Apis mellifera em Gorotire, no Pará. Foto: J.M.F. Camargo/Abelhas Sem Ferrão do Pará
O pesquisador João Maria Franco de Camargo foi um grande naturalista e exímio artista e observador. As abelhas indígenas sem ferrão (Meliponini) da Amazônia foram cuidadosamente estudadas por ele, durante as suas expedições à Amazônia realizadas entre 1963-2001, quando percorreu 16.000 km de hidrovias.
Esses registros, que têm como foco as abelhas sem ferrão da região de Carajás, no Pará, estão no livro ‘Abelhas Sem Ferrão do Pará a partir das Expedições Científicas de João M. F. Camargo‘, organizado por Vera L. Imperatriz-Fonseca (Instituto de Biociências) e Denise A. Alves (Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq), disponível para download gratuito no Portal de Livros Abertos da USP.
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Autodidata e especialista, Camargo conhecia profundamente as abelhas sociais do Brasil. Por isso, em 1976, foi aceito para o mestrado na Universidade Federal do Paraná, orientado nos estudos de taxonomia de abelhas pelo padre Jesus S. Moure. Suas habilidades o definiram como um dos grandes naturalistas das abelhas do século 20, cuja obra incluiu dados obtidos em campo e as publicações subsequentes, assim como a coleção por ele concebida e implementada na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FFCLRP-USP), onde foi docente.
Camargo reuniu uma das maiores e melhores coleções de Meliponini neotropicais (abelhas sem ferrão), grupo no qual era especialista, e descreveu três novos gêneros e 86 espécies em colaboração com outros cientistas ou sozinho. Sua contribuição ficou evidenciada também na seção ‘Meliponini’ publicada no ‘Catálogo de Abelhas (Hymenoptera, Apoidea) na Região Neotropical‘ [em inglês, Catalogue of Bees (Hymenoptera, Apoidea) in the Neotropical Region], quando reviu, com sua colaboradora Silvia R. M. Pedro, toda a literatura científica existente sobre as espécies de abelhas sem ferrão neotropicais até o ano 2004, incluindo comentários sobre as identificações taxonômicas das espécies. O acervo total é estimado em 250 mil espécimes de abelhas. Desses, 150 são de Meliponini neotropicais, especialmente da Amazônia.
O livro apresenta informações sobre os ninhos, os hábitos de vida e os produtos das colônias, como mel, resinas, cerume e pólen. Também aborda o uso tradicional dessas abelhas por povos pré-colombianos e comunidades locais, destacando aspectos bioculturais recorrentes.
A publicação inclui ainda registros fotográficos das espécies e seus ninhos, digitalizados a partir da fototeca do pesquisador, atualmente preservada na USP – o material auxilia na identificação de espécies em áreas de supressão vegetal (remoção da vegetação) autorizada, como ocorre de maneira legal e responsável na Floresta Nacional de Carajás. Além disso, traz dados científicos e contribuições visuais sobre a diversidade de abelhas sem ferrão na Amazônia.

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As abelhas sem ferrão
Camargo realizou várias expedições à Amazônia, onde buscava ninhos de abelhas sem ferrão, que coletava para seus estudos. Mais de 900 ninhos foram estudados com detalhes, entre muitos observados, informam as organizadoras no livro.
“Durante essas coletas, fazia anotações nos seus diários de viagem sobre o local onde o ninho foi encontrado, esboços da paisagem e os relacionava a características bioecológicas (agressividade, associações com outros insetos e microrganismos, números de ninhos encontrados), assim como registrava as imagens, o que gerou rico e extenso material fotográfico, recentemente digitalizado”, contam.
E continuam: quando retornava ao seu laboratório na FFCLRP-USP, os dados reunidos eram consolidados nas ilustrações feitas a bico de pena, algumas das quais apresentadas na obra.
A Coleção Entomológica Prof. J. M. F. Camargo vem sendo reorganizada pelo atual curador, o professor Eduardo A. B. Almeida, em colaboração científica com o Instituto Tecnológico Vale Desenvolvimento Sustentável (ITV-DS), possibilitando a recuperação do material fotográfico e a reorganização do acervo. Segundo as organizadoras, o interesse recai nas abelhas do Pará, uma vez que as espécies que ocorrem na Serra dos Carajás têm sido intensivamente estudadas pela equipe de biodiversidade do ITV-DS.
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“Mas para identificação taxonômica certificada dessas abelhas precisávamos de material de referência, que foi cuidadosamente preparado pelo curador da coleção, de modo que os espécimes aqui (na obra) apresentados estão acompanhados das respectivas etiquetas de identificação: quem e quando coletou, quem identificou e qual a origem geográfica dos exemplares”, explicam.

As organizadoras afirmam ainda que, embora a diversidade de abelhas sem ferrão na Amazônia seja alta, elas foram pouco estudadas até o momento, e por isso reconhecer a identidade das espécies da floresta e seus ninhos não é “trivial”. “Nas suas atividades como taxonomista e sistemata, Camargo descreveu três gêneros e 89 espécies de abelhas. Além deste trabalho monumental, descreveu hábitos incomuns de muitas dessas espécies, que apresentavam diferenças do padrão geral conhecido até então para as abelhas sociais brasileiras”, destacam.
Segundo José Oswaldo Siqueira, diretor do Instituto Tecnológico Vale – Desenvolvimento Sustentável (ITV-DS), há muitas espécies de abelhas sem ferrão no Brasil, e em especial na Amazônia, região com carência de mais conhecimento científico sobre esses insetos sociais.
“As expedições científicas realizadas por João M. F. Camargo à Amazônia, em busca de ninhos de abelhas sem ferrão nativas, permitiram identificar informações inéditas sobre um dos ecossistemas mais biodiversos do mundo e suas peculiaridades”, afirma na apresentação da obra, acrescentando que o registro fotográfico dos ninhos dessas abelhas sociais, como compilado na publicação, permite a reflexão sobre novos horizontes bioculturais.
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Para o diretor, a idealização deste livro possibilitou reunir tanto as informações valorizadas pelas publicações científicas, como o cuidado com que esse registro foi feito e organizado em uma coleção entomológica de referência na FFCLRP da USP. “Numa época em que o mundo todo se preocupa com o declínio das populações de abelhas, ilustramos aqui a biodiversidade amazônica de abelhas sem ferrão, em especial de Carajás, no Estado do Pará. É um trabalho relevante para as comunidades da região, que se interessam cada vez mais pela criação e pelo uso sustentável das abelhas sociais, que agregam renda e assim o desenvolvimento socioambiental”, conclui.
Para ler o livro Abelhas Sem Ferrão do Pará a partir das Expedições Científicas de João M. F. Camargo na íntegra clique aqui.
*O conteúdo foi originalmente publicado pelo Jornal da USP