Foto: Euzivaldo Queiroz/Seduc-AM
Quase 30% das cidades com até 50 mil habitantes da Amazônia apresentam um alto grau de vulnerabilidade em relação a eventos extremos, como as secas e enchentes. Esse é o resultado de um estudo realizado por pesquisadores do Pará, Amapá e São Paulo, que analisou as características de 671 pequenos municípios – que cobrem 87% da região amazônica – e avaliou como eles estão preparados para lidar com os efeitos das mudanças climáticas.
Na investigação, os autores consideraram o nível de acesso ao tratamento de esgoto, à destinação adequada dos resíduos e ao abastecimento de água potável, além da presença de moradias inacabadas e degradadas, o número de crianças e idosos, a incidência de malária, a taxa de mortalidade recente pela Covid-19 e o Produto Interno Bruto (PIB) municipal.
Eles criaram uma classificação por meio de um índice que varia de 0 a 1, onde 0 representa uma vulnerabilidade muito baixa aos eventos extremos e 1, uma vulnerabilidade muito alta. O valor aumenta conforme a propensão das populações a sofrerem perdas e danos causados por eventos extremos.
Dentre os 265 pequenos municípios identificados como altamente vulneráveis, 187 (70%) estão em três estados: Pará (73) – que concentra os 11 com o maior índice da pesquisa –, Maranhão (77) e Amazonas (37). Em seguida, há cidades no Mato Grosso (25), Rondônia (20), Acre (14), Roraima (7), Tocantins (7) e Amapá (5).
Altamente vulneráveis – O estudo traz a classificação de ‘alta’ vulnerabilidade e ‘muito alta’ vulnerabilidade. Municípios com pontuação entre 0,4931 e 0,5290 são categorizados como ‘alta’ vulnerabilidade, e aqueles com pontuação acima de 0,5291, como ‘muito alta’.
Pará, Amazonas e Maranhão reúnem municípios mais vulneráveis às mudanças climáticas da Amazônia
Estudo analisou as cidades com até 50 mil habitantes e considerou aspectos sociais, ambientais e econômicos para determinar a vulnerabilidade em caso de eventos extremos.
O estudo afirma que os fatores que mais aumentam o grau de vulnerabilidade das cidades são a precariedade da mobilidade urbana, a dificuldade de acesso à internet e aos meios de comunicação, e a falta de serviços médicos.
“Esses elementos combinados, infelizmente, revelam um perfil de pobreza generalizado ao longo dos pequenos municípios amazônicos”, diz um trecho do artigo.
Situações extremas
A cidade de Eirunepé, no interior do Amazonas, fica às margens do rio Juruá e foi classificada pelos pesquisadores como altamente vulnerável. O local enfrentou chuvas anormais, que causaram enchentes e alagamentos em fevereiro.
Eirunepé, no Amazonas, tem chuvas acima e abaixo da média histórica em 2024
Estudo classificou a cidade do Amazonas como muito vulnerável às mudanças climáticas; com baixa infraestrutura para atuar na redução dos impactos locais, a população enfrenta enchentes e secas severas. Veja o infográfico interativo AQUI.
A variação da chuva continuou no decorrer do ano e Eirunepé é um dos municípios que enfrenta uma grave seca neste ano. O secretário da Defesa Civil da cidade, Benedito Rondinelli, disse à InfoAmazonia que a maior preocupação é conseguir chegar às famílias ribeirinhas, mais impactadas com a falta de infraestrutura e de mobilidade. “As balsas já não chegam mais no município, os voos estavam interditados por conta dessa fumaça que atingiu praticamente todo o Amazonas. A gente está aqui em situação extrema”.
Enquanto os rios não voltam a subir, o trabalho da Defesa Civil tem sido atender as comunidades. Rondinelli afirma que está distribuindo cestas básicas e água potável, mas as distâncias atrapalham o serviço. “Ficou muito ruim para eles pegarem peixe, já não tem mais praticamente o que comer. Então, a gente está orando a Deus para que a chuva venha rápido”.
Os pesquisadores explicam que os indicadores que compõem o índice de vulnerabilidade do estudo, como o acesso à comunicação e ao transporte público, são os únicos que podem ser alterados por políticas públicas locais, como das prefeituras. Isso ocorre porque o aumento dos eventos extremos também está relacionado ao aumento da temperatura e das chuvas, índices que dependem, em grande parte, de medidas de governança global e de acordos climáticos internacionais.
“Política pública é a palavra-chave para as ações direcionadas. Por isso, a gente tem que apontar um dedo para a governança. O prefeito, governador e presidente estão nas esferas governamentais que têm a caneta para fazer política pública, ninguém tem mais”, diz Everaldo Souza, professor do Instituto de Geociências da UFPA e um dos autores do artigo.
Para isso, o professor afirma que as pequenas cidades também precisam avançar nos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), as 17 metas estabelecidas pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 2015 e adotadas pelos países membros, incluindo o Brasil. Entre os ODS, estão a erradicação da pobreza, o desenvolvimento econômico, o acesso à água potável e ao saneamento, a saúde e o bem-estar, e a redução das desigualdades.
