Xamãs Yanomami fazem ritual para salvar a Terra após 12 anos. Foto: Samantha Rufino/g1 RR
“Xapiri para o Yanomami quer dizer saúde”, diz Davi Kopenawa, principal liderança do povo, ao explicar as entidades que dão origem aos xamãs ou pajés indígenas. E para reforçar a conexão entre sabedoria e ancestralidade, dezenas de líderes se reuniram, entre os dias 9 e 11 de novembro, num grande encontro para curar o planeta e pedir proteção à Terra Yanomami, ameaçada pelo garimpo ilegal. O ritual não acontecia há 12 anos.
Na cosmovisão Yanomami, os xapiris são a ponte entre o mundo visível e o invisível, que ajudam na proteção da terra-floresta contra os males humanos e não-humanos.
Durante três dias, o Grupo Rede Amazônica acompanhou o encontro considerado sagrado para os Yanomami. A festa também celebrou os 20 anos da Hutukara Associação Yanomami (HAY), a mais representativa organização do povo Yanomami, presidida por Davi Kopenawa. O encontro reuniu mais de 500 indígenas de 18 regiões de Roraima e Amazonas na comunidade Yakeplaopi, em Palimiu, no município de Alto Alegre.
“Toda a mulherada, jovens, conselheiros, estão muito felizes agora. Muita celebração, muito agradecimento. Todo mundo está feliz”, disse o cacique da comunidade, Fernando Palimitheli, ao contar que os moradores fizeram uma roça exclusivamente para a festa.
Em meio a imensidão da floresta amazônica e as margens do rio Uraricoera, a festa aconteceu em uma região alvo de diversos ataques a tiros de garimpeiros contra indígenas em maio de 2021. A região era rota de garimpeiros e chegou a ter troca de tiro entre policiais federais e os invasores.
Agora, a comunidade conta com uma base de fiscalização das forças de segurança federal e um cabo de aço entre uma margem e outra do rio, o que impede a passagem de embarcações dos garimpeiros. Antes da barreira, havia uma média de cinco barcos por dia entrando na região.
A escolha do local para celebração não foi por acaso. Davi, presidente da Associação, explica que comemorar em Yakeplaopi foi uma maneira de “ocupar o nosso espaço [dos Yanomami e Yekw’ana]” e mostrar os invasores que o território pertence aos indígenas.
Com pinturas de urucum, cocar, adornos, cantos e danças tradicionais, os Yanomami comemoraram ao longo dos três dias o aniversário da organização e também a diminuição da presença de garimpeiros na região de Palimiú.
“Nós vamos marcar [a festa] na comunidade Palimiu, onde passa invasores. Ali é nossa terra, não é terra dos garimpeiros não, não é terra dos brancos não, é nossa!”.
Pajés de comunidades de Roraima e do Amazonas se reuniram novamente depois de 12 anos para a celebração em Palimiú. O último encontro foi em 2012, em um evento na região de Missão Catrimani, em Roraima.
Neste ano, o ritual de encontro dos pajés durou cerca de 5 horas ininterruptas no malocão feito especialmente para a festa. Organizados em círculo, cada um se apresentou com cantos e danças. Em seguida, se uniram em uma grande roda com um pajé, Davi Kopenawa e duas crianças no centro.
“Todos os xamãs estão aqui presente para fazer um fortalecimento político dos Yanomami, política de defesa dos povos indígenas, de proteção dos nossos territórios contra os nossos invasores. Por isso, estamos aqui celebrando”, disse Dário Kopenawa, vice-presidente da HAY e filho de Davi.
Como um Yanomami se torna xamã?
Mas para o Yanomami se conectar com os Xapiris não é tarefa fácil. A jornada começa a partir dos sonhos, quando o xapiri escolhe quem deve se tornar xamã. A decisão, no entanto, cabe ao escolhido pelo xapiri, que pode ou não ter a vontade de estudar para se tornar pajé.
E apesar da maioria serem homens, não há restrição de gênero ou idade. Neste último encontro, por exemplo, três mulheres xamãs participaram do que os povos da Terra Yanomami chamam de “pajelância”.
O trabalho do xamã exige estudos e é passado de geração para a geração. O conhecimento oral de um familiar que já exerce a função é a porta de entrada para o encontro com os xapiris. A iniciação pode começar entre os 11 e 14 anos – quanto mais jovem, mais fortes se tornam os conhecimentos do xamã.
Além dos estudos, o portal da conexão também é o pó vegetal “Yakoana”, alucinógeno extraído da árvore yakona hi. Os pajés cheiram o pó e só assim conseguem se conectar com as entidades da terra-floresta. Todo esse conhecimento foi repassado há milhares de anos por Omama [Deus da criação para os Yanomami] para o primeiro Yanomami, segundo Davi Kopenawa.
“O xapiri eu não consigo chamar de espírito, espírito os brancos e igreja usam espírito, é diferente do Xapiri. Xapiri ele [Omama] repassou para o filho [primeiro Yanomami]. O filho estava com 13, 14 anos e estava com vontade de conhecer xapiri. Ele estava muito interessado. Então, ele [Omama] disse eu vou plantar uma árvore especial, a Yakoana […] Yakoana é o alimento dos xapiris”, contou.
🪵 Para extrair o pó, os indígenas deixam a casca da árvore secar no sol, misturam em um recipiente — na história contada por Kopenawa foi usada uma panela de barro, com o líquido que sai da própria árvore e em seguida amassam até surgir o pó. Durante o ritual, o pó é soprado no nariz do xamã através de um tubo feito de árvores ou plantas nativas, como a canaflecha.
“É assim que nós aprendemos e Omama nos ensinou a nossa origem. Por isso que o não-indígena não reconhece, ele reconhece outra coisa. Ele sonha de avião, sonha de carro, sonha de dirigindo, trabalhando, guerreando, o sonho dele é diferente […] Por dinheiro que ele [não-indígena] vai ser apaixonado e para nós Yanomami o xapiri é como dinheiro”.
Ainda dentro do processo para se tornar xamã, o iniciante precisa se isolar na floresta por 15 a 30 dias. O acesso ