Manejo do pirarucu fortalece proteção territorial em terras indígenas no Amazonas

O manejo de pirarucu é a primeira atividade remunerada com dinheiro que eles desenvolvem e principal fonte de renda dos Paumari atualmente.

Há 14 anos, os Paumari das Terras Indígenas (TI) Lago Manissuã, Lago Paricá e Cuniuá, na área de influência da BR-319, passavam por um momento desafiador, com escassez de alimentos e invasões do seu território. Tudo mudou quando eles decidiram que era hora de sistematizar atividades de fortalecimento econômico e territorial e buscaram elaborar um plano de manejo sustentável de pirarucu. No início, eles tinham apenas 266 peixes nos lagos, entre adultos e juvenis. Atualmente, têm mais 11 mil e a realidade é bem diferente, com fartura e organização social consolidada. A última pesca de 2022 rendeu 650 peixes, totalizando 33 toneladas de carne de pirarucu. Hoje, a atividade é a mais importante fonte de renda dos Paumari, em Tapauá, no Amazonas.

Francisco Braz da Silva de Oliveira, o Chico Paumari, estava lá no começo dessa história. “Primeiro tentamos a apicultura, mas vimos que não era uma atividade boa pra gente. Então fomos atrás de parcerias para o manejo de pesca. Só que achávamos que o retorno viria logo, mas não foi assim. Levamos cinco anos para conseguir a primeira pesca”, recordou. 

A escassez era tanta, que muitos Paumari deixaram os territórios em busca de melhores condições de vida em outros locais. “Muitos saíram porque não tínhamos mais recursos o suficiente para garantir o bem-estar de todos”, disse Chico. “Nem todo mundo acreditava que a gente ia conseguir, mas mostramos que somos um povo capaz de resistir”, destacou. Hoje, Chico é um dos coordenadores da pesca.

Os Paumari, assim como outros povos da região do rio Purus, foram impactados pelo Ciclo da Borracha, que desestruturou a organização social e o modo de vida dos indígenas. Os que sobreviveram, foram inseridos no trabalho em seringais e outras atividades paralelas. Por muito tempo, os Paumari praticaram atividades econômicas baseadas no escambo, em que trocavam, por exemplo, açaí e pescado, e, também, arrendavam suas terras para exploração, em troca de favores, equipamentos e outros alimentos, mas não dinheiro. O manejo do pirarucu é a primeira atividade remunerada com dinheiro que eles desenvolvem.

Chico Paumari (em pé) é o coordenador da pesca Paumari. Foto: Adriano Gambarini/OPAN

Para mudar essa realidade, Chico contou que um dos maiores desafios foi unir sete aldeias das três terras indígenas em torno do propósito de elaborar o plano de manejo de pesca. “O entrosamento foi um pouco difícil, pois cada qual queria seguir um caminho diferente, mas quando entendemos que o caminho deveria ser coletivo, os planos começaram a dar certo”, disse Chico Paumari.

Ana Paula Lima Reis, a Ana Paula Paumari, secretária da Associação Indígena do Povo das Águas (AIPA), também acrescentou que a pesca do pirarucu ajudou os indígenas a se apropriarem do território. 

“O manejo foi uma estratégia muito importante para a nossa melhoria de vida. Na época em que começamos, estávamos passando por um momento muito difícil de acesso a peixe e até à caça, também não tínhamos ideia de como melhorar. Hoje, temos fartura, não só de pirarucu, mas de outros peixes, e um ambiente mais sadio, pois, antes, não sabíamos o quão importante era manter a floresta em pé. Agora, sabemos e mostramos a importância disso aos nossos filhos e nossos netos, o que dá segurança a gerações futuras”,

explicou Ana Paula Paumari.

Os mais de 83 mil hectares das três TIs contam com sete bases de vigilância em pontos estratégicos, onde os indígenas se revezam em escalas durante seis meses ao ano. “Mesmo morando dentro da terra, não sabíamos o valor que nossas terras tinham. Agora sabemos a importância que ela tem. Por isso, defendemos com mais propriedade as árvores, os animais silvestres, tudo. Temos o maior cuidado com o nosso ambiente para não haver fogo, desmatamento, nenhum tipo de retirada de recursos”, disse Chico Paumari.