A defesa de um modelo ligado à preservação do meio ambiente
A urbanista e professora da UFPA, Ana Claudia Cardoso, afirma que as cidades da Amazônia foram estruturadas a partir de modelos desenvolvimentistas, consolidados desde a década de 1970, com o objetivo de criar cidades seguindo a lógica urbana que hoje conhecemos. Isso resultou na destruição das florestas, na construção de estradas, casas de alvenaria e prédios administrativos na região.
Ela explica que esse modelo “importado” de urbanização se distanciou dos conhecimentos tradicionais dos povos da região, o que incentivou o desmatamento e levou à criação de áreas que hoje sofrem com os impactos das mudanças climáticas e estão vulneráveis, como as cidades analisadas no estudo.
“Há a indução de políticas públicas que forçam um processo de homogeneização e colonização na região [amazônica], para que ela se torne igual àquilo que é tomado como regra, e isso tem nos afastado dessa capacidade ancestral de planejar os processos da natureza”, explica a professora.
Cardoso afirma que as populações eram mais conectadas com os conceitos de preservação da floresta e de manutenção do bem-estar, mas isso mudou à medida que foram adotando conceitos oriundos de conhecimentos não indígenas. Não existia, por exemplo, a distinção entre urbano e rural, dois termos que indicam a separação entre o que é planejado para as cidades e para as comunidades mais próximas dos rios. Para ela, essa visão que separa as cidades e a floresta está impedindo a implementação de medidas efetivas para enfrentar os problemas ambientais e climáticos.
“A seca extrema que tem promovido a matança de peixes e deixado povos indígenas isolados é resultado de políticas públicas que induziram uma série de usos da terra, e o pior é que não estamos regenerando aquilo que permitia que os sistemas fossem mais resilientes, que era regenerar floresta”, diz a professora.
Lilian Souza, assistente social e ativista, conhece bem a diferença apontada por Cardoso entre os projetos pensados para as áreas rurais e urbanas. Ela mora em uma comunidade no ramal São José, na zona rural do município de Careiro, no Amazonas, a 100 km de Manaus. De acordo com a classificação do estudo, a cidade é altamente vulnerável aos eventos extremos. Souza afirma que o acesso à educação, à saúde e até a outros serviços básicos, como energia elétrica, é difícil na sua região.
“As escolas não têm nenhuma estrutura, e as comunidades não possuem poços de água. Quando têm [poços], eles não têm profundidade suficiente para garantir água durante o ano todo. Quando chega a época da seca, o poço também seca”, diz.
Com uma população de 30,7 mil pessoas, o município não possui Unidade de Terapia Intensiva (UTI). Em caso de um desastre ambiental que prejudique a saúde de um morador, ele precisará ser transferido para a capital, Manaus. Para isso, um deslocamento de, em média, quatro horas deverá ser realizado.
“Quando a gente fala que é do Amazonas, as pessoas de fora ficam até encantadas, pensando nas belezas que temos aqui. Mas vivemos em cima da riqueza e ao mesmo tempo somos um povo pobre, infelizmente. Quando a gente vai conhecendo a realidade, vemos que as pessoas não têm acesso ao conhecimento. Elas vão aceitando tudo, sem cobrar nada”, diz Souza.
Como parte da solução, a professora Ana Cardoso afirma que o modelo tradicional de vida das comunidades indígenas precisa ganhar relevância na busca por políticas públicas. “Ainda existem outras formas de viver. As comunidades mostram que é possível e que somos capazes de coexistir com o bioma, desde que o rio não esteja totalmente contaminado, desde que a floresta não esteja pegando fogo. Os ribeirinhos, os seringueiros, todos têm uma boa relação com o território, com perspectivas diferentes das que foram colocadas pelo desenvolvimento dos municípios”, afirma.
Como analisamos a vulnerabilidade dos municípios aos eventos extremos?
Nesta reportagem, analisamos dados do estudo “Pequenos municípios da Amazônia sob risco de futuras mudanças climáticas”, desenvolvido por oito instituições, incluindo quatro universidades (três na Amazônia e uma no Sudeste). A InfoAmazonia focou no indicador de vulnerabilidade criado pela pesquisa, sob orientação de Everaldo Souza, um dos autores da pesquisa e professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências Ambientais (PPGCA) do Instituto de Geociências da UFPA.
O estudo avaliou o risco de desastres ambientais e eventos extremos considerando três fatores principais: a ameaça de eventos climáticos extremos, a exposição da população e do meio ambiente, e o grau de vulnerabilidade em várias dimensões (sociais, econômicas, ambientais e de infraestrutura local). Foram utilizados os dados do Censo 2022, realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), para identificar os 671 municípios da Amazônia Legal com menos de 50 mil habitantes. Mais detalhes sobre a pesquisa estão disponíveis aqui.
*O conteúdo foi originalmente publicado pela InfoAmazonia, produzido pela Unidade de Geojornalismo InfoAmazonia, com o apoio do Instituto Serrapilheira, escrito por Jullie Pereira