Parque Nacional da Serra do Divisor está distribuído nos municípios de Cruzeiro do Sul, Mâncio Lima, Porto Walter, Rodrigues Alves e Marechal Thaumaturgo, no Acre, e faz fronteira com o Peru. Foto: Marcos Vicentti / Secom-AC
Unidades de conservação (UCs) na Amazônia Legal perderam 87.591 km² de áreas protegidas nos últimos 24 anos, área equivalente a 57 cidades de São Paulo. Um levantamento da InfoAmazonia revela que, entre 2000 e 2024, as legislações do Brasil destinadas à proteção desses territórios sofreram 60 alterações por meio de projetos de lei e judicialização, enfraquecendo sua efetividade.
A reportagem identificou que essas alterações legislativas reduzem os limites, flexibilizam o uso ou extinguem completamente essas áreas protegidas. Essas ações são conhecidas como PADDD (sigla em inglês para Protected Area Downgrading, Downsizing, and Degazettement), nome dado por acadêmicos de conservação ambiental nos anos 2000 para esse processo que engloba desde a redução até a extinção de áreas legalmente protegidas. O levantamento inclui 106 PADDD no período, sendo que 46 foram cancelados e 60 efetivados – somente nove foram revertidos.
O levantamento da InfoAmazonia tem como base os dados da plataforma colaborativa PADDDtracker.org, criada pela WWF, uma organização de conservação global, em parceria com a Conservation International. A ferramenta é alimentada com informações governamentais dos países mapeados, estudos científicos, decisões políticas e informações obtidas por organizações locais e internacionais, que permitem monitorar padrões e tendências desses eventos.
A reportagem também atualizou os dados de PADDD até 2024, isso foi possível por meio da análise de processos em andamento e consultas a registros oficiais no legislativo relacionados aos eventos na Amazônia Legal. Em 2025, sete propostas ainda tramitam no Congresso Nacional e na Justiça e buscam reduzir territórios ou flexibilizar regras, abrindo espaço para exploração agropecuária, madeireira e mineral. Caso sejam aprovadas, essas mudanças poderão impactar 13.448 km², uma área nove vezes maior que o território da cidade de São Paulo.
Muitas vezes, os projetos de lei para redução de território, diminuição do grau de proteção ou extinção de áreas protegidas não são acompanhados de uma avaliação dos impactos socioambientais. Há casos em que as decisões políticas são baseadas em interesses econômicos, sem uma análise técnica adequada.
No Brasil, as Unidades de Conservação (UCs) são regulamentadas pela Lei nº 9.985, de 18 de julho de 2000, que instituiu o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza (SNUC). A gestão das UCs federais é responsabilidade do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio).
As UCs dividem-se em duas categorias principais: Proteção Integral e Uso Sustentável. As de Proteção Integral, como os Parques Nacionais, têm como objetivo a preservação da natureza, permitindo apenas o uso indireto de seus recursos naturais, como pesquisas científicas e turismo ecológico. Já as UCs de Uso Sustentável, como as Áreas de Proteção Ambiental (APAs), buscam conciliar a conservação da natureza com o uso sustentável de parte dos recursos naturais, permitindo atividades econômicas controladas.
A reclassificação de um Parque Nacional para uma APA representa um enfraquecimento na proteção ambiental, uma vez que amplia as possibilidades de uso e ocupação humana, comprometendo potencialmente a integridade dos ecossistemas antes protegidos de forma mais restritiva.
No Acre, o PL 6024/2019 pretende transformar o Parque Nacional Serra do Divisor, uma UC de Proteção Integral, em APA, o enfraqueceria a proteção ambiental, abrindo espaço para desmatamento e exploração econômica, por exemplo. O texto do PL 6024/2019 também prevê a redução da Reserva Extrativista (Resex) Chico Mendes, que pode perder 7.758 hectares.
No Amapá, o PL 3087/2022 propõe retirar 8 mil hectares do Parque Nacional Montanhas do Tumucumaque para o Distrito Parque de Vila Brasil, enfraquecendo a legislação vigente na região. No Amazonas, a APA dos Campos de Manicoré sofre pressão para liberação da exploração mineral, com investigações do Ministério Público Federal sobre possíveis crimes ambientais.
