Benigno, espanhol de 17 anos. Foto: Acervo público/Divulgação/Domínio Público
Por Júlio Olivar – julioolivar@hotmail.com
Os espanhóis eram numerosos na região do Vale do Rio Madeira e estavam presentes desde os tempos dos jesuítas, no século XIX. A área do atual estado de Rondônia, segundo o Tratado de Tordesilhas de 1498, era originalmente um domínio espanhol, status que só foi alterado em 1750 com o Tratado de Madri. Avançando no tempo para o século XX, o contexto era o do Brasil República, com suas fronteiras definidas – o Acre foi o último território incorporado em 1903, retirado da Bolívia, colonizada pelos espanhóis.
Durante a construção da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, vivia na região um adolescente espanhol da Galícia chamado Benigno Cortizo Bouzas. Ele morava com seu irmão Anselmo, falecido em janeiro de 1908 e enterrado no Cemitério de Santo Antônio, e seu primo Bernardo, falecido na Bahia em 1933.
Em 1911, com apenas 17 anos, Benigno vivia na vila de Santo Antônio, nas barrancas do Alto Madeira, a sete quilômetros de onde fica a cidade de Porto Velho. Algo o marcou profundamente naquele ano: a chegada do navio de passageiros Satélite, trazendo degredados do Rio de Janeiro, então capital da República.

Na embarcação do Loide Brasileiro vieram para o futuro território de Rondônia remanescentes da Revolta da Chibata, desordeiros sociais, cafetões, mendigos, velhos, crianças, prostitutas e pessoas pobres e sem rumo, vítimas do Governo Federal, que tentava fazia uma assepsia na Cidade Maravilhosa. Totalizavam 444 indivíduos conduzidos por 50 praças desde o Rio. Entre eles, partícipes da Revolta que combatia a aplicação dos castigos físicos impostos a marinheiros., ocorrida a 22 de novembro de 1910, na Baía de Guanabara, liderada por João Cândido, o “Almirante Negro” – um filho de escravizados que não veio para o degredo na Amazônia, ficou preso no cárcere na Ilha das Cobras, no RJ.
Benigno testemunhou toda a movimentação às margens do Rio Madeira, atônito, registrando a chegada dessa carga humana destinada a trabalhar na Comissão Rondon e nos seringais. Vinte e uma prostitutas foram acolhidas pela linha telegráfica, enquanto outras 23 foram abandonadas à própria sorte. Algumas foram estupradas durante a viagem, feridas e gravemente agredidas; outras, envelhecidas, apanharam muito.
Após a triste travessia, os homens foram submetidos a trabalho árduo, muitos deles despojados de qualquer direito, entregues aos vícios e à escravidão. Afirmou o deputado Irineu Machado, na tribuna da Câmara Federal: “O intuito [do presidente da República, Hermes da Fonseca] foi o de lançá-los à miséria e ao desespero (…), desterrá-los sem abrigos e em condições insalubres, pantanosas, e sem recursos”.

Um aristocrata quase degredado
Por muito pouco, o boêmio Agenor Novais, um carnavalesco incorrigível do início do século XX, não chegou às barrancas do Rio Madeira para ser despojado de todos os benefícios que poderia ter desfrutado como legítimo “sangue azul”. Ele era filho do Barão de Novais (Elias Dias Novais) e foi preso no Satélite a mando do próprio pai; o nobre não o queria por perto, por desagregar a família com seus hábitos libertinos. O degredo seria um castigo.
No entanto, o advogado Peixoto de Castro, amigo do jovem, conseguiu um habeas-corpus para Agenor, que era visto como intelectual e poeta. Por conta da decisão judicial, ele conseguiu desembarcar do Satélite em Belém e retornar ao Rio de Janeiro, onde continuou sua vida gozando da liberdade, para o desespero de sua família.
Agenor foi aluno do poeta Carlos de Laet no Colégio Diocesano entre 1900 e 1903, e com ele adquiriu o amor à literatura e ao jornalismo. O rapaz havia escrito um diário durante sua viagem até o degredo, mas este lhe foi surrupiado pelo Exército. Ele morreu solteiro e sem filhos, em 1938, levando consigo suas impressões sobre aquela fatídica aventura no bárbaro Satélite.

O poeta circulava entre nomes como Olavo Bilac, trabalhou no jornal “A Época”, escreveu para “O Malho” e, em 1913, editou a revista “O Turf”, especializada em corridas de cavalo. Além disso, participou de diversas atividades culturais e esportivas, dirigindo o Sport Club e compondo a diretoria da Liga Municipal de Futebol, na capital da República. Foi também rábula. Em 1915, Agenor esteve presente no velório do poeta Aníbal Teófilo – um dos pioneiros na prática da literatura na região de Porto Velho.
Assassinados durante a viagem em pleno 1° de janeiro

Os ladrões e assassinos tinham sido retirados da cadeia pelo delegado de polícia José Antônio Flores da Cunha da Casa de Detenção do Rio e atirados no porão do navio. Sessenta e seis marinheiros, recolhidos de uma prisão do Quartel do Exército, receberam ordens de embarque, mesmo estando anistiados pelo presidente Hermes da Fonseca. Do Quartel do 1º Regimento de Infantaria saíram outros, os marinheiros. Seus nomes estavam marcados de vermelho, na lista entregue ao comandante por Flores da Cunha. Sinal de que deveriam ser assassinados.
Foram infiltrados agentes da polícia para simularem um levante e isso justificar a morte dos degradados. Tudo planejado com a anuência dos tenentes Francisco Mello e João da Silva Leal, este que, mais tarde, tornou-se deputado pela UDN do Ceará. Os tenentes teriam comandado os fuzilamentos. O jornal “A Época”, do Rio de Janeiro, comparou o Navio Satélite aos antigos navios negreiros, da época da escravização de africanos no Brasil. “Os dois momentos históricos são irmãos”.

