A realidade da Reserva Legal na Amazônia e o Projeto de Lei 3334/2023

As Reservas Legais, juntamente com as APPs, desempenham um papel essencial nesse contexto, protegendo a vegetação nativa e garantindo acesso aos benefícios proporcionados pelos ecossistemas.

Nota técnica de Heron Martins (1) e Ima Vieira (2)

A função social da propriedade e a reserva legal estão intrinsecamente relacionadas na legislação brasileira. A função social da propriedade, estabelecida na Constituição Federal de 1988, implica que o direito de propriedade deve atender aos interesses coletivos e promover o bem-estar social, além dos interesses individuais do proprietário.

De acordo com a Lei de Proteção da Vegetação Nativa (Lei nº 12.651/2012), a reserva legal é uma área dentro de uma propriedade rural que deve ser preservada com vegetação nativa, com a finalidade de garantir a conservação da biodiversidade, a prestação de múltiplos serviços ecossistêmicos e o uso sustentável dos recursos naturais em propriedades rurais.

As Reservas Legais, juntamente com as Áreas de Preservação Permanente (APPs), desempenham um papel essencial nesse contexto, protegendo a vegetação nativa e garantindo acesso aos benefícios proporcionados pelos ecossistemas (3).

Apesar da existência da legislação, é comum encontrar a ausência de reserva legal em diversas propriedades rurais. Isso se deve ao fato de que muitos proprietários veem a reserva legal como uma imposição que traz prejuízos à propriedade, considerando-a um fator prejudicial ao seu uso e desenvolvimento. Na Amazônia, o déficit de Reserva Legal alcança 9,7 milhões de hectares (4).

No entanto, é importante lembrar que a exploração econômica na Reserva Legal é permitida pelo Código Florestal através de manejo sustentável. A coleta de produtos florestais não madeireiros é permitida, desde que observados períodos de coleta, volumes regulados e técnicas que preservem as espécies. Para exploração florestal sem finalidade comercial, destinada ao consumo no próprio imóvel, não é necessária autorização, apenas a declaração prévia ao órgão ambiental. Já a exploração com finalidade comercial exige autorização do órgão competente e deve manter-se a cobertura vegetal.

Status das Reservas Legais em propriedades rurais na Amazônia

A percepção equivocada da sociedade sobre a legislação que rege as propriedades na Amazônia muitas vezes gira em torno da ideia de que todas as propriedades são obrigadas a preservar obrigatoriamente 80% de sua área como Reserva Legal (RL). No entanto, essa compreensão se baseia na interpretação limitada ao Artigo 12, inciso I e alínea ‘a’ da Lei 12.651/2012 (Lei de Proteção da Vegetação Nativa, também conhecida como Código Florestal), que na realidade se aplica apenas a imóveis em áreas de floresta.

É importante ressaltar que as outras alíneas do mesmo artigo e inciso estipulam percentuais menores de reserva legal, como 35% ou 20%, para propriedades localizadas em diferentes formas de vegetação. Além disso, o Código Florestal prevê três exceções que permitem que algumas propriedades, mesmo em áreas de floresta, possuam reserva legal inferior a 80%.

Portanto, o Código Florestal contempla seis possibilidades distintas de regras para o percentual de Reserva Legal, sendo 80% apenas uma delas, conforme ilustrado na figura a seguir:

Figura 1: Regras para definição da Reserva Legal (RL) na Amazônia segundo a Lei de Proteção da Vegetação Nativa.

Um estudo inédito na Amazônia (5) aplicou as principais regras que regem a definição da Reserva Legal (RL) na Amazônia a 389 mil imóveis rurais da região cadastrados em 2020 no Sistema de Cadastro Ambiental Rural (SICAR). Como base para os cálculos, foram utilizadas as classes de cobertura do Projeto de Mapeamento da Cobertura e Uso do Solo do Brasil (PRODES) referentes a 2018, o Zoneamento Ecológico-Econômico (ZEE) da Amazônia Legal e o mapa de uso do solo de 2012 do Terra Class (INPE/EMBRAPA).

O estudo indica que a maioria dos imóveis rurais na Amazônia (78%) não está sujeita à obrigação de manter 80% de sua área como Reserva Legal, conforme estipulado pelo Código Florestal em vigor. A regra mais comum é aquela aplicada às propriedades com área inferior a 4 Módulos Fiscais (MF), para as quais existe uma exceção exclusiva (artigo 67). Além disso, vimos que os estados com histórico mais significativo de desmatamento, e consequentemente com maiores áreas consideradas consolidadas segundo o Código Florestal, apresentam o maior percentual de propriedades com reserva legal abaixo de 80%, conforme ilustrado na figura 2.

Figura 2: Percentagem Reserva Legal para os estados da Amazônia.

O Projeto de Lei 3334/2023 é desnecessário

Em junho de 2023 foi protocolado no Senado o Projeto de Lei 3.334/2023, que prevê que imóveis rurais localizados em áreas de florestas na Amazônia Legal possam reduzir sua cobertura mínima de vegetação de 80% para até 50% sob o argumento que a lei é aplicada de forma desigual entre as regiões do País e que a exigência de Reserva Legal, embora conservacionista, compromete o desenvolvimento econômico das propriedades rurais e de toda a região.

Este projeto está prestes a ser analisado pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) e permite uma redução significativa das áreas protegidas nos Estados e municípios, inclusive em territórios de Forças Armadas e isso pode acarretar sérios impactos ambientais, como o desmatamento em áreas sem zoneamento definido (6).

Além disso, o projeto pressupõe consentimento automático caso os conselhos estaduais do meio ambiente não se manifestem em 60 dias, ignorando a importância de sua análise técnica.

Por outro lado, os ruralistas afirmam que são excessivamente penalizados por uma reserva legal muito restritiva, mas isso não procede de forma alguma, pois como mostramos aqui, a legislação ambiental atual já apresenta considerável flexibilidade na aplicação do percentual de reserva legal na Amazônia. Ademais, as propriedades com áreas já consolidadas são as mais beneficiadas com reduções na exigência de reserva legal, e qualquer mudança adicional que flexibilize ainda mais essa definição poderá impactar negativamente as áreas de floresta, uma vez que estas são as áreas ainda não sujeitas a flexibilizações conforme a legislação atual.

Com base no exposto, posicionamo-nos contra o PL 3334/2023, uma vez que a reserva legal não impõe restrições severas ao uso da terra para atividades produtivas, como agricultura e pecuária, dado que a legislação em vigor já proporciona uma flexibilidade considerável na aplicação do percentual de reserva legal na região. Considerando ainda que esse retrocesso socioambiental significativo ocorra em um momento de crise climática, isso só agravaria o quadro de degradação ambiental e vulnerabilidade climática na Amazônia.

Referências

1 Chefe do Laboratório de Análise Geoespacial/Centro de Análise de Crimes Climáticos

2 Pesquisadora Museu Paraense Emilio Goeldi/ Assessora da Presidência FINEP

3 Metzger, J.P., et al. Why Brazil needs its Legal Reserves. Perspect Ecol Conserv. 2019;17:91–103.

4 https://termometroflorestal.org.br/plataforma

5 Martins, H. A Reserva Legal na Amazônia Brasileira: A Real Obrigação de Conservação de Vegetação nos Imóveis Rurais. 2023 Anais do XX Simpósio Brasileiro de Sensoriamento Remoto.

6 WWF, 2023. Reserva Legal em áreas de florestas da Amazônia Legal.

*Com informações do Museu Goeldi

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