Incêndio no Parque Guajará-Mirim, em Rondônia. Foto: Reprodução/Ibama
Em 2024, Rondônia bateu recordes de queimadas, sobretudo em áreas protegidas. O Parque Estadual Guajará-Mirim e a Estação Ecológica Soldado da Borracha, por exemplo, perderam milhares de hectares de vegetação. Além da destruição causada por incêndios criminosos, as unidades de conservação possuem algo em comum: ambas foram alvos de normas que tinham a intenção de reduzir e/ou extinguir suas áreas.
O Parque Estadual Guajará-Mirim possui cerca de 216 mil hectares de floresta protegida localizada em Nova Mamoré (RO). Desse total, mais de 100 mil hectares foram destruídos por queimadas ao longo dos últimos três meses. O parque é uma das maiores unidades de conservação do estado.
A Estação Ecológica Soldado da Borracha tem uma área de 178.948 hectares e se divide pelos municípios de Porto Velho e Cujubim. A unidade foi criada para preservar a natureza e propiciar o desenvolvimento de pesquisas científicas. Os incêndios já destruíram 163 mil hectares de floresta na região onde a estação está localizada.
O processo de destruição são os mesmos: desmate, incêndio e grilagem. Mas o que torna essas unidades de conservação alvos tão frequente de crimes ambientais? De acordo com o promotor de justiça e coordenador do Grupo de Atuação Especial do Meio Ambiente, o Gaema, Pablo Hernandez Viscardi, o que tem incentivado os invasores são “eventuais apoios políticos”.
“Eles [invasores] sabem e sentem o apoio político para eventual regularização futura. Mas volto a dizer: o que eles estão fazendo ali é grilagem e grilagem nenhuma poderá ser regularizada, poderá contar com a anuência do poder público. Se os políticos nossos sinalizassem no sentido de que aquela área não será regularizada e que o que eles estão fazendo é crime, com certeza eles se sentiriam desestimulados”, reforça.
A reportagem do Grupo Rede Amazônica questionou ao governo de Rondônia quais medidas ele tem adotado para apontar que não apoia crimes ambientais, sobretudo em unidades de conservação, e que eles devem ser combatidos, mas nenhuma resposta foi apresentada até a última atualização desta reportagem.
Para entender a importância de preservação do Parque e da Estação, cabe ter conhecimento que dentro das unidades existem diversas espécies, seja da flora ou da fauna, que são ameaçadas de extinção, quase ameaçadas ou vulneráveis. Ao redor da área existem reservas extrativista e Terras Indígenas.
Em chamas
Nas primeiras semanas do incêndio no Parque Guajará-Mirim, o Ibama informou que o fogo já tinha consumido 70 hectares. Em um mês, as chamas se espalharam e atualmente a área queimada é mais que 1,4 mil vezes maior que àquela informada inicialmente.
Os incêndios cresceram de forma tão significativa que se tornaram o maior registro ativo em Rondônia e contribuíram para colocar o estado nos piores índices de queimadas dos últimos 14 anos.
Documentos que a equipe da Rede Amazônica teve acesso mostram que as chamas foram identificadas no dia 11 de julho. A Sedam acionou o Ibama no dia 12; seis dias depois, uma equipe do Prevfogo se deslocou para atuar no local. Ou seja, quando o combate foi iniciado, o parque já queimava há pelo menos uma semana.
A equipe inicial de combate era formada por 12 pessoas, utilizando apenas meios terrestres. Desde então, os brigadistas já apontavam que a quantidade de agentes era pouca.
A falta de apoio aéreo foi outro grande problema. A exaustão de se deslocar a pé para onde os focos estão concentrados e a dificuldade em chegar aos pontos mais isolados passou a fazer parte do cotidiano dos brigadistas.
“Um apoio aéreo seria muito importante para lançar água, para recolher os brigadistas ao final do dia. Nós já andamos praticamente uns 4 km fazendo aceiros e nós vamos ter que retornar esses 4 km de volta na pernada. O apoio aéreo deixaria onde nós precisássemos combater o fogo”, relatou o chefe de esquadrão José Baldino, à época.
A Sedam informou que “fez tratativas” para que o Núcleo de Operações Aéreas (NOA), da Secretaria de Estado da Segurança, Defesa e Cidadania (Sesdec) fosse enviado ao local, mas que “devido ao mau tempo” e a falta de visibilidade causada pela fumaça, o pedido não pode ser atendido.
Na primeira semana de setembro, quase dois meses depois que as chamas foram identificadas, o governo de Rondônia pediu apoio aéreo para o governo federal.