Os assassinatos ocorreram em pleno 1º de janeiro, nas proximidades da Bahia, no porão da embarcação, a mando do Estado. Antes de chegarem a Rondônia, destino da carga, já estavam mortos: Aristides Pereira da Silva (“Chaminé”) – o mais odiado porque teria urinado sobre o cadáver de Baptista das Neves, oficial morto numa luta de espada durante a Revolta da Chibata, em novembro –, Ricardo Benedito, Nilo Ludgero Bruno, Manuel Elísio de Araújo, Hernani Pereira dos Santos (“Sete”), Isaías Marques de Oliveira, José Alexandrino dos Santos, Vitalino José Ferreira, Argemiro Rodrigues de Oliveira – anteriormente, na década de 1890, este foi soldado na 15º Batalhão de Infantaria da Bahia e trabalhou como zelador, até migrar para o Rio de Janeiro e conseguir vaga na Marinha.
“Eu me salvei de ir ao degredo [em Porto Velho] porque fiquei muito popular, e os jornais gritavam muito. Tive que ser poupado naquele momento, mas sofri muito”, afirmou o Almirante Negro em entrevista ao jornal “Mundo Ilustrado”, em 1956.

O experiente capitão Carlos Brandão Storry, comandante do Satélite, era descrito como um bonachão “do tipo inglês”, e quem, de fato, mandava na tripulação era o Tenente Melo. De qualquer forma, coube a Storry elaborar o relatório da travessia, realizada entre 25 de dezembro de 1910 e 4 de março de 1911.
Na viagem iniciada na noite de natal, nove foram assassinados em alto mar e dois homens cometeram suicídio, jogando-se na água com os pés em mãos amarrados. É o que deixou assinalado o comandante Storry em seu diário de bordo, em 1º de janeiro: “Eu me afastei da costa para serem fuzilados seis homens, o que fizeram às duas da manhã (no dia seguinte foram mais três). Ao todo, foram mortos nove dos bandidos que conduzimos. Esta medida extrema foi a única possível nas condições que nos achávamos”.
Segundo a fajuta versão oficial relatada pelo Capitão Storry, os marinheiros assassinados representaram um risco à vida da tripulação. Os sete marinheiros teriam embarcado “livremente” com destino ao porto do Pará. No primeiro dia de viagem, eles teriam se amotinado. Vitalino José Ferreira e Hernani “Sete”, de acordo com o relatório, passaram armas e munições para seus camaradas presos. Todos acabaram rendidos, amarrados e assassinados “por questão de segurança” dos demais passageiros.
No Centro de Documentação Histórica do Poder Judiciário de Rondônia, constata-se, por amostragem, que era grande o número de degredados envolvidos na teia social que os empurrava aos delitos e à violência. Na Estrada de Ferro, foram escorraçados a tiros antes mesmo de o paquete Saltélite tentar ancorar na cidade-empresa. Sem emprego e sem destino, precisavam sobreviver, a qualquer custo.
O livro de Benigno
Mais tarde, o jovem Benigno – que foi o único que anotou tudo com o olhar de quem não estava contaminado pelo governo opressor e nem era parte diretamente daquele cadeia de horror – voltou à Europa, onde residiu entre 1921-1923, casando-se e tendo o filho primogênito, Sócrates. Depois, instalou-se em Pernambuco e escreveu, na década de 1930, um livro de memórias intitulado “De la Amazonia al Infinito – una vida, apuntes, nueva teoría”, publicado em 1950 pela editora Diário da Manhã, de Recife, contendo 148 páginas e 29 ilustrações. São anotações que ele conservava desde 1908, presenciando e trabalhando nas obras da ferrovia e a chegada do sombrio Navio Satélite.
No livro, há também histórias do cotidiano regional. Alguns casos narrados por Benigno sugerem um cenário de filme de faroeste, como esta: “Don Carlos Frias, peruano, e Don Júlio Vilagut, espanhol, de Barcelona, eram sócios. Frias subia e descia o Rio Madeira levando mercadorias variadas e trazendo borracha; Vilagut residia em Santo Antônio.

Certa tarde, se encontravam jogando uma partida de bilhar e, repentinamente, Don Julio acusou severamente Don Carlos: – Me disseram, Frias, que tu estás namorando minha mulher. – Homem, namorando não, mas dormindo com ela sim, respondeu Frias.
Sacaram seus revólveres e fizeram vários disparos, sendo que um deles fez em pedaços uma garrafa de conhaque que eu tinha na mão. Um circunstante, que nada tinha a ver com a pendência, morreu de um balaço no fígado. Os dois contendores saíram ilesos, mas o negócio Frias e Vilagut veio abaixo com elevadas perdas para as praças de Manaus, Belém do Pará e Liverpool.'”
O destemido espanhol com têmpera e vocação de escritor contribuiu significativamente para a história ao documentar o caso do paquete Satélite e tantas outras experiências na grande aventura humana na região do Alto Madeira. Morreu em 1º de janeiro de 1953, atuando como comerciante, residindo à Rua Ulhoa Cintra, 122, em Recife (PE). Deixou esposa, Rosa Moreira Vidal, e oito filhos.
Sobre o autor
Júlio Olivar é jornalista e escritor, mora em Rondônia, tem livros publicados nos campos da biografia, história e poesia. É membro da Academia Rondoniense de Letras. Apaixonado pela Amazônia e pela memória nacional.
*O conteúdo é de responsabilidade do colunista