Pesquisadores defendem programa de cisternas para preparar a Amazônia para as próximas secas

Para os especialistas, a magnitude e extensão do impacto climático sobre a população da região nos dois últimos anos requer um programa governamental abrangente, a exemplo do “1 milhão de cisternas” realizado no semiárido nordestino.

Foto: Miguel Monteiro/Instituto Mamirauá

A professora da Universidade Federal Rural da Amazônia (UFRA), Vania Neu, e os pesquisadores do Instituto Mamirauá, Ayan Fleischmann, Maria Cecília Gomes e João Paulo Borges estudam e formulam soluções para os impactos severos das secas sobre as populações e os ecossistemas amazônicos. Fleischmann, por exemplo, monitora os níveis de rios e lagos desde a seca de 2023. Estes dados, além de apoiarem a pesquisa aplicada, são disponibilizados em um grupo no aplicativo Whatsapp que já conta com mais de 1.000 ribeirinhos.

A informação atualizada a cada dia é essencial para as comunidades planejarem a sua rotina de deslocamento de uma comunidade para outra ou para outros municípios. Gomes e Borges, pesquisadores titulares também alocados em Tefé, cidade polo do interior do Amazonas a 600 km de Manaus, desenvolveram um programa de tratamento seguro de água barrenta de rio para situações críticas. Treinaram mais de 100 agentes comunitários de saúde e firmaram parcerias com prefeituras e a ONG Serviço Pastoral do Migrante para financiar a produção de kits de purificação da água. Mais de 5.000 famílias ribeirinhas foram atendidas com o projeto.

Entretanto, o grupo defende que a população necessita de uma ação governamental guarda-chuva de maior vulto. Em 2024, a Amazônia enfrentou a maior estiagem já registrada na região, que chegou logo após o evento recorde de 2023. O Rio Negro, em Manaus, atingiu os menores níveis em mais de 120 anos de medições, refletindo os impactos devastadores da escassez de água, que têm afetado principalmente as populações tradicionais ribeirinhas de toda a bacia amazônica.

Esses povos enfrentam não só a dificuldade de acessar a água para beber e realizar tarefas domésticas e de seu sustento, mas também a interrupção de sua mobilidade, essencial para a vida na região, já que dependem de rios e igarapés para se locomover. A impossibilidade de se deslocar afeta diretamente o acesso a alimentação e a serviços básicos, como saúde e educação, além de dificultar o escoamento da produção local. Em algumas áreas, milhares de ribeirinhos sequer conseguiram exercer o direito de voto nas eleições municipais de 2024 devido à impossibilidade de acessar as seções eleitorais mais distantes, relatam os pesquisadores.

Essas populações vivem em um cenário de constante vulnerabilidade. A escassez de água e as dificuldades de acesso aos serviços de saúde e educação já são desafios recorrentes. Contudo, a crise hídrica de 2024 evidenciou um problema ainda mais grave: a falta de políticas públicas de longo prazo e eficazes, que atendam às necessidades das comunidades tradicionais, especialmente as que vivem nas regiões mais isoladas. Como em muitas áreas da Amazônia, os ribeirinhos não têm acesso a soluções adequadas para garantir o consumo de água potável durante períodos de seca extrema.

A escassez de água na Amazônia exige a adaptação de tecnologias às condições locais. Algumas soluções inovadoras já têm demonstrado eficácia em regiões mais afetadas pela seca, como as cisternas de placas, modelo utilizado no semiárido brasileiro no âmbito do Programa 1 Milhão de Cisternas (P1MC). Cisternas têm se mostrado, também na Amazônia, uma excelente alternativa para o armazenamento de água da chuva em áreas com dificuldades de acesso a fontes de água potável durante a seca.

Um exemplo recente é a instalação de uma cisterna de 50 mil litros na comunidade de Santa Luzia do Catuiri, no Lago Tefé, região do Médio Solimões, em agosto de 2024. A cisterna foi implantada por meio de uma parceria entre o Serviço Pastoral do Migrante, Cáritas/Prelazia de Tefé e UNICEF, como uma solução para o problema da água potável na região. A adaptação desse modelo para a realidade amazônica reflete a importância de ações concretas e eficazes, que utilizem tecnologias apropriadas para as particularidades da região, completa Fleischmann.