Segundo o Ministério Público de Rondônia (MP-RO), há uma análise em andamento para entender se com o orçamento que a Sedam tinha, “ela poderia ter feito mais”.
“Com certeza houve um atraso. Eu não posso dizer agora que o Estado foi omisso, mas com certeza houve uma demora. Essas medidas poderiam ter sido adotadas desde bem antes”, aponta o promotor Pablo Hernandez Viscardi.
O governo apontou que fez uma parecia com projeto que visa a recuperação de áreas degradadas e escolheu o Parque Estadual Guajará Mirim como alvo. E entretanto os incêndios acabaram atingindo parte da área atendida pelo projeto.
Incêndios criminosos
Desde que identificou os incêndios no Parque, a Secretaria de Estado do Desenvolvimento Ambiental (Sedam) já apontava a possibilidade de ações criminosas. A hipótese foi reforçada quando garrafas de combustíveis foram encontradas próximas aos focos de incêndio, além de pegadas.
Segundo o promotor Pablo Hernandez Viscardi, os indícios apontam que os incêndios foram causados como retaliações às fiscalizações ambientais, sobretudo àquelas realizadas na Operação Mapinguari, realizada pelo MP-RO: a maior ação de desocupação em unidades de conservação já realizada em Rondônia.
Na ocasião, pelo menos 10 pessoas foram presas, mais de 2 mil cabeças de gado foram retiradas do local e centenas de estruturas irregulares de invasores destruídas.
“Sabemos que os incêndios são criminosos, sabemos que esses criminosos que atuam lá atuam de forma organizada, de forma articulada, já temos linhas investigativas nesse sentido. Não há incêndio acidental, não há incêndio voluntários, há dolo, há crimes”, apontou o promotor.
Para ajudar a combater as queimadas em Rondônia, o Ministério Público de Rondônia, através do Gaema, colocou em prática outra operação: Temporã. O objetivo é responsabilizar criminalmente os envolvidos. Segundo Pablo Hernandez Viscardi, a ação se fez necessária em meio a uma “falta de nexo de interlocução entre os órgãos responsáveis”.
“A gente detectou um aumento muito grande nos focos de calor e então a gente marcou uma reunião com todos esses órgãos para que a gente alinhasse uma atuação estratégica para diminuir os focos e daí surge a Operação Temporã”.
Mais de 200 agentes se envolveram na operação, incluindo membros do Ibama, Polícia Federal, Polícia Militar, Polícia Militar Ambiental, Comando de Fronteira do Exército, Secretaria de Desenvolvimento Ambiental, Polícia Civil, Corpo de Bombeiros Militar e Politec.
“Isso [os incêndios] tem melhorado muito nos últimos dias, principalmente depois do dia 30, quando o Ministério Público Estadual capitaneou uma reunião com todas as forças que fecharam todas as vias de acesso ao parque e nós tivemos um excelente reflexo”, apontou o superintendente do Ibama, César Guimarães, após o início da Operação Temporã.
Segundo a Sedam, os incêndio dentro do Parque Estadual Guajará-Mirim tiveram uma queda significativa após a ação coordenada pelo MP-RO. Entretanto, ao longo desta semana foram registrados novos focos de calor dentro da unidade.
O combate não é fácil. Para dificultar a ação dos brigadistas, os invasores espalham armadilhas pelo caminho, como árvores derrubadas e objetos pontiagudos para furar os pneus dos veículos.
“É um artefato caseiro chamado de ouriço que eles utilizam nas estradas para evitar a fiscalização, pequenas lanças que furam geralmente os quatro pneus das caminhonetes”, relata o tenente da Polícia Militar Ambiental, Paulo Henrique.
E não para por aí…
A Estação Ecológica Soldado da Borracha também foi consumida pelo fogo por mais de dois meses, segundo documentos que a reportagem teve acesso. Agentes do Prevfogo encontraram áreas derrubadas e galões de veneno na unidade de conservação durante uma das ações;
Os focos de incêndio na Estação foram identificados no dia 12 de julho. No dia 8 de setembro, quase dois meses depois, o Ibama foi acionado pela Secretaria de Estado do Meio Ambiente (Sedam). O combate foi iniciado 4 dias depois.
No dia 18 de setembro, durante o combate às chamas, os agentes do PrevFogo perceberam uma grande concentração de calor. Ao chegarem no local, encontraram a vegetação derrubada para aplicação de veneno. Galões com a substância foram encontrados próximos a uma residência.
