Estima-se que 700 indígenas do povo Warao, originário do Delta do Rio Orinoco, vivam hoje na capital paraense
Johnny Riva, de 41 anos, foi um deles. Ele vivia em Tucupita, cidade às margens do Orinoco, com sua esposa, Mariluz Mariano, e ainda três filhos, irmãos, tios e pai. Cruzando a fronteira por Roraima, a família toda percorreu cerca de 3,6 mil quilômetros, entre rios e estradas, para chegar a Belém. Eles estão entre os cerca de 6.800 refugiados Warao que hoje vivem no Brasil, segundo o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (Acnur).
“As maiores dificuldades pra gente lá eram a saúde, a comida, o combustível para a nossa rabeta”, conta Johnny Riva. “Lá nós éramos pescadores e nos sustentávamos com a venda do pescado, mas ficou muito difícil. A gente levava para a cidade para vender, mas as pessoas já não tinham dinheiro para comprar. Foi aí que decidimos vir embora porque não dava mais”
relatou Johnny.
Hoje Johnny e sua família vivem em Outeiro, ao norte de Belém, em um aldeamento urbano com moradias precárias de frente para a Baía do Guajará. Os indígenas, porém, não sabem pescar nas águas de Belém, e sua única canoa foi roubada. “Uma rabeta foi doada para nós, mas o dinheiro para o diesel não chega”, lamenta Johnny.
Etnia tradicionalmente de agricultores e pescadores, os Warao se alimentam do que plantam, colhem e cozinham. Fazem seu próprio pão, cultivam macaxeira, abóbora, batata e pescam para sua alimentação. Na capital paraense, o sustento de todos os dias é o pão que fazem em casa e peixe, que é comprado quando sobra dinheiro. Parte de sua renda advém da “coleta”, que é como eles chamam o ato de pedir dinheiro nas ruas. Mariluz, esposa de Johnny, ainda recebe o Bolsa Família, renda utilizada também para a alimentação de todos.
A coleta e a ajuda governamental são, muitas vezes, as únicas saídas para uma população que tem de superar inúmeros obstáculos para sobreviver na cidade. Não bastasse a falta de infraestrutura adequada e a escassez de recursos para atender às necessidades básicas, existe ainda a barreira linguística – a língua e a cultura diferentes dificultam a integração e a comunicação com a sociedade local.
Além disso, os Warao enfrentam o preconceito e o racismo impulsionados pelo discurso de ódio e xenófobo da extrema-direita. Mariluz destaca a discriminação na hora da procura por emprego: “A gente tem currículo espalhado em várias empresas, mas desde 2019 não conseguimos vagas. Apenas promessas de empregos em entrevistas, mas a chamada nunca vem”. Ela diz que trabalhou durante um ano em uma igreja adventista que tinha um programa para imigrantes venezuelanos, mas, com o tempo de serviço de um ano e quatro meses chegando ao fim, teve de ser desligada.
Segundo Janaina Galvão, chefe de escritório do Acnur em Belém, “os principais desafios para a população Warao são o acesso a políticas diferenciadas que contemplem suas especificidades enquanto indígenas, como saúde, educação e geração de renda. Além disso, o acesso a terra e moradia digna tem se constituído em importante obstáculo, embora as comunidades indígenas em Belém e Ananindeua já tenham dado passos importantes nesta área, com a compra coletiva de terrenos”.
Uma lei inédita
A chegada dos indígenas Warao em Belém destacou uma lacuna nas políticas de refugiados. Embora a cidade seja conhecida por sua hospitalidade e histórico de acolhimento de refugiados, a falta de um sistema coordenado para lidar com esse fluxo migratório específico expôs essas populações à vulnerabilidade.
A Acnur estima que cerca de 700 Warao se concentrem entre Belém e Ananindeua. No Pará, há registros de Warao vivendo em Santarém, Parauapebas, Marabá, Altamira, Itaituba, Salinópolis e Benevides. Esses são levantamentos feitos junto aos governos locais, entretanto os números podem variar para mais ou para menos dependendo da época do ano, considerando a intensa mobilidade dessa etnia no território nacional.
A ausência de estratégias conjuntas para enfrentar os desafios causados por esses movimentos migratórios chamou a atenção de um grupo em Belém que conseguiu avançar na legislação municipal em uma ação conjunta.
O vereador Fernando Carneiro, Presidente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara, através de um esforço conjunto entre a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e o Acnur, conseguiu que a Lei No 9.897/2023 fosse aprovada em tempo recorde.
A ideia ocorreu durante uma passeata em Belém em repúdio ao assassinato de Moïse Kabagambe, refugiado congolês assassinado no Rio de Janeiro em 2022. Na ocasião, Fernando se encontrou com Samuel Medeiros, advogado e presidente da Comissão de Relações Internacionais da OAB, que sugeriu a Fernando a criação de uma lei que tratasse sobre a questão das políticas migratórias para Belém.
O vereador abraçou a ideia, mas explicou que, pelo regimento interno da Câmara Municipal, havia muitas limitações e que seria necessário pensar em um projeto de lei que pudesse ser aprovado sem o risco da inconstitucionalidade e que trabalhasse diretrizes migratórias com a participação ativa de parte da comunidade Warao.
“Fomos projetando os artigos da lei com a ajuda dos Warao em várias audiências na OAB. A gente lia os incisos um por um com a ajuda de um intérprete, e eles iam opinando de acordo com suas necessidades”, explica Fernando. “Depois de elaborada a lei, a gente apresentou o projeto e teve uma aprovação em tempo recorde. Em um ano conseguimos dar entrada e ela foi sancionada. Para quem conhece e acompanha os processos legislativos, sabe que isso não é fácil e nem comum”
comentou.
A segunda fase foi a criação do Comitê Municipal para a População Migrante, Apátrida, Solicitante de Refúgio e Refugiada, criado no mesmo dia que a lei foi sancionada e presidido pelo vice-prefeito. O comitê é composto por diversas secretarias municipais, entre elas Educação, Cidadania e Direitos Humanos, Economia e Saúde, e tem a representação de dez membros da sociedade civil.
“Hoje, com a legislação migratória sancionada, a gente pode dizer que Belém se encontra em um estágio bastante avançado de um ponto de vista legislativo”, afirma o advogado Samuel Medeiros. “O que Belém traz de novidade é que somos os únicos, até onde consegui pesquisar, que criaram dispositivos com a finalidade de proteger as especificidades de quem é refugiado indígena”
*por João Paulo Guimarães para Mongabay.