Quarta feira de Cinzas, fico tentado a escrever sobre a dura situação que o País atravessa hoje, mas repenso e coloco na tela em branco do computador a lembrança desses vários dias de folia. O Carnaval é uma festa barata (salvo, evidentemente, para meia dúzia de endinheirados que, como em outras situações, se entrincheira em camarotes ou no luxo de suas vidas; mas isso constitui uma escolha, não uma imposição do Carnaval).Não é necessário nenhuma indumentária especial para se aproveitar a folia momesca, além das fantasias simples que cada um pode inventar; a cerveja é relativamente acessível ao bolso da população; e muita gente carrega debaixo do braço sua cachaça ou sua batida, que é o combustível do pobre e não custa muito preparar. E quem não gosta de esbaldar-se pode ficar observando de perto ou de longe, saboreando ou analisando aquele comportamento insólito de tanta gente que perde a timidez, embola, rebola, saltita, sapateia, baila, rodopia. E a crítica social é exercida de forma criativamente rica nas figuras carnavalescas de fantasiados e grupos que se reúnem para divertidamente tocar nas questões do momento ou para simplesmente exercer sua capacidade de achar graça da vida.
Como ex-folião, não consigo enxergar mal-estar nessa grande festa. Não se trata de alienação ou de incapacidade de ver a realidade. Aprendi, que essa ginástica frenética do populacho, especialmente da rapaziada dos subúrbios, muitos até de coturnos, nada mais é do que a defesa que cada um faz do seu espaço de dança.
Neste ponto, há muitos passos que se assemelham à capoeira, as origens deles devendo-se ao envolvimento de capoeiristas nos antigos desfiles para proteção das agremiações, como nos ensina o pesquisador e amante dedicado do carnaval, meu amigo Leonardo Prestes Martins, curtindo hoje em dia o carnaval da velha mundurucanha.
O Carnaval verdadeiro, aquele da contagiante animação popular, não contém ingredientes de mal-estar. Violência? certamente existe, mas em proporções menores do que no dia-a-dia sangrento de nossas cidades. Brigas, no Carnaval, que costumava presenciar eram as naturais e, tantas vezes, tolos desentendimentos de namorados, amantes ou esposos, que se estranham por motivos muito humanos e compreensíveis, pois afinal o Carnaval permite muita coisa, ninguém é de ferro e amor sempre produz reações irracionais.
Evidentemente, tudo seria muito melhor e a sã alegria não teria limites, se a nossa fosse uma sociedade justa, sem baixos níveis de educação, sem desrespeitos à lei, sem sonegação de impostos, sem formas cotidianas violentas de as pessoas se verem e tratarem. Uma sociedade com o potencial de bom convívio, por mais respeito aos direitos humanos e por melhores condições de educação, produziria carnavais de incomensurável alegria. De qualquer forma, uma boa dose dessa mesma alegria foi encontrada, gratuitamente, nas bandas tradicionais de Manaus, e as não tradicionais que iniciaram pelo nome dos bares frequentados pelos boêmios.