Entre as cerca de 2.500 espécies de peixes encontradas na Bacia Amazônica, dois bagres ocupam um lugar especial na economia dos estados da região e na biologia mundial, a dourada (Brachyplatystoma rouseauxii) e a piramutaba (Brachyplatystoma vaillantii).
Além de serem bastante apreciados na culinária e terem um alto valor comercial, esses peixes realizam as mais longas migrações em água doce. A dourada chega a nadar aproximadamente 11 mil km durante o seu ciclo de vida.
Mas no ano passado esse peixe teve seu grau de ameaça atualizado na Lista Vermelha da União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN), agora considerada como ‘vulnerável’ à extinção. A piramutaba, que ainda não consta na lista, também deve figurar em breve ali, antecipam especialistas.
Outro passo dado para chamar a atenção do mundo sobre a ameaça à sobrevivência dessas duas espécies emblemáticas de peixes amazônicos foi a inserção na lista da Convenção sobre Espécies Migratórias de Animais Selvagens (CMS), conhecida como Convenção de Bonn, durante um encontro realizado pelos membros do tratado em Samarkand, no Uzbequistão, em fevereiro de 2024.
Estupiñán explica que os animais migratórios listados no Apêndice I são aqueles que necessitam de medidas mais drásticas de proteção por estarem muito ameaçados. Já os inclusos no Apêndice II são espécies que começam a preocupar especialistas e indicam que medidas devem ser tomadas para melhorar o seu estado de conservação, evitando que sua ameaça à extinção aumente.
Mais longa migração em água doce do mundo
Esses dois grandes bagres encontrados no norte do Brasil são peixes de couro, ou seja, sem escamas. Esse é um dos motivos pelos quais agradam tanto os cozinheiros locais, pois sua limpeza e retirada de espinhas são muito mais fáceis. A dourada é bem maior, pode atingir até 80 cm na fase adulta e 40 kg; já a piramutaba chega no máximo a 40 cm e pesa de 6 a 8 kg.
E o que torna o ciclo de vida de ambos tão peculiar e, ao mesmo tempo, tão frágil nos dias atuais, é justamente a longa distância percorrida durante o processo de migração.
Estima-se que a piramutaba viaje cerca de 5.500 km, desde o estuário do Amazonas, em Belém, área rica em alimentos, na transição entre o rio e o mar, até Iquitos, no Peru, onde faz a desova. Depois disso, as larvas são levadas pela correnteza de volta ao canal principal dos rios, como o Solimões e o Amazonas.
Contudo, a jornada da dourada é realmente a mais impressionante porque ela volta ao lugar onde nasceu, nos sopés da Cordilheira dos Andes, para se reproduzir – um percurso migratório de 11 mil km, o mais longo conhecido pela ciência entre espécies de água doce.
É como, caso houvesse um rio imaginário, a espécie nadasse, ida e volta, de Boa Vista, em Roraima, até Porto Alegre, no Rio Grande do Sul. Do extremo norte ao extremo sul do país.
Só que, nos últimos anos, os cursos dos rios que a dourada e a piramutaba utilizam foram alterados. Duas usinas hidrelétricas de grande porte, Jirau e Santo Antônio, foram construídas entre 2008 e 2016, no Rio Madeira. Elas estão entre as maiores do mundo.
Os impactos observados por pesquisadores sobre as duas espécies foram enormes, como citou Estupiñán mais acima. Nos países vizinhos, aconteceu o mesmo.
Segundo ela, a captura da dourada em áreas acima das hidrelétricas brasileiras caiu mais de 70% nos rios tributários da Bolívia. “Isso demonstra que um grande volume de peixes não consegue mais migrar por causa dessas barreiras. Houve a interrupção da conectividade”.
Falta de estatísticas pesqueiras
Não são somente as barragens que provocam o declínio na população desses bagres amazônicos, predadores de topo de cadeia – eles também sofrem com a pesca.
Tem-se mais informações e números sobre a dourada, mas especialistas sabem que a piramutaba também sofre com as mesmas ameaças. Entretanto, não existem estatísticas oficiais, apenas levantamentos promovidos por algumas organizações ou pesquisas acadêmicas.
Na prática, isso significa que não se tem a mínima ideia do que, onde e quanto é capturado de peixes nos rios da Bacia Amazônia, ou é comercializado nos principais portos e mercados da região. Então, como é possível proteger espécies ameaçadas sem saber o volume e o que está sendo pescado?
O atual governo federal, todavia, parece estar mais interessado no problema. Promovido a Ministério da Pesca e Aquicultura – na gestão anterior era uma secretaria –, o órgão irá apoiar um monitoramento da pesca em toda a bacia da Amazônia brasileira, que começará em 2024, terá duração de um ano e poderá ser renovado.
“Queremos entender como está a pressão sobre essas espécies e seus estoques. Iremos analisar informações como dados biométricos e desembarque de peixes, por exemplo”, diz a professora da Universidade de Rondônia, que fará parte do estudo.
É importante ressaltar que não são apenas a dourada e a piramutaba que estão ameaçadas. Um levantamento inédito divulgado recentemente alerta que 44% das espécies migratórias globais apresentam queda em suas populações. Dentre os peixes, o relatório State of the World’s Migratory Species aponta que a situação é ainda mais preocupante, com uma redução de 90% na população de 37 espécies de peixes migratórios desde os anos 1970.
“Em relação ao impacto das espécies do Rio Madeira, ele é difícil de ser revertido. O objetivo agora é evitar que seja ainda maior, com a construção de novas usinas naquela área. E é fundamental que haja uma ação conjunta entre vários países”, conclui.
*O conteúdo foi originalmente publicado pela Mongabay, escrito por Suzana Camargo