Para a geógrafa e amazonóloga Bertha Becker o desafio do desenvolvimento da Amazônia pressupõe implementar modelo que utilize o patrimônio natural sem destruí-lo, atribuindo valor econômico à floresta. Ela faz uma constatação elementar: o Brasil, no século XX, viveu quatro importantes revoluções tecnológicas: a criação da Petrobrás, em 1953; da Embraer, em 1969; da Embrapa, 1973, e a instituição do Proálcool, em 1975. Segundo Becker, a quinta revolução tecnológica brasileira será a da Amazônia. O desafio é nosso, de mais ninguém. O caminho, por conseguinte, tem como base a promoção do uso “do fator biodiversidade como elemento estratégico de desenvolvimento regional”, enfatiza. Com efeito, informações provenientes de pesquisas científicas, ao que Becker defende, devem obrigatoriamente “colaborar com o planejamento do espaço rural, com vistas a equilibrar produção com conservação, voltado à sustentabilidade ambiental”.
Samuel Benchimol, que, desde o início dos anos 1970 produziu extraordinária obra sobre a Amazônia, contrapõe a tese da planetarização, ou internacionalização da região, que alguns chefes de Estado tentaram fazer ressurgir nesta reunião de cúpula do G7, realizada em Biarritz, no fim de semana passado. Para Benchimol e seu caudal de seguidores, dentre os quais me incluo “a esse desafio planetário vamos responder, com vontade política e as armas da ciência e da tecnologia, vamos ocupar e desenvolver a Amazônia, sem poluir e sem alçar o deserto, mas não nos deixamos intimidar pelo medo do desconhecido. Somos, afinal, um país de bandeiras e pioneiros que aprendeu desde cedo a enfrentar distâncias, a vencer dificuldades, a resistir ao sofrimento e a seguir generosos na vitória”.
A Amazônia Legal, constituída, esdruxulamente, pelos seis estados originais (Amazonas, Pará, Rondônia, Acre, Roraima e Amapá) mais Tocantins, Mato Grosso e parte do Maranhão, apresenta densidade demográfica rarefeita, ocupada por cerca de 25 milhões de habitantes, rica em matérias-primas, já foi chamada por sociólogos norte-americanos the last frontier. Na verdade, a última fronteira, no sentido de último espaço vazio, no mundo, a ser conquistado e ocupado por brasileiros. Porque, segundo Manoel Paulo Oliveira, em seu estudo A Futurologia da Região Amazônica, “mais cedo ou mais tarde isso se completará, ao despertar o sentimento de nacionalidade e, como na intenção de Machado de Assis, nos tornamos homens de nosso tempo e de nosso país”.
Incursões amazônicas
São lendárias as tentativas de ocupação da Amazônia. Não é de hoje que a região desperta interesse e cobiça, como se fosse terra de ninguém, desde as peripécias de espanhóis, portugueses, holandeses, franceses e ingleses, a partir do século XVII. E, ainda, nos séculos XIX e XX, com os norte-americanos, depois da Guerra de Secessão, ao pretenderem aqui fundar outro país, a República do Amazonas, para grupos de ex-confederados sulistas. Algumas dessas famílias vieram e se localizaram nas barrancas de Santarém. A maioria, no entanto, se estabeleceu em Americana, SP, onde fundaram poderosa indústria têxtil.
O que, enfim, o Brasil e a Amazônia ganhamos nós com tudo isso? Até o momento praticamente quase nada. Apenas insucessos decorrentes de falta de visão e estratégia em relação ao real valor do complexo geopolítico do Setentrião brasileiro. Samuel Benchimol é claro ao proclamar abertamente em seu livro Amazônia – Guerra na Floresta, Segunda Edição, 2011, “Economicamente, a Amazônia é viável e, nessa última década (do ano 2000), têm sido desenvolvidos grandes esforços, por meio da iniciativa privada e das agências de desenvolvimento do setor público, entre elas a Sudam e a Suframa, no sentido de otimizar sua produção econômica nos distintos segmentos agrícolas, pecuários, minerais, hidrelétricos e industriais. Infelizmente o desempenho econômico não tem sido devidamente avaliado e divulgado, para que no país tome conhecimento desse avanço”.