Chico e Ana Paula estiveram em Manaus (AM) no mês de dezembro (de 2022) para participar de um encontro do Coletivo Pirarucu, uma rede de manejadores e manejadoras de pirarucu das bacias dos rios Negro, Solimões, Juruá e Purus, no Amazonas, que trocam experiências e desenvolvem propostas e estratégias conjuntas para a valorização e o fortalecimento do manejo participativo do pirarucu, e para a comercialização do pescado a preços justos. Em 2019, o grupo criou a marca coletiva Gosto da Amazônia, com o objetivo de expandir a venda do pirarucu de manejo fora da Amazônia, com a abertura e consolidação de mercados no Rio de Janeiro, em São Paulo e em Brasília.

A presença no evento também é uma vitória dos Paumari. “Éramos um povo escondido”, disse Chico. “Hoje, a gente viaja para diversos locais para debater o manejo do pirarucu e mostrar o que fazemos nas nossas terras”, acrescentou orgulhoso.

O pescado Paumari é comercializado a R$ 8 o quilo. Descontados os custos de insumos e serviços, as famílias recebem 6 reais pelo quilo, em parceria com a Associação dos Produtores Rurais de Carauari (Asproc), uma das maiores organizações de base comunitária da Amazônia brasileira.

Manejo dá visibilidade a mulheres Paumari

Mãe, manejadora e atual secretária da Associação Indígena do Povo das Águas (AIPA), Ana Paula Paumari tem entre as suas prioridades de atuação o protagonismo feminino nas atividades de pesca. “Antes, a gente, enquanto mulher, não tinha muito envolvimento com a atividade de manejo. Também, não sabíamos da importância de participar. Há três anos, começamos a ir a reuniões, pedir espaço para dar opinião, falar, e hoje nós já vemos a nossa presença de maneira diferente e com mais maturidade. Se tem algum evento, vem um homem e mais uma mulher para representar a associação”, explicou Ana Paula.

“As mulheres, hoje, estão tão envolvidas no manejo quanto os homens. Antes, os homens falavam e a gente só escutava, agora isso mudou. Éramos mais tímidas, mas agora temos uma coragem e uma força maior. Nos sentimos mais valorizadas”,

destacou.

Ana Paula Paumari é secretária da AIPA e uma das maiores lideranças femininas do território. Foto: Divulgação/Coletivo Pirarucu

As mulheres Paumari também participam do manejo em diversas atividades, que estão divididas entre vigilância, contagem, reuniões, pesca e cozinha. “A pesca é um evento grande, que mobiliza muita gente e uma estrutura muito grande, que vai desde quem conta o número de peixes até quem cozinha pra alimentar quem está trabalhando”, acrescentou Ana Paula.

Quem são os Paumari

Os Paumari se autodenominam Pamoari, nome da língua que falam pertencente à família linguística Arawá, e são um dos poucos povos indígenas do médio rio Purus que conseguiram sobreviver, sem confrontos armados, à exploração da borracha na região. Em contato com os não indígenas há, pelo menos, 200 anos, pois são mencionados em fontes históricas desde 1845, ficaram conhecidos como “nômades do Purus”, devido à grande capacidade de mobilidade e a suas habitações tradicionais, construídas em cima de balsas, chamadas “flutuantes”, por isso também são chamados de “povo das águas”. Até onde se sabe, eles habitam desde sempre, exclusivamente, a bacia do médio rio Purus e seus afluentes, os rios Ituxi, Sepatini e Tapauá, no Amazonas. O local onde fica o município de Lábrea (AM) era território Paumari. Em 2010, a população indígena Paumari era estimada em 1.559 pessoas, incluindo as moram em contexto urbano, no entorno das terras e em territórios Apurinã.

