​Calçada Alta: o point da gastronomia portuguesa na sociedade amazonense

“A sociedade amazonense tem um sotaque português, regada a muito azeite e bacalhau”, afirmava o imigrante português Antônio das Dores Pereira da Silva, fundador do Restaurante Calçada Alta.

Antônio das Dores Pereira da Silva

A verdade é que, para reconhecer-se em toda a sua extensão, em todo o seu significado e em todas as suas minúcias, o que é a ação dos portugueses que emigraram para a Amazônia e muito especialmente para o Estado do Amazonas, é fundamentalmente indispensável saber como eles aqui chegaram, como se aclimataram e de que forma exerceram suas atividades para sobrevivência.

Cumpre ver como eles aqui trabalharam e continuam trabalhando muito especialmente os seus descendentes como concorrem os descendentes para a formação étnica para preservação da nacionalidade, dos costumes e de suas histórias, imprimindo quer pela comunidade da língua e dos sentimentos, quer pelo caldeamento operado pela formação de suas famílias, naturalmente sem perder o caráter nitidamente lusíada.

Na atividade comercial, na construção civil, no início do século, na organização de padarias, mercearias e bares, figuram eles, os lusitanos, com uma parcela muito grande no desenvolvimento do Amazonas, em particular no período áureo da borracha quando em Belém (PA) e em Manaus e nos núcleos urbanos do interior do Estado com maior expressão demográfica e econômica, criaram dezenas de estabelecimentos comerciais, com que exerceram uma salutar atividade econômica.

Antônio das Dores Pereira da Silva. Foto: Acervo da família

Essas verdades históricas resultam o espírito de luta dos bravos irmãos lusitanos e seus descendentes que se deslocam do seu país para desbravar a nossa terra. Isto não significa apenas a conquista de seu bem-estar social, mas principalmente o crescimento de nossa região. É neste sentido que encontramos a figura do português Antônio das Dores Pereira da Silva, que se tornou uma referência no Bar e Restaurante Calçada Alta.

Antônio das Dores Pereira da Silva, com os filhos Carlos e Adriane. Foto: Acervo da família

“A sociedade amazonense tem um sotaque português, regada a muito azeite e bacalhau. Foi com essa afirmação que o imigrante português Antônio das Dores Pereira da Silva afirmava e definia a contribuição de seu Restaurante Calçada Alta na Rua Costa Azevedo n.96, Centro, fundado no início da década de 90, para o cenário social e a vida noturna de nossa cidade.

Porém, antes de entrar no ramo culinário e se firmar como uma das personalidades e proprietário de um dos restaurantes mais famosos da cidade, Antônio lutou muito, especialmente contra a solidão e a saudade de casa. Veio para Manaus em 1957, com 19 anos, porque estava cansado de sua cidade, Póvoa de Varzim, e sua juventude lhe permitia essa aventura. Naturalmente já tinha contato com amigos que viviam em Manaus e que falavam bem da cidade. O que era para ser uma aventura, tornou-se sua vida da qual se orgulhava muito.

Antonio das Dores Pereira e a esposa Clementina Bento da Silva. Foto: Acervo da família

Esse imigrante português acabou construindo suas raízes familiares em Manaus. Casou-se com a senhora Luso Brasileira Clementina Bento da Silva e o casal trouxe ao mundo quatro filhos: Carlos Alberto Bento da Silva, Adriane Maria Bento da Silva e Marco Antônio Bento da Silva. Transcorria o ano de 1960, quando com ajuda dos amigos portugueses montou uma oficina de veículos especializada na recuperação de latarias. 

Foram momentos de muita dificuldade, até que as pessoas pudessem acreditar no seu trabalho profissional. Com o passar dos anos os filhos foram crescendo e ele via a necessidade de melhorar seu padrão de vida, para poder pagar especialmente os estudos dos filhos projetando para eles um futuro melhor, foram tempos difíceis, mas vencidos”.

Clementina Bento da Silva. Foto: Acervo da família

Clementina Bento da Silva, Nathalia Silva (neta), Larissa Silva (neta), Carolina Silva Costa (neta) e Adriane Silva (filha). Foto: Acervo da família

Adriane Maria Bento da Silva, Tania Maria Ladislau e Clementina Bento da Silva. Foto: Acervo da família

Carolina Costa, Adriane Silva, Larissa Silva, Tânia Ladislau, Keury Silva, Marco Silva, Clementina Silva e Fábio Sanches. Foto: Acervo da família

No ano de 1991, Antônio das Dores Pereira da Silva decidiu dar um novo rumo a sua vida e montou uma lanchonete chamada ‘Doce Sabor’ no mesmo espaço de sua residência na Rua Costa Azevedo, aproveitando os dotes culinários de sua esposa. Iniciaram vendendo salgados, bolinhos de bacalhau, especialmente os doces que sua esposa produzia. Apesar de terem receio se a culinária portuguesa agradaria, foram aos poucos introduzindo pratos típicos.

Ah! Quem não se lembra da primeira fornada do Bacalhau à Espanhola, feito com lascas de bacalhau, camadas de batata, cebola e tomate. Após cozinhar no azeite português era levado a mesa para o deleite de seus clientes. Na culinária portuguesa vale a pena lembra que o azeite tem uma importância muito grande e que o casal procurava trabalhar com azeite importado da melhor safra portuguesa.

Banda do Calçada Alta. Foto: Acervo da família

Já naquele período o ‘Restaurante Calçada Alta’ se tornou o ambiente frequentado por secretários de Estados, prefeitos, governadores, personalidades do mundo jurídico, membros da maçonaria e a sociedade como um todo. O que deixava este imigrante português bastante orgulhoso. No mundo do Carnaval, de 1993 a 1996, criaram a Banda Carnavalesca Calçada Alta, com um potente carro de som festejando a quadra de momo. Tudo isso promoveu o restaurante e atraiu multidões inclusive nos dias normais de semana.