O Parque Estadual Cristalino II, localizado no Mato Grosso, enfrenta uma disputa judicial que pode levar à redução de seus limites para expandir a agropecuária. No Pará, a Floresta Nacional de Jamanxim, que já perdeu 57% de sua área original por alterações legais anteriores, pode sofrer novos cortes com o PL 8107/2017. No Tocantins, embora ainda não exista um projeto de lei formalizado, há discussões no Senado sobre a redução do Parque Nacional do Araguaia. Especialistas alertam que essas propostas podem acelerar o desmatamento, comprometer a preservação da biodiversidade e ameaçar o modo de vida das comunidades tradicionais.
Interesses econômicos ameaçam preservação ambiental
Em 2021, um caso emblemático marcou as decisões jurídicas sobre o desmonte de unidades de conservação em Rondônia. A Procuradoria Geral do Estado de Rondônia (PGE-RO) ingressou com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) contra a Lei Complementar Estadual n. 999/2018, que extinguiu 11 áreas protegidas. A lei, inicialmente proposta para extinguir somente a Estação Ecológica Soldado da Borracha, foi ampliada pela Assembleia Legislativa do estado para incluir outras 10 unidades.
A Procuradoria argumentou que a extinção das unidades comprometia a biodiversidade amazônica e feria o interesse público, configurando um retrocesso ambiental. O processo legislativo que aprovou a medida foi aprovado às pressas, desrespeitando requisitos legais, como análises de impacto. Parte das áreas foi recriada pela Lei Complementar Estadual 1.089 de 2021, mas surgiram dúvidas sobre os limites territoriais e a abrangência das novas delimitações. O caso continua sendo debatido no âmbito jurídico, o que evidencia o conflito entre desenvolvimento econômico e preservação ambiental na Amazônia.
As áreas protegidas desempenham um papel essencial na proteção ambiental, na mitigação do aquecimento global e na conservação da biodiversidade. A Amazônia Legal, que abrange os estados do Acre, Amapá, Amazonas, Maranhão, Mato Grosso, Pará, Rondônia, Roraima e Tocantins, abriga 359 unidades de conservação, de acordo com dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). Juntas, elas somam 1,25 milhão de km² de florestas, uma extensão maior que a soma dos territórios da França e da Espanha.
As mobilizações social e política, além do trabalho do judiciário, resultaram no cancelamento de 46 propostas de eventos PADDD, entre 2008 a 2024, que poderiam ter impactado cerca de 172.052,84 km² – o equivalente a 14% das florestas protegidas na Amazônia brasileira.Um estudo publicado em fevereiro de 2024 na revista Nature, liderado pelo pesquisador da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) Bernardo Flores, mapeou as áreas da Amazônia mais vulneráveis a atingir pontos críticos, ou tipping points, nos quais mudanças climáticas e degradação comprometeriam a capacidade de regeneração da floresta.
A pesquisa destaca a importância das UCs e terras indígenas, que apresentam taxas mais baixas de desmatamento e degradação, na preservação da resiliência do bioma. Flores alertou que o processo de PADDD, que reduz a cobertura florestal, prejudica a reciclagem de água pela floresta e diminui a capacidade de transporte de chuvas, afetando a estabilidade do sistema.
Hidrelétricas ampliam desmatamento
Em artigo publicado em 2024, a pesquisadora da Universidade de São Paulo (USP), Silvia Mandai, juntamente com colaboradores, investigou os impactos do desmatamento em unidades de conservação, com foco na região das usinas hidrelétricas de Jirau e Santo Antônio, no rio Madeira em Rondônia, e Belo Monte no Xingu (PA). Os resultados da pesquisa mostraram um aumento do desmatamento após a construção das usinas, principalmente em terras indígenas próximas a Belo Monte. Foram identificados 27 eventos PADDD, sendo quatro diretamente relacionados às usinas, permitindo a exploração madeireira e expansão agrícola.

Entre as alterações destacadas, em 2011, há a Estação Ecológica Serra dos Três Irmãos (ESEC) e a Floresta Estadual de Rendimento Sustentável Rio Vermelho C (FERS), que tiveram seus territórios reduzidos para viabilizar a Usina Hidrelétrica Santo Antônio. No mesmo ano, a Resex Jaci-Paraná também sofreu alterações pelo mesmo motivo. Já em 2010, a Floresta Nacional (Flona) Bom Futuro teve parte de sua área suprimida para permitir a construção da Usina Hidrelétrica Jirau.