Quase extintas e/ou reduzidas
Parque Estadual Guajará-Mirim e Estação Ecológica Soldado da Borracha: ambas unidades tiveram suas áreas afetadas por normas estaduais que tinham a intenção de reduzi-las e/ou extingui-las
O decreto nº 27.565, publicado no Diário Oficial (Diof) no dia 28 de outubro, foi assinado pelo governador Coronel Marcos Rocha. O documento cita que o governo “desistiu” da criação da Estação Soldado da Borracha pela falta de orçamento para indenizar as pessoas que tem propriedades no local. Na época, a unidade tinha cerca de 700 imóveis para indenização e desapropriação.
O MP-RO entrou com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) apontando que o documento ofende o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e a proibição do retrocesso ambiental. Cerca de um mês depois, o Tribunal de Justiça de Rondônia (TJ-RO) suspendeu os efeitos da norma.
O Parque Guajará-Mirim e a Reserva Extrativista Jaci Paraná se tornaram alvo de uma lei semelhante, de autoria do governador Marcos Rocha, aprovada na Assembleia Legislativa de Rondônia (ALE-RO) e sancionada em maio de 2021. Logo após a sanção, o Ministério Público do Estado (MP-RO) ingressou com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI).
A partir da aprovação da norma, as duas áreas de preservação citadas sofreram uma redução de aproximadamente 220 mil hectares.
“Essa lei visava exatamente regularizar os grileiros, invasores e criminosos e o Ministério Público e o Poder Judiciário não concordaram com isso. Os dados de satélite mostram que o desmatamento aumentou significativamente, justamente pela sensação de que os invasores e grileiros de que as invasões seriam regularizadas”, comenta Pablo Hernandez Viscardi.
Dados do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon), apontam que no ano seguinte à aprovação da lei, o Parque Estadual Guajará-Mirim esteve dentre as 10 unidades de conservação mais desmatadas de toda Amazônia Legal.
A ONG WWF Brasil também apontou o prejuízo ambiental: as duas áreas juntas perderam, de janeiro a outubro de 2021, 127 km² e quase todo este desmatamento aconteceu depois da aprovação da norma estadual.
Conforme os dados da WWF, o Parque Estadual Guajará-Mirim não teve sequer um km² desmatado entre janeiro e abril do mesmo ano. Após a aprovação da lei, o desmatamento na área já chega a 40 km².
A norma foi declara inconstitucional em novembro de 2021. De acordo com o desembargador Jorge Ribeiro da Luz, relator do processo, o governo justificou a redução apontando que existem pessoas que se ocuparam de vários espaços das unidades, até mesmo para a criação de gado. No voto, ele cita que o Estado não pode simplesmente renunciar o dever de proteger o meio ambiente diante da situação.
“Se os conflitos estão crescendo, se essas 120 mil cabeças de gado estão na reserva extrativista e no parque estadual é porque o poder público tem se mostrado ineficiente na proteção dessas unidades de conservação violando seu dever constitucional”, comentou o desembargador Jorge Ribeiro da Luz na sentença.
A reportagem questionou se o governo enxerga que a lei e o decreto contribuíram para a grande quantidade de incêndios criminosos em unidades de conservação, sobretudo no Parque Guajará, mas não obteve resposta até a última atualização desta reportagem.
Recordes de queimadas e seca extrema
Em 2024, Rondônia bateu recordes de queimadas. Entre janeiro e 5 de setembro foram registrados 7.282 focos: a maior quantidade dos últimos 14 anos para o período.
As queimadas expressivas ocorrem em um período de estiagem e seca extremas. Pela primeira vez, desde que começou a ser monitorado em 1967, o rio Madeira ficou abaixo de um metro. A imensidão de água no rio Madeira foi substituída por bancos de areia gigantes e montanhas de pedras. O nível mais baixo já observado foi o de 19 centímetros, na sexta-feira (11): 19 centímetros.
Os moradores das comunidades ribeirinhas viram os poços amazônicos secos, assim como o rio. Muitas famílias vivem com menos de 50 litros de água por dia para abastecer toda a residência. A quantidade é menos da metade dos 110 litros por dia considerados pela Organização das Nações Unidas (ONU) como necessários para suprir as necessidades básicas de apenas uma pessoa.
Além disso, o céu azul, citado no hino de Rondônia, foi substituído pelo “cinza” causado pelas queimadas na Amazônia. O pôr do Sol “abraçando” o rio Madeira, por exemplo, que fazia parte do dia a dia da população, passou a ser raras ou inexistentes.
*Por Jaíne Quele Cruz, da Rede Amazônica RO