O fim da economia da borracha
Por volta de 1870, talvez na que provavelmente possa ser considerada a primeira ação (consentida, em certo sentido) de biopirataria praticada na Amazônia, o inglês Henry Wickham, levando 70 mil mudas de seringueiras para os Kew Gardens, em Londres, deu início à saga inglesa de exploração da borracha junto às colônias britânicas na Malásia, Ceilão e sudeste asiático. Uma história cujo desfecho resultou no fim da economia da borracha na Amazônia brasileira a partir de 1912.
No Norte brasileiro ainda vão acontecer outros notórios acontecimentos, como a construção da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré – a ferrovia da morte – as malogradas experiências de Henry Ford e seus plantios de seringueiras em Fordlândia, no Pará, bem como as de Daniel Ludwig com o projeto Jari e outros menos notórios, no Amapá.
O grande lago amazônico
A mais notória dentre todas as soluções megalômanas em torno da Amazônia é certamente a protagonizada pelo Hudson Institute, entidade privada norte-americana, sediada em Nova York, presidido pelo cientista Hermann Kahn (1922-1983), um típico visionário dos tempos modernos, ao final dos anos 1960 início dos 1970. O projeto fundamentava-se, basicamente, em seus alegados “modernos conhecimentos para o desenvolvimento econômico para o mundo”.
Apresentando-se ao governo brasileiro com a suposta experiência de contratada do Departamento de Defesa – Pentágono – com interesses voltados para a Região Amazônica como um todo apresentou o fantástico projeto para represar o Rio Amazonas, de Santarém a Monte Alegre, e formar um vastíssimo lago interior, de aproximadamente 240 mil quilômetros quadrados.
Para isso, duas terças partes de Manaus viriam literalmente a desaparecer sob as águas. Santarém, Óbidos, Itacoatiara, Parintins, Manacapuru, submersas, desapareceriam do mapa. Compartilhando da mesma sorte, parte dos seringais extrativos do Estado do Amazonas e os campos da pecuária ribeirinhos chamados de baixo Amazonas simplesmente sumiriam. Sem qualquer autorização oficial do governo brasileiro, os técnicos do Hudson Institute chegaram a realizar as primeiras pesquisas de campo.
Ainda aluno da Faculdade de Economia naquele final dos anos 1960, recordo bem do sentimento que tomou posse de “gregos e troianos” verde e amarelos, bem entendido. Sob impacto geral, incrédulos os brasileiros liam justificativas do lunático. Herman Kahn sobre os objetivos básicos do sistema dos grandes lagos interiores, assim o fundamentados:
“O Instituto Hudson dos Estados Unidos vem procurando encontrar um novo enfoque para o estudo eficiente desta zona. O problema básico é o enorme tamanho da bacia amazônica e a falta de informação disponível e global. O Instituto propôs a formação de um pequeno grupo analítico, integrado por cientistas, engenheiros e acadêmicos, a fim de avaliar a bacia do Amazonas como um todo. Tal esforço permitiu, sob a ótica de Kahn, a análise sistemática das ferramentas disponíveis para o desenvolvimento da região e os recursos explotáveis – econômicos – (definindo tanto ferramentas como recursos no sentido mais amplo possível)”.
A grandeza do Amazon Sea
Com efeito, como que antevendo a ocorrência de um novo “dilúvio”, o formidável Amazon Sea, criado nos laboratórios futuristas do Instituto Hudson, leva-nos a imaginar aquela paisagem primitiva pelas teorias dos geólogos: o mar interior amazônico, da era terciária, com suas três saídas ainda hoje marcadas pela geografia dos rios Orenoco, Amazonas e Paraguai. A futurologia volta-se, assim, ao passado, numa viagem à autoria do mundo, que se assemelha a um proustiano geológico de procura do tempo perdido.