A culinária portuguesa era o forte com o Bacalhau a Espanhola, embora outros pratos fossem oferecidos. Mas, em 1994, a família resolveu expandir os negócios aproveitando a marca Calçada Alta, cuja maior alegria é ter o nome tombado pelo patrimônio histórico em 1996. Os ventos bons da economia levaram a expansão do ambiente do restaurante o que motivou a compra do prédio ao lado para ampliar e oferecer mais conforto aos seus clientes. Não podemos negar que ao adentrarmos no ambiente, o restaurante nos proporciona uma viagem a Portugal pelo charme da decoração de extremo bom gosto.

Marco com os pais, Antonio das Dores e Clementina Bento. Foto: Acervo da família

Naquele período a cozinha era de responsabilidade de dona Clementina e naturalmente de seu esposo Antônio. Quando a demanda apertava não era nenhum problema para Antônio, pois sua mãe em Portugal o ensinara a cozinhar. 

Outro fato histórico que deve ser destacado é a presença no restaurante de artistas nacionais que quando estão em Manaus frequentam este ambiente, e entre tantos destaco o Jorge Aragão. A família Silva dedica um carinho muito especial ao intelectual, escritor, ex-prefeito e ex-deputado estadual Serafim Corrêa, que além de frequentador sempre estimulou o empreendimento.

O Calçada Alta sob novo comando 

Chefe Marco Antônio Bento da Silva

A longa trajetória desse espaço gourmet permitiu ao jovem chefe de cozinha trabalhar para não deixar de ser uma referência em excelência gastronômica em nossa cidade, guardando na memória e na tradição o seu velho pai que veio da cidade de Póvoa de Varzim para nos ensinar a degustar a velha e tradicional comida portuguesa. Foram muitos e incontáveis as figuras de portugueses que se reuniam para jogar conversar fora e saborear um bom prato português: Belmiro Vianez, Fernando Maravalhas, Manuel Meireles, Comendador Emídio Vaz d’Oliveira, Comendador Alfredo Ferreira Pedra, Comendador José Azevedo e tantos outros nomes ligados a comunidade lusa no Amazonas. 

O novo chefe “continuador” deste sonho empreendedor sempre era lembrado por seu pai que haveria de substituí-lo após a sua morte, isso é a grande realidade da continuação da tradição desta casa portuguesa. Vale a pena relembrar também, que no início do projeto, o filho Luis Eduardo Bento da Silva teve participação fundamental no desenvolvimento do restaurante Calçada Alta, junto à família.

A sua mãe Clementina também tinha as suas raízes em Portugal, o seu pai era da cidade de Coimbra, cujas mãos produziam excelentes doces e que foram conhecidas no mundo das delícias portuguesas como dona Quelê.

Marco Silva. Foto: Acervo da família

A chegada de Marco Antônio a frente do restaurante deu uma nova cara ao ambiente, ganhando um novo visual internamente e externamente, com nova iluminação, sem falar nos novos pratos criados por Marco Antônio e sua filha Natália que já desponta na condução da cozinha. São muitos os pratos ali oferecidos: filé à manteiga, bacalhau ao forno, bacalhau à espanhola, feijoada de frutos do mar, petiscos de linguiça picante. Com o prato Patanisca de bacalhau, o chefe Marco Antônio ganhou vários prêmios do Concurso Comida de Boteco.

Administrado hoje por Marco e Keury da Silva, o restaurante é a grande prova da continuação de uma história iniciada pelo seu pai Antônio das Dores Pereira da Silva e de sua esposa Clementina Bento da Silva, é uma prova do poder da transformação e do triunfo da vontade vencer. A educação dos filhos conduzida pelos pais foi o maior patrimônio que eles puderam legar aos filhos.

Marco e Keury da Silva, atuais administradores. Foto: Acervo da família

O pioneirismo da gastronomia portuguesa e a identidade de uma família marca a presença desses lusos brasileiros na história da imigração portuguesa no Amazonas. É sem dúvida um registro que marca a vida de uma família, não só pela experiência da nova síntese de um período glamoroso, mas pelo congelamento futurista que somado a colagem de fragmentos deixados por seus pais nos traz visões rápidas e múltiplas do nosso cotidiano urbano da Rua Costa Azevedo.

É nesse ambiente da gastronomia, de efervescência cultural, econômica e política que esses lusos brasileiros fincaram os registros da família e de Portugal e dessa forma devemos entender e inserir a fonte prodigiosa que documentou e documenta toda essa história familiar.

Sobre o autor

Abrahim Baze é jornalista, graduado em História, especialista em ensino à distância pelo Centro Universitário UniSEB Interativo COC em Ribeirão Preto (SP). Cursou Atualização em Introdução à Museologia e Museugrafia pela Escola Brasileira de Administração Pública da Fundação Getúlio Vargas e recebeu o título de Notório Saber em História, conferido pelo Centro Universitário de Ensino Superior do Amazonas (CIESA). É âncora dos programas Literatura em Foco e Documentos da Amazônia, no canal Amazon Sat, e colunista na CBN Amazônia. É membro da Academia Amazonense de Letras e do Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas (IGHA), com 40 livros publicados, sendo três na Europa.

*O conteúdo é de responsabilidade do colunista

Publicidade
Publicidade

Relacionadas:

Mais acessadas:

Saneamento é inclusão: indígenas contam como acesso à água em Manaus muda o conceito de cidadania

Universalização do saneamento básico no maior bairro indígena de Manaus, o Parque das Tribos, é meta para 2030, segundo concessionária.

Leia também

Publicidade