Em entrevista a InfoAmazonia, a pesquisadora destacou que “as áreas protegidas ao redor das hidrelétricas tiveram taxas de desmatamento maiores na fase de operação, quando o controle ambiental diminuiu e políticas ambientais foram enfraquecidas”. Mandai acrescentou que “eventos PADDD, especialmente no governo estadual de Rondônia, priorizaram projetos agropecuários e de infraestrutura em detrimento da preservação. Apesar de não causarem diretamente o desmatamento, as hidrelétricas atuam como vetores para atividades que pressionam as áreas protegidas, agravadas por fragilidades na gestão, fatores políticos e invasões”.
O estudo também apontou que o enfraquecimento das políticas ambientais e a crise democrática no Brasil agravaram o desmatamento após a operação das hidrelétricas. Segundo Mandai, “as terras indígenas ao redor de Belo Monte tiveram taxas de desmatamento maiores entre 2018 e 2020, provavelmente resultantes do desmonte das políticas ambientais e indígenas”.
Pressões políticas e socioambientais
O vice-presidente da organização não governamental Ação Ecológica Guaporé (Ecoporé), Marcelo Ferronato, alerta que as decisões políticas sobre a reclassificação das unidades de conservação têm ampliado a pressão socioambiental em Rondônia.
“No caso das hidrelétricas de Jirau e Santo Antônio, os impactos acumulativos exemplificam como decisões políticas e econômicas, muitas vezes desconectadas das necessidades das comunidades locais, geram deslocamentos populacionais e mudanças nos modos de vida, além do enfraquecimento da proteção ambiental ao redor das obras”, afirma.
Ferronato destaca que a Ecoporé acompanha de perto os efeitos dos eventos PADDD e os conflitos socioambientais decorrentes das mudanças em áreas protegidas. “Um exemplo recorrente são as pressões por exploração de recursos naturais e expansão agropecuária, que frequentemente resultam em perda de biodiversidade, degradação ambiental e tensões sociais entre comunidades tradicionais, indígenas e outros atores locais”.
O monitoramento das propostas de PADDD é essencial para garantir que qualquer alteração seja conduzida de forma criteriosa. Caso haja real necessidade de implementá-las, é fundamental que sejam precedidas por estudos de impacto socioecológico detalhados, com base científica sólida e ampla participação social.
“É indispensável promover uma gestão eficaz das áreas protegidas, com financiamento adequado, fiscalização rigorosa e sua inclusão em planejamentos estratégicos, como a Avaliação Ambiental Integrada, para assegurar que as decisões não comprometam a conservação da biodiversidade e o bem-estar das comunidades locais”, destaca a pesquisadora Mandai.
Em alguns casos, a perda de proteção legal de áreas ambientalmente protegidas é compensada por ajustes territoriais, como um PADDD de 2024, envolvendo a Reserva Extrativista do Rio Ouro Preto e a Reserva Extrativista do Lago Cuniã, ambas em Rondônia. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva sancionou a Lei nº 15.039/2024, que reduziu o tamanho da Reserva do Rio Ouro Preto em aproximadamente 20 mil hectares, enquanto ampliou a Reserva do Lago Cuniã em cerca de 24 mil hectares.
A ONG Ecoporé tem promovido iniciativas para a recuperação de áreas degradadas, e mantém um dos maiores viveiros florestais de Rondônia, produz mudas que são destinadas à recuperação de áreas degradadas, mas Ferronato reconhece que os desafios políticos, e a falta de interesse de alguns setores locais em respeitar as normas ambientais, dificultam essa luta.
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Esta reportagem foi realizada com o apoio do Programa Vozes pela Ação Climática Justa (VAC), que atua para amplificar ações climáticas locais e busca desempenhar um papel central no debate climático global. A InfoAmazonia faz parte da coalizão “Fortalecimento do ecossistema de dados e inovação cívica na Amazônia Brasileira” com a Associação de Afro Envolvimento Casa Preta, o Coletivo Puraqué, PyLadies Manaus, PyData Manaus e a Open Knowledge Brasil.
*O conteúdo foi originalmente publicado pela InfoAmazonia, escrito por Fernanda Pessoa