Quando o encantado veste couro de boi: fé, cultura e resistência no São João do Maranhão

São João do Maranhão é mais do que uma festa: é um território simbólico onde o sagrado e o profano se encontram.

Fé, cultura e resistência no São João são tema de pesquisa da UFMA. Foto: arquivo pessoal

São João do Maranhão é mais do que uma festa: é um território simbólico onde o sagrado e o profano se encontram, se misturam e se tornam indissociáveis. No compasso das matracas, dos pandeirões e dos tambores, pulsa uma espiritualidade que atravessa séculos, expressando a resistência, a memória e a identidade de um povo. 

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Essa dimensão do sagrado no São João maranhense, muitas vezes percebida por quem participa, mas pouco explorada academicamente, é o foco da pesquisa desenvolvida pela professora Marilande Martins Abreu, do Departamento de Sociologia e Antropologia da Universidade Federal do Maranhão (UFMA), que investiga como a religiosidade popular estrutura as manifestações culturais do ciclo junino, com especial atenção para o bumba meu boi.

fé, cultura e resistência no São João do Maranhão
Fé, cultura e resistência no São João são tema de pesquisa da UFMA. Foto: arquivo pessoal

Coordenadora do Grupo de Pesquisa Religião e Cultura Popular – GP Mina, a professora Marilande dedicou-se a investigar uma das expressões mais simbólicas dessa relação entre religiosidade e cultura popular: o boi de encantado, tendo como objeto o estudo de caso do boi de encantado Barbatão, ligado ao Jardim de Encantaria, um antigo terreiro de tambor de mina, localizado no bairro do Anjo da Guarda, em São Luís.

O resultado dessa pesquisa dará origem ao artigo científico intitulado “Tambor de mina e festas populares: o boi de encantado no Terreiro Jardim de Encantaria’, escrito em coautoria com a professora Sariza Caetano, da Universidade Federal do Norte do Tocantins (Ufnt). O texto integrará uma coletânea nacional dedicada aos estudos sobre religiões e manifestações religiosas no Brasil.

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O sagrado que vive no bumba meu boi

O bumba meu boi, patrimônio cultural do Brasil e símbolo máximo da cultura maranhense, é uma manifestação que sintetiza, com poucos elementos, a fusão do sagrado e do profano, da arte e da espiritualidade, da festa e da devoção. Por trás dos bordados dourados, das toadas emocionadas e dos autos dramatizados, existe um tecido invisível que sustenta toda essa tradição: a fé.

Fé, cultura e resistência no São João são tema de pesquisa da UFMA. Foto: arquivo pessoal

No Maranhão, essa manifestação não se resume a folclore nem a celebração estética: ela é, sobretudo, uma prática de devoção. O boi dança, canta, vive e morre em rituais que evocam mitos, crenças e entidades espirituais, tanto do catolicismo popular quanto das religiosidades afro-ameríndias, como o tambor de mina, o terecô e a encantaria.

“Existe uma forte devoção em toda relação dos boieiros com o boi, como existe também uma devoção em relação ao boi que vai passar por alguns ritos. O boi passa por um ciclo ritual: ele é batizado, sai para brincar e despois ‘morre’. Esse ciclo, que se renova anualmente, é marcado por rezas, ladainhas, velas e outros elementos”, detalha.

Não é exagero dizer que ‘o boi é uma oração que dança’. E, dentro desse universo tão amplo, existe um expressão que leva essa conexão com o sagrado a um nível ainda mais profundo: o boi de encantado.

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O boi de encantado

Diferente dos grupos organizados em associações culturais, com estrutura administrativa própria, o boi de encantado nasce dentro dos terreiros. Nessas casas, o boi não é apenas uma personagem ou elemento folclórico. Ele é, na verdade, uma extensão das entidades espirituais que regem o terreiro, um corpo ritual que também dança, canta e se manifesta na matéria.

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Bumba meu boi. Foto: Márcio Vasconcelos

O tema central da pesquisa da professora Marilande é o boi de encantado Barbatão, que pertence ao Terreiro Jardim de Encantaria, liderado por Pai Clemente, e tem como entidade patrona a cabocla Dorinha de Leguá, ligada à linhagem espiritual da família de Leguá, muito conhecida nos cultos de tambor de mina do Maranhão.