A quem pertenceria o controle dessa extraordinária via de comunicação, que causaria uma revolução nos transportes entre as três Américas e na economia de tantos países? Mais esquisito ainda qual efetivo impacto econômico e social do projeto para a região? Qual o papel e a participação do Brasil no conjunto megalômano do projeto Hudson Institute? Jamais chegamos a saber ao certo. A Amazônia provavelmente seria tornada simplesmente rota de passagem ligando Ásia, América do Norte e Europa. O projeto, entretanto, fade away, perdeu-se em meio às brumas amazônicas. Tal como apareceu sumiu.
A ótica do Tio Sam
Como se sabe, felizmente, o Grande Lago Interior não vingou, mas as cicatrizes ainda estão abertas e latejando. Porque, como salientam os estudos de Manoel Paulo Oliveiras, “na história das relações internacionais, país algum oferece “planos generosos”, como defendem certos articulistas, tidos como especialistas muito apressados em defender qualquer proposição vinda de países hegemônicos centrais. Conforme corrobora o então Secretário de Estado norte-americano, John Foster Dules, na entrevista a UPI, em 11.08.1957, verbis”:
“Nem por um minuto creio que o propósito do Departamento de Estado seja o de fazer amigos. Não me importa se fazemos amigos, ou não. Procuramos manter relações amistosas com alguns países, não com todos; e fazemos simplesmente porque servem aos interesses dos EUA”.
Segundo Henry Kissinger, em sua monumental obra “Ordem Mundial”, 2014, a paz de Vestfália, tratado que se seguiu à Guerra dos Trinta Anos (1618-1648), refletiu uma acomodação de ordem prática à realidade, não um insight moral excepcional. Ela se baseava num sistema de Estados independentes que renunciavam à interferência nos assuntos internos uns dos outros e limitavam as respectivas ambições por meio de um equilíbrio geral de poder”. Mesmo assim, “os negociadores da Paz de Vestfália no século XVII, complementa Kissinger, não achavam que estavam erguendo alia pedra fundamental de um sistema que seria aplicado em todo o globo”.
Estavam certos. Tanto que as guerras prosseguiram, culminando na mais sangrenta delas, a II Guerra Mundial (1939-1945) e as revoluções Russa de 1917 (de Lenin e Stalin) e Chinesa, de 1939, de Mao Tse Tung. Por todo o conjunto das forças geopolíticas internacionais que continuam em ebulição, olho vivo com Trump, Macron e companhia. No jogo diplomático ninguém é totalmente amigo ou inimigo. Apenas competidores. A paz é, simplesmente, o resultado do equilíbrio (momentâneo) entre “soft power” (a via diplomática) e o “hard power” (ações incisivas) latentes.
Um bilhão de euros para início de conversa
Por fim quero deixar claro concordar inteiramente com a recusa do presidente Jair Bolsonaro em receber a “ajuda” de 20 milhões de dólares para o combate a incêndios na Amazônia. Ora, 20 milhões em nada contribuem efetivamente para a contenção de queimadas. O problema é muito maior. O que efetivamente ajudaria seria os países do G7, em summits permanentes, juntar-se ao Fundo Amazônia e, a partir de um capital de um bilhão de euros, ajudar o Brasil no financiamento de projetos de desenvolvimento não apenas na áreas constituída pelo “arco do fogo” mas em toda a o complexo amazônico objeto da expansão das novas fronteiras agropecuárias.
Não se pode perder o foco: ao contrário de ações paliativas, só o desenvolvimento econômico sustentável trará estabilidade geopolítica e garantia de preservação da região. O Brasil é permanentemente vítima de disputas incidentes “vigorosamente sobre o Brasil”, conforme Bertha Becker, pela razão fundamental de que “três grandes eldorados podem ser reconhecidos contemporaneamente:os fundos oceânicos ainda não regulamentados, a Antártida, partilhada entre as potências, e a Amazônia, único a pertencer, em sua maior parte, a um só Estado Nacional”.
Ao que a realidade histórica o demonstra, contundente realidade que o governo brasileiro teima em não reconhecer.