Além das cisternas, outras tecnologias sociais também têm sido desenvolvidas para garantir o acesso à água potável na Amazônia. Em uma parceria entre a Universidade Federal Rural da Amazônia (UFRA) e a comunidade ribeirinha do Furo Grande, na Ilha das Onças, no Estuário do Rio Pará, um sistema de captação de água da chuva foi desenvolvido ao longo de 12 anos. Esse projeto tem permitido que centenas de famílias da região garantam o abastecimento contínuo de água potável. “

As tecnologias sociais, de baixo custo e fácil reaplicação, têm transformado a vida das famílias ribeirinhas, garantindo-lhes segurança hídrica e reduzindo doenças relacionadas à água”, explica Vania Neu, doutora em Ecologia Aplicada pela Universidade de São Paulo e professora da Universidade Federal Rural da Amazônia.

A qualidade de vida das famílias beneficiadas com essa tecnologia tem sido visível, com a diminuição de doenças diarreicas e a redução da carga de trabalho das mulheres, que não precisam mais buscar água longe de suas casas.

No entanto, para que essas soluções sejam implementadas em larga escala, é necessário o apoio contínuo de políticas públicas. O Programa Nacional de Saneamento Rural, desenvolvido pela FUNASA e pela Universidade Federal de Minas Gerais, já apresenta diretrizes claras para o saneamento em comunidades rurais. Esse programa tem o potencial de transformar a realidade das populações que ainda vivem sem acesso adequado a serviços de água e esgoto. Contudo, sua implementação ainda precisa ser acelerada.

A replicação de um modelo como o do P1MC na Amazônia é uma solução urgente e necessária, uma vez que a experiência com cisternas e outras tecnologias sociais pode ser a chave para garantir o acesso à água potável nas regiões mais afetadas pela seca. “Com a adaptação de um rograma de cisternas para a Amazônia, seria possível garantir que as famílias tivessem acesso a água potável durante a estiagem e ajudariam a proteger essas comunidades da crescente insegurança hídrica”, afirma Maria Cecília Gomes, doutora em saneamento e meio ambiente e pesquisadora titular do Instituto Mamirauá. 

Essas experiências reforçam a importância de adaptar e escalar tecnologias sociais que atendam às especificidades da Amazônia. Diversos institutos de pesquisa da região têm desenvolvido e aprimorado soluções locais importantes, com mais de 100 tecnologias sociais já reconhecidas, algumas premiadas pela Fundação Banco do Brasil. Contudo, é necessário garantir recursos para que essas inovações sejam implementadas em grande escala a fim de beneficiar milhares de comunidades em toda a região. Pensar soluções de escala para a realidade amazônica, por exemplo aos moldes do P1MC, é extremamente urgente, defende o grupo de pesquisadores.

A preservação da Amazônia depende da garantia de direitos básicos para seus povos. A ausência de acesso à água potável, ao saneamento seguro, à educação e à saúde abre caminho para o avanço do desmatamento, do garimpo ilegal e da exploração predatória das terras. Para garantir a conservação da maior floresta tropical do mundo e enfrentar os desafios impostos pelas mudanças climáticas, é fundamental que políticas públicas eficazes, que possam responder aos problemas atuais e que se perpetuem no longo prazo sejam implementadas.

Isso não só assegurará a sobrevivência das populações amazônicas, mas também permitirá que elas continuem desempenhando seu papel essencial na proteção do meio ambiente. “Os povos da Amazônia desempenham um papel fundamental na conservação das florestas, das águas e da biodiversidade da região, essenciais para o equilíbrio climático global. Garantir direitos como o acesso à água potável e saneamento é uma medida essencial e urgente para fortalecer essas comunidades e, ao mesmo tempo, preservar a floresta”, conclui Vania Neu.

*O conteúdo foi originalmente publicado pelo Instituto Mamirauá

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