“O boi de encantado nasce a partir de uma promessa, pedido ou presente à entidade do terreiro. O boi de Barbatão é ligado à entidade farrista Dorinha de Leguá. Essas entidades, normalmente, descem para brincar, festejar, dançar, beber e confraternizar com os devotos”, explica a pesquisadora.

Esses bois não estão no circuito comercial, nem nos arraias turísticos. Eles existem, primordialmente, dentro da dinâmica espiritual do terreiro. Participam das festas internas, dos rituais, das obrigações, dos pedidos e agradecimentos feitos às entidades. Toda a sua estética — do bordado do boi às roupas dos brincantes — é consagrada, rezada e preparada segundo os fundamentos da religião.

As visitas de campo para fundamentar a pesquisa começaram em 2016 e incluíram a participação em rituais fundamentais, como o batizado e a morte do boi, além de outros momentos de festa e de devoção no terreiro. O trabalho revelou como o bumba meu boi, na condição de expressão estética e cultural, entrelaça-se de forma indissociável com a prática religiosa da encantaria.

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Uma oração coletiva que dança

O São João maranhense, com toda a sua pluralidade de sotaques e cores, tem, na religiosidade, um de seus pilares mais profundos. Isso não se restringe aos bois de encantado. Mesmo os grupos considerados profanos ou comerciais carregam em sua trajetória uma dimensão espiritual evidente. O batizado, as promessas cumpridas em forma de danças e toadas, as rezas antes das apresentações, tudo isso confirma que o boi é, para muitos, uma oração em movimento.

Fé, cultura e resistência no São João são tema de pesquisa da UFMA. Foto: arquivo pessoal

“O papel da religiosidade nas festas juninas são visíveis e presentes. O catolicismo popular é muito forte, além de ser uma festa em homenagem aos santos católicos, a religiosidade popular prevalece. As entidades das religiões de matriz africana também gostam dessas brincadeiras da manifestação da cultura popular e participam”, afirma Marilande.

Nos bois de encantado, essa dimensão não é apenas presente, ela é o próprio fundamento da existência do grupo. O boi, nesse contexto, não é um adereço cultural. Ele é uma entidade, um corpo que dança e canta em nome dos encantados, dos caboclos, dos mestres e mestras espirituais que sustentam as práticas da casa.

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Pesquisa, memória e resistência

O trabalho da professora Marilande tem por objetivo lançar luz sobre esse aspecto muitas vezes invisibilizado da cultura maranhense. O objetivo é justamente sistematizar, registrar e dar visibilidade a essas práticas, que fazem parte da vida das pessoas, dos territórios, das comunidades, mas que muitas vezes não aparecem nos estudos ou nas políticas culturais.

Mais do que documentar, a pesquisa também cumpre um papel político e social. Ao reconhecer o boi de encantado como uma prática legítima, essencial e viva, ela ajuda a fortalecer a luta contra os processos de apagamento histórico e cultural que há séculos tentam silenciar as vozes das populações afro-indígenas.

O desenvolvimento da pesquisa reflete o compromisso da Universidade Federal do Maranhão com a valorização dos saberes tradicionais, das culturas populares e das religiosidades afro- ameríndias que estruturam a identidade maranhense. É papel da Universidade se debruçar sobre esses conhecimentos que são fundamentais para entender o Maranhão. A pesquisa sobre o boi de encantado Barbatão é, na verdade, uma porta de entrada para compreender como a espiritualidade estrutura as práticas culturais no nosso estado.

No final das contas, quando o couro do boi vibra e a toada ecoa, o que se ouve não é apenas música — é um chamado. É o som dos encantados, dos antepassados, da memória coletiva que insiste em não ser esquecida. No Maranhão, quando o encantado veste couro de boi, ele dança não só por si, mas por todos aqueles que carregam no peito a fé, a resistência e a alegria de existir.

*Com informações da Universidade Federal do Maranhão

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