Foto: Reprodução/Documentário ‘Mulheres da terra’, de Anderson Mendes
A prática da benzeção, ou benzimento, um costume profundamente enraizado em diversas culturas ao redor do mundo, representa um elo com saberes ancestrais e uma forma de cuidado que transcende o convencional. No Brasil, essa tradição, frequentemente associada à figura das benzedeiras e benzedores, persiste como um importante elemento cultural e social, oferecendo acolhimento e auxílio a comunidades que buscam alívio para males físicos e espirituais.
Longe de ser apenas um resquício do passado, a benzeção se adapta e se mantém viva, transmitindo conhecimentos de geração em geração e resistindo às transformações sociais.
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Um artigo científico intitulado ‘Plantas Utilizadas por Benzedores em Quilombos do Maranhão, Brasil’, publicado na Revista Etnobiología em agosto de 2022, oferece uma análise aprofundada sobre essa prática.
O estudo teve como objetivo registrar o conhecimento de especialistas locais, identificar espécies vegetais de uso litúrgico e medicinal, sistematizar indicações, formas de uso e partes utilizadas, e associar esses dados ao perfil socioeconômico dos benzedores.
A pesquisa foi realizada no município de Anajatuba, Maranhão, Nordeste do Brasil, por meio de entrevistas semiestruturadas com 13 benzedores, além de turnê guiada e coleta de material botânico.
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Foram registradas 52 espécies, distribuídas em 48 gêneros e 31 famílias, com as famílias Lamiaceae (7 espécies) e Asteraceae (5 espécies) sendo as mais representativas.
As espécies mais citadas pelos benzedores foram:
- pinhão roxo (Jatropha gossypiifolia L.),
- vassourinha (Scoparia dulcis L.),
- manjericão ou alfavaquinha (Ocimum basilicum L.)
- e erva cidreira (Melissa officinalis L.).
O pinhão roxo e a vassourinha foram indicadas para benzimentos, enquanto a alfavaquinha e a erva cidreira foram citadas para fins medicinais. A maioria das espécies foi obtida em quintais ou terrenos próximos, com algumas sementes e frutas adquiridas em feiras livres da cidade.
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Perfil dos benzedores e a transmissão do conhecimento
O perfil dos benzedores entrevistados valida padrões encontrados na literatura. Eles apresentavam idade entre 30 e 90 anos, sendo que 69,02% eram analfabetos, 84,06% católicos e 61,05% citavam a lavoura como principal fonte de renda.
A pesquisa, no entanto, identificou um número maior de benzedores do sexo masculino, o que pode ter relação com a cultura e a herança religiosa local, diferindo de estudos em outras regiões do Brasil que apontam a predominância feminina nesta função.
Essa predominância masculina pode estar associada à história de formação das religiões afro no Maranhão e ao diálogo entre as práticas de benzimento e a pajelança, onde a figura masculina é forte nos ritos de cura.
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A transmissão do conhecimento sobre os benzimentos e suas origens pode variar. A maioria dos benzedores afirma ter recebido o “dom” desde o nascimento.
Em outros casos, o aprendizado ocorre por meio do ensinamento dos mais velhos, geralmente os pais, a partir da escuta e da observação de gestos, caracterizando uma transmissão vertical de conhecimento, comum em comunidades tradicionais.
A maioria dos entrevistados possui mais de 30 anos inseridos na prática do benzimento, com o mais jovem atuando desde os 20 anos.
Apesar da longevidade na prática, um enfraquecimento da cultura entre as novas gerações é relatado. Um dos benzedores mais jovens, de 39 anos, que não teve o nome revelado, expressou esse desafio: “Eu fiquei querendo fugir no começo, meus parentes da cidade me levaram para morar lá e eu ia nos cultos evangélicos, não queria assumir essas coisas não e nem gosto muito de falar, porque tem gente que não entende o benzimento”.
Essa mudança no estilo de vida das comunidades, a influência da internet e a facilidade de acesso ao sistema de saúde convencional são apontados como motivos para o desinteresse dos jovens, além do preconceito que envolve essas práticas.
Plantas utilizadas e sua finalidade
No que diz respeito às plantas, o estudo ressalta que as benzedeiras conhecem um número superior de espécies para o tratamento de animais e pragas em plantações, mas o foco da pesquisa foi nas plantas para males físicos e espirituais em humanos.
As famílias botânicas Lamiaceae e Asteraceae foram as mais expressivas, o que se justifica pela riqueza dessas famílias no Brasil e sua importância terapêutica.
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Para tratar problemas de ordem espiritual, o pinhão roxo e a vassourinha foram as mais indicadas. Já para a saúde física, plantas como manjericão (Ocimum basilicum L.) e erva cidreira (Melissa officinalis L.) foram citadas.
O manjericão é tradicionalmente usado para tosse, diarreia, febre, gripe e disfunções renais, enquanto a erva cidreira é valorizada por suas propriedades fitoterápicas, sendo utilizada como relaxante e para o controle do sono e emoções. As doenças físicas mais destacadas foram cólicas intestinais (47%), gripe e problemas respiratórios (29%), e ansiedade ou agitação (29%).

A pesquisa também apontou que, embora 84,06% dos benzedores entrevistados se declarem católicos, suas práticas mesclam o profano e o sagrado, refletindo a formação da sociedade brasileira, que apresenta uma aproximação simbólica entre culturas africanas, afro-brasileiras e o cristianismo católico.
Os benzedores afirmaram que, em casos de enfermidades físicas graves, recorrem e indicam serviços de saúde pública, direcionando o benzimento para doenças de fundo espiritual ou psicológico, atuando em paralelo aos tratamentos da medicina oficial.
Os dados apresentados no artigo científico reforçam a importância de promover novos estudos na área e de incentivar políticas públicas que atuem na conservação e valorização desses saberes. A benzeção é uma manifestação cultural rica que continua a desempenhar um papel vital na vida de muitas comunidades, necessitando de reconhecimento e apoio para que seus conhecimentos ancestrais possam ser preservados para as futuras gerações. Confira o artigo na íntegra clicando AQUI.
