Subnutrição severa em crianças Yanomami preocupa pesquisadores

Atualmente, entre todos os povos indígenas das Américas, as crianças Yanomami são as principais vítimas de subnutrição severa. Segundo dados do governo federal, o índice ficou em 52% em 2022 (a média global é de 29%). Os impactos dessa condição não se limitam ao seu bem-estar no presente, tornando-as, quando adultas, mais propensas a enfrentar doenças cardiovasculares e metabólicas, além de distúrbios cognitivos e de personalidade. Portanto, não basta combater a fome dessas crianças agora: é preciso investir em ações para acompanhar seu desenvolvimento a longo prazo.

O alerta foi a conclusão de um artigo publicado no portal da revista Nature Medicine pelos pesquisadores Everardo Carneiro, Ana Paula Davel e Thiago Araújo, do Centro de Pesquisa em Obesidade e Comorbidades (OCRC, na sigla em inglês) do Instituto de Biologia (IB) da Unicamp.

Crianças yanomami são as principais vítimas de subnutrição severa. Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil

Professor do IB, Carneiro afirma que a privação de nutrientes na primeira infância – fase da vida em que os órgãos ainda estão em desenvolvimento – relaciona-se com a redução da capacidade de secreção de insulina, à intolerância à glicose e a alterações no funcionamento e na estrutura dos vasos sanguíneos. Modificações no sistema nervoso central e a redução do tamanho do cérebro são outras das possíveis consequências desse problema.

“A subnutrição pode se reverter em patologias chamadas marasmo e kwashiorkor, que levam a um comprometimento geral do organismo. Se a pessoa sobrevive e chega à fase adulta, isso vai repercutir em doenças como a obesidade, porque essa pessoa passou a ingerir carboidrato em excesso, ou a hipertensão, pois seus vasos sanguíneos são afetados. Também há perda de capacidade neuronal”,

explica.

Os pesquisadores destacam, na publicação, a relação entre o estado de desnutrição das crianças yanomami e o desmatamento, reforçando a importância de atuação coletiva global para a preservação das áreas de floresta. A intensificação das queimadas e o avanço de garimpeiros e madeireiros ilegais sobre o território dessa população indígena – que compreende uma área dividida entre o norte do Brasil e a Venezuela – diminuíram sua oferta de alimentos.

“Em quatro anos, uma área maior que a do Estado do Rio de Janeiro foi desmatada no seu território. Esse é um impacto muito grande. Por se tratar de um povo que vive dos recursos naturais, e que, portanto, alimenta-se basicamente da caça, a desnutrição proteica é um dos problemas mais graves, sem falar na contaminação dos rios cuja água eles bebem”,

explica Araújo, pós-doutorando no OCRC.

Os pesquisadores Thiago Araújo (à esq.), Ana Paula Davel e Everardo Carneiro, responsáveis pelo artigo publicado na Nature Medicine. Foto: Antoninho Perri

O artigo resulta de uma análise realizada com base nas pesquisas sobre desnutrição desenvolvidas no OCRC nos últimos 30 anos e em dados sobre a crise humanitária instalada no território yanomami desde 2019.

Para avaliar as possíveis consequências da privação nutricional enfrentada por essas crianças, Carneiro, Davel e Araújo recuperaram dados de estudos empreendidos na Holanda com pessoas que enfrentaram a fome durante a Segunda Guerra Mundial e que foram beneficiadas posteriormente por políticas de combate à subnutrição. Na sequência, traçaram um paralelo entre as conclusões dos estudos holandeses com a situação atual dos Yanomami – hoje foco de uma ação do governo federal que tem por objetivo, entre outros pontos, melhorar sua alimentação.

“As informações que levantamos sobre populações pregressas [holandesas, da década de 1940], aliadas aos nossos dados experimentais, mostram que, embora o governo brasileiro de hoje esteja tomando medidas para restabelecer o status nutricional dessas crianças yanomami, futuramente elas podem ter maior susceptibilidade a uma série de doenças. Mesmo que, após 30 anos, estejam com a saúde aparentemente perfeita e tenham uma dieta idêntica a de quem não sofreu de subnutrição”, observa Davel. Portanto, ao contrário do que se possa imaginar, os danos da subnutrição aguda não desaparecem completamente quando o indivíduo passa a se alimentar adequadamente.

“Essa população precisa de acompanhamento. É necessário estudar o que está acontecendo e o que vai acontecer no futuro, porque ainda há muito o que descobrir”,

completa a docente.

Intensificação de queimadas e atividades garimpeira e madeireira diminuem oferta de alimentos da população indígena. Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil

Já se sabe que o comprometimento do desenvolvimento devido a uma alimentação insuficiente afeta o material genético e pode impactar gerações futuras: resultado do prejuízo nutricional materno, crianças yanomami que estão nascendo agora apresentam uma baixa estatura.

A constatação, feita por pesquisadores da Fundação Oswaldo Cruz (em Manaus e no Rio de Janeiro) e citada no artigo, reforça a necessidade de estudar outros impactos das alterações genéticas decorrentes da deficiência nutricional antes mesmo da gestação. “Isso foi observado não apenas em relação às mães, mas também aos pais, mostrando a existência de uma questão geracional. Seus filhos estão nascendo também com menor peso, o que pode ter efeitos duradouros”, pontua Araújo.

Com a publicação, os pesquisadores esperam despertar a atenção da comunidade científica global e de órgãos públicos e privados de fomento à pesquisa e a ações sociais para um fato cujos impactos afetam também povos em conflito, como os moradores da Faixa de Gaza, no Oriente Médio, e os acometidos pela guerra travada entre a Ucrânia e a Rússia, na Europa.

“Mesmo no Brasil, recentemente, houve uma queda no número de pessoas situadas abaixo da linha de pobreza. Há ainda, no entanto, 8,7 milhões de pessoas nessa condição [dados referentes a 2023]”, afirma Carneiro. “É preciso um esforço coletivo, que associe a academia, iniciativas privadas e iniciativas governamentais, para desenvolver medidas protetivas. Do contrário, teremos um novo problema, também grave, de saúde pública: o tratamento das doenças decorrentes dessa situação”.

*O conteúdo foi originalmente publicado pelo Jornal da Unicamp

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