Indígenas Macuxi compartilham receitas medicinais com migrantes venezuelanos em Roraima

Receitas foram ensinadas durante encontro de sabares e no livro 'La Cura Macuxi', escrito pela pajé roraimense Iolanda Pereira.

Folhas de arruda, algodão roxo, anador e até casca de caimbé, uma árvore nativa das áreas de lavrado de Roraima. São com essas plantas “sábias” que indígenas do povo Macuxi compartilham receitas naturais para cura e tratamento de doenças com migrantes Warao, que vieram da Venezuela para o Brasil fugindo da crise econômica no país.

Espécies que ocupam um tradicional e respeitado lugar na cultura dos indígenas roraimenses, as plantas carregam uma energia e poder que, agora, são transmitidos para indígenas migrantes da Venezuela que vivem no estado.

As receitas medicinais foram desenvolvidas ao longo de gerações da família da Pajé e parteira Iolanda Pereira, do povo Macuxi, em Roraima. Ela passou por um processo de formação para aprender os tratamentos, que iniciou quando ainda tinha 11 anos, e aprimorou as receitas tradicionais.

O conhecimento é tanto que rende até garrafadas que ajudam no controle da diabetes. Elas são feitas com folhas de insulina vegetal, anador ou chambá, uma planta que também pode ser usada contra dores de estômago, cólicas e vômitos, e casca de caimbé, árvore símbolo do lavrado roraimense e resistente ao clima.

Natural da comunidade Uiramutã, localizada no município de mesmo nome e o proporcionalmente mais indígena do Brasil, Iolanda não decidiu seguir a pajelança, mas foi escolhida pelo próprio pai, que também era pajé.

“Meu pai era um pajé muito forte. Ele tratava muita gente, nós não tínhamos médico, a gente não tinha posto de saúde, as internações eram realizadas na casa do meu pai. Nessa época eu ainda era uma criança, tinha 11 anos quando ele pediu para que eu o ajudasse a escrever as receitas e ajudasse a colher as plantas, o material que ele solicitava”, relembrou Iolanda.

Embora algumas receitas fossem registradas no papel, era mais comum que elas fossem repassadas de forma verbal. Com tanto conhecimento e devido à necessidade de indígenas venezuelanos que vivem no estado de aprenderem a usar as plantas nativas, Iolanda decidiu registrar e compartilha-las em um livro.

Intitulado de “La Cura Macuxi” ou “A Cura Macuxi” em português, o livro foi escrito pela pajé e organizado e traduzido para o espanhol pela Cáritas Brasileira. A primeira parte dele, que conta com 37 páginas e seis receitas, foi lançada nessa sexta-feira (26) em Boa Vista, durante o “Encontro de Saberes Tradicionais”, que reuniu funcionários e voluntários da instituição.

Iolanda explica que, inicialmente, o acesso ao conhecimento medicinal era restrito as pessoas do mesmo povo originário, devido ao medo de que algumas pessoas se aproveitassem da prática. No entanto, para que a cultura e a conexão com a espiritualidade não sejam perdidos, agora eles são repassados.

“É muito importante valorizar as ervas medicinais que nós temos. Nós temos um laboratório grande, aberto, que é a Amazônia brasileira. Nós temos muitos remédios [que vem] da natureza, que podem nos ajudar a tratar as doenças”.
Iolanda Pereira, pajé e autora do livro “La Cura Macuxi

“Para a gente [indígenas Macuxi] é muito simples fazer, mas para quem não conhece as plantas ainda é muito difícil. A gente está aqui para poder ajudar nesse meio de vida, com as medicinas naturais que nós temos, que vem desde os nossos pais, nossos ancestrais”, completou a pajé, que também integra a assessoria técnica do Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI) Leste.

Encontro de saberes

Foi durante o encontro de saberes que ela repassou parte dessa sabedoria milenar. Para mais de 20 pessoas, entre brasileiros e venezuelanos, ela ensinou chás, garrafadas, “tintas” e até pomadas com capacidade anti-inflamatória, analgésica e antisséptica. Além de banhos contra mau olhado, com urucum.

A ajuda da pajé foi solicitada por jovens do povo indígena Warao, originário da Venezuela, que vivem em Roraima e desejavam ter acesso ao conhecimento ancestral de cura, segundo uma perspectiva indígena.

Folhas de insulina, anador e casca de caimbé são cozinhadas para garrafada que ajuda no controle da diabetes. Foto: Yara Ramalho/g1 Roraima

“Assim, o objetivo do livro e dos encontros é ajudar a repassar os saberes tradicionais, quebrando a barreira geracional e linguística”, explicou Well Leal, coordenador local do projeto Orinoco: Águas que Atravessam Fronteiras.

O livro completo deve ser lançado no segundo semestre deste ano, na Terra Indígena São Marcos, localizada no município de Pacaraima, na fronteira do Brasil com a Venezuela, ao Norte de Roraima. Ele deve ser lançado em três idiomas: português, espanhol e na língua indígena Warao.

Nele, as pessoas podem aprender por textos e ilustrações, feitas por um biólogo, o passo a passo de cada receita, como cada medicamento deve ser consumido e para que faixa etária cada um deles é recomendado. Ao todo, 40 receitas medicinais indígenas estarão disponíveis no material, que é gratuito.

A versão digital da primeira parte do livro também pode ser acessado de forma online, por meio do site da Cáritas, responsável pela publicação.

*Por Yara Ramalho, do g1 Roraima

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