fazer uso do princípio da proporcionalidade e razoabilidade. E, nesse caso, o razoável é que, indiscutivelmente, a vida tem mais valia que a liberdade.

i CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 3. ed. Coimbra: Livraria Almedina, 1999.

ii FERREIRA, André, e MORIBE, Camila. Tempos de pandemia e o direito constitucional de ir e vir. https://www.migalhas.com.br/depeso/325170/tempos-de-pandemia-e-o-direito-constitucional-de-ir-e-vir. Publicado em 23/04/2020.

iii RODAS, Sérgio. https://www.conjur.com.br/2020-mai-09/restricoes-lockdown-nao-dependem-estado-sitio#author

iv STF. https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=441447&ori=1


Sávio A. B. Lessa é Doutor em Ciência Política; pós graduado em Ciências Penais, Segurança Pública, Direitos Humanos e Direito Militar; Advogado Criminalista; Professor de Direito Penal e Processual Penal da FCR; Pesquisador do PROCAD/MIN. DEFESA; e Coronel da Reserva da PMRO.


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