Origem amazônica do cacau é comprovada por meio de DNA e revela forte rede de comércio pré-colombiana

Análise de DNA em mais de 350 peças arqueológicas do Alto Amazonas revela partículas de cacau em cerca de 30% delas e comprova cultivo do fruto há mais de 5 mil anos na América do Sul.

Quem encontra um cacaueiro vicejando numa agrofloresta amazônica não imagina quanta história carrega o fruto. Por muito tempo se creditou a origem do cacau ao endereço errado. Evidências arqueológicas apontavam o sul do México e a América Central, a chamada Mesoamérica, como local onde se iniciou a domesticação do fruto há cerca de 4 mil anos. Acreditava-se que, apenas depois, o cacau teria sido levado à América do Sul.

Foi no início dos anos 2000, junto com uma equipe de arqueólogos e antropólogos franceses e equatorianos, que Valdez começou a estudar evidências que pudessem trazer novos conhecimentos sobre os povos antigos que prosperaram no Alto Amazonas, parte andina da Bacia Amazônica localizada no Equador, Peru, Colômbia e Venezuela.

Entre diversas descobertas, os pesquisadores se surpreenderam ao encontrar o DNA do cacau em cerâmicas milenares de uso doméstico e para tradições funerárias. Isso levou a uma reavaliação da origem do fruto: com raízes sul-americanas, as evidências apontam que há cerca de 5.500 anos o cacau já circulava por 19 culturas pré-colombianas.

“A característica mais importante de nossa pesquisa é o fato de colocar as culturas do Alto Amazonas em seu devido lugar, como um povo inovador e fundamental no surgimento dos fenômenos civilizatórios”, diz Valdez. “Agora a sua importância é duplamente reconhecida. Os amazônicos foram capazes de grandes conquistas civilizacionais e a interação regional foi um fator importante”.

Escultura asteca do século 15 com fruto de cacau. Foto: Reprodução/Museu do Brooklyn

Cacau para além da vida

O trabalho dos pesquisadores revelou 400 sítios arqueológicos na região e evidenciou a interação que existia entre os habitantes da Amazônia, das terras altas dos Andes e das planícies e margens da costa do Pacífico.

Ao descobrir as partículas de cacau nas cerâmicas de civilizações de mais de 5 mil anos, a pesquisa revelou que o cacau já era um alimento básico entre os povos daquele tempo. “Estas evidências apareceram no interior de vasos funerários que acompanharam vários indivíduos para a vida após a morte. As mesmas evidências foram também encontradas nas escavações domésticas”, conta Valdez.

Na época, o cacau era degustado em forma de polpa, como bebida, e em receitas elaboradas com o pó da semente torrada, além de ser usado como antisséptico para fins medicinais.

A descoberta foi publicada num artigo em 2018, mostrando que na Alta Amazônia o cacau já existia 1.500 anos antes do que na Mesoamérica.

Foto: Marlon del Aguila Guerrero/CIFOR.

A partir desta descoberta, os estudos sobre o cacau se intensificaram na região. A análise de DNA de mais de 350 peças arqueológicas de museus e de novas escavações, abrangendo um período de quase 6 mil anos, revelou que cerca de 30% delas guardam rastros do fruto.

O novo artigo relata que as partículas de cacau encontradas em cerâmicas de 19 culturas pré-colombianas revelam a mistura genética entre espécies de cacau distantes geograficamente entre si, apontando para as trocas e interações que devem ter ocorrido entre povos da Amazônia e costa do Pacífico e para a adaptação da planta em ambientes diversos.

“Esses dados mostram para nós que o cacau é uma planta sul-americana que foi levada há muito tempo, milhares de anos atrás, em redes de troca desde o centro de sua origem, que está ali na fronteira atual entre o Peru e Equador, no oeste da Amazônia, no sopé dos Andes, e foi levado dali para outras regiões da América do Sul e também para outras regiões das Américas”, avalia Eduardo Góes Neves, arqueólogo e diretor do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo (MAE-USP).

Os pesquisadores sugerem que a história complexa da domesticação do cacau é a base das populações atuais de cacaueiros e este conhecimento pode contribuir para o gerenciamento dos recursos genéticos da planta em tempos de mudanças climáticas.

Entre rios e montanhas

Os primeiros registros históricos do cultivo do cacau na Amazônia brasileira estão ligados à colonização portuguesa e datam da segunda metade do século 17.

Fernando Mendes, engenheiro agrônomo que trabalha com cacau há 44 anos, conta que o fruto teria sido combustível de discórdias entre o Marquês de Pombal e os jesuítas, que na época viam na sua comercialização uma fonte substancial de renda.

Sempre se soube, no entanto, que a domesticação do cacau em terras ameríndias é muito mais antiga do que a invasão dos europeus. “Em sua segunda viagem à América em 1502, Cristóvão Colombo estava em Honduras quando encontrou uma canoa indígena e lá dentro tinha frutos de cacau. Ele ficou muito impressionado com aquele fruto que não conhecia”, conta Mendes, autor de diversos livros sobre o cacau e coordenador regional de pesquisa e inovação da Comissão Executiva do Plano da Lavoura Cacaueira (Ceplac).

Segundo o pesquisador, é difícil precisar quando o cacau entrou em terras brasileiras e igualmente complexo avaliar o início de sua domesticação, que deve ser mais antiga do que os 5 mil anos comprovados pelas partículas detectadas nas peças de cerâmica.

Mendes aponta que a milenar domesticação do cacau por terras amazônicas tornou a espécie mais resistente às mudanças climáticas porque a planta se adaptou ao cultivo em sub-bosque, protegida da luz direta do sol.

Por ser uma planta perene e dispensar o uso do fogo, em sistemas agroflorestais o cacau contribui, inclusive, com a mitigação das mudanças climáticas e ajuda na regeneração da floresta.

“Desde 1996, a Ceplac, na Amazônia, tem como diretriz só oferecer assistência para os produtores que fazem um plantio em áreas antropizadas, nunca utilizando áreas de mata virgem”, diz Mendes. “A nossa contabilidade informa que, de 1996 a 2023, o programa de cacau no estado do Pará já recuperou cerca de 160 mil hectares de áreas”.

*O conteúdo foi originalmente publicado pela Mongabay, escrito por Sibélia Zanon

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