Fonte: Instituto Socioambiental

Pirarucu: símbolo da capacidade de renovação e recuperação do ambiente

O pirarucu é um dos peixes mais famosos da Amazônia, seja pela sua versatilidade gastronômica ou pela imponência física, sendo uma das maiores espécies de água doce do mundo. Ele está em risco de extinção, devido à pesca descontrolada e, desde 2004, sua pesca está proibida fora de área de manejo e segue normas determinadas pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama). Mas a pesca ilegal ainda é muito comum, mesmo caracterizando crime ambiental previsto por lei.

Por isso, uma parte importante do plano de manejo elaborado pelos Paumari é o monitoramento territorial. “A vigilância territorial dos Paumari parte do pressuposto de reordenar e criar um certo controle sobre o território. É importante entender que, em regiões como o sul do Amazonas, quanto mais recursos naturais esses territórios têm, mais cobiçados eles são”, explicou o indigenista e coordenador do Programa Amazonas da Operação Amazônia Nativa (OPAN), Diogo Henrique Girotto. A OPAN é uma das organizações membro do Observatório BR-319 e atua em parceria com os indígenas Paumari, Jamamadi, Banawa e Apurinã no Amazonas.

“A Amazônia como um todo tem problemas que precisam ser resolvidos, mas o sul do Amazonas é uma região muito pressionada e bastante sensível. A TIs Lago Manissuã, Lago Paricá e Cuniuá estão entre as menores da Amazônia e, juntas, formam um bloco e ainda têm um entorno relativamente preservado, mas sem ordenamento territorial. É importante que em futuro bem próximo, esses territórios sejam incluídos em mosaicos de Áreas Protegidas para garantir a continuidade e a reprodução do modo de vida dos Paumari”, 

avaliou Girotto.

Reunião comunitária realizada durante a pesca. Foto: Adriano Gambarini/OPAN

O indigenista colaborou com a implantação do plano de manejo nos territórios Paumari. Ele explicou que todo processo de pesca do pirarucu depende da recuperação natural do estoque do peixe. “O processo da pesca é um cálculo ambiental de capacidade de produção”, disse. 

“O pirarucu sempre foi um peixe importante para a economia do estado Amazonas. Hoje, com o advento dos manejos, que traz proteção à espécie, é muito emblemático que um peixe em risco de extinção possa ser pescado, comercializado e atender a mercados através do processo de recuperação de estoques”, acrescentou Diogo.

“É nítida a resposta da natureza quando as comunidades estão organizadas. O pirarucu é um símbolo da capacidade de renovação e recuperação e mostra que, através do manejo, há uma mudança de paradigma que traz eficiência e resposta. O maior ganho é o resultado que vem pra dentro das terras indígenas, com fartura, com a manutenção do modo de vida dos povos, que podem se desenvolver de maneira digna e equilibrada com o entorno das terras indígenas”, avaliou Diogo.

Curiosidades sobre o pirarucu

– O nome pirarucu vem de dois termos indígenas: pira, “peixe’, e urucum, “vermelho”, devido à cor de sua cauda;

– Por muito tempo, acreditou-se que a Arapaima gigas, nome científico do pirarucu, fosse a única espécie existente na Amazônia, mas, hoje, a ciência já identificou outras quatro;

– Quando adulto, pode medir de dois a três metros e pesar de 100 a 200 kg;

– Possui dois aparelhos respiratórios: as brânquias, para a respiração aquática, e a bexiga natatória modificada, que funciona como pulmão para respiração aérea, parecida com a humana;

– Os pirarucus podem ficar embaixo d’água apenas entre 10 e 20 minutos;

– Quando respiram fora da água, emitem um ruído alto semelhante a uma tosse e pode ser ouvido de longe;

– Vive em lagos e rios afluentes de águas claras, não é encontrado em lugares com fortes correntezas ou em águas com sedimentos;

– É um animal onívoro, pois se alimenta de seres animais e vegetais.

Fontes: WWF Brasil e National Geographic Brasil

Pirarucu manejado sendo transportado em triciclo no território Paumari. Foto: Adriano Gambarini/OPAN

Conteúdo publicado originalmente pelo Observatório BR-319. Para mais informações acesse Observatório BR319.
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