A farinha de Cruzeiro do Sul se aperfeiçoou após a chegada dos primeiros migrantes, principalmente cearenses, que fugiam da Grande Seca do Nordeste entre os anos 1877 e 1880.
“Nego véi, pode faltar tudo, menos a nossa farinhazinha. A gente come no café, no almoço e na janta. É bom demais!”
No Mercado Municipal Beira-Rio, não importa a hora, o vai e vem de pessoas é constante. O local é uma das principais referências de compra e venda de farinha. O movimento começa antes mesmo do raiar do dia, quando os sacos do produto, que pesam 50 quilos, chegam em veículos ou embarcações das mais diversas comunidades rurais e ribeirinhas dos cinco municípios do Vale do Juruá para abastecer o comércio.
Rodeado de tonéis abarrotados de farinha e com a característica lata de um litro na mão, a medida mais utilizada para a venda em pequenas quantidades, o popular retalho, Eulisson Lima, o Siri, tenta chamar a atenção dos clientes ao dizer que possui o melhor produto da cidade. Do ponto herdado do pai, há uma década, ele tira o sustento da família. A depender do movimento, entre cinco e dez sacos são vendidos, diariamente.
“Vem gente de todo canto comprar farinha aqui comigo. Tenho clientes até em São Paulo, que encomendam e levam. O produto que eu vendo é de excelente qualidade e o pessoal gosta muito. A farinha tradicional da branca é a que mais sai”,
explica o comerciante.
A cada dois meses, Leonardo Correia renova o estoque de farinha dele e da irmã, que mora em Rio Branco. De uma só vez, ele fez a compra de 25 quilos do alimento.
“Igual essa farinha não tem, tanto é que a minha irmã não compra farinha na capital porque muita gente vende lá dizendo que é de Cruzeiro do Sul e não é. Ela pede para eu comprar daqui e mandar para lá”,
revela.
No restaurante de Antônio Evangelista, a farofa não pode faltar entre as guarnições servidas juntamente com o churrasquinho. Por semana, cerca de 150 quilos do produto são consumidos no estabelecimento. “É praticamente um item obrigatório e os nossos clientes pedem muito. Todo bom acreano adora uma farinha, né?”, comenta.
Uma tradição secular
A farinha de Cruzeiro do Sul se aperfeiçoou após a chegada dos primeiros migrantes, principalmente cearenses, que fugiam da Grande Seca do Nordeste, entre os anos 1877 e 1880, quando o Brasil era um império e o atual território do Acre pertencia à Bolívia e ao Peru. Milhares de retirantes vieram para a Amazônia impulsionados pela promessa de uma vida próspera e farta a partir do trabalho de extração do látex das seringueiras. Mas a realidade da época era outra, repleta de dificuldades.
Os nordestinos trouxeram seus hábitos e costumes alimentares, entre eles a produção da farinha. A troca de conhecimentos com os indígenas locais, que já plantavam e consumiam mandioca, aliada à junção de novas técnicas e etapas ao modo de preparo, entre outras adaptações rudimentares, foram responsáveis pelas características inconfundíveis deste alimento produzido no extremo oeste do país.
“O que aconteceu no fim do século XIX foi a fusão das culturas indígena e nordestina. A mandioca já era um alimento bastante consumido pelos nossos indígenas, mas diferente dos nordestinos, eles não possuíam a técnica de produzir farinha. Foi um começo bastante complicado e com muitos ajustes, que acabaram dando certo e resultaram neste produto que conhecemos hoje”,
acrescenta Joana Leite, pesquisadora da área de Ciência e Tecnologia de Alimentos da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa).
Após o fim do Primeiro Ciclo da Borracha, o principal produto da região entrou em decadência e novas alternativas econômicas ocuparam espaço, entre elas a fabricação de farinha. Com uma qualidade bem superior às demais, o alimento despontou e ganhou cada vez mais fama, espaço no mercado e caiu no paladar das pessoas ao longo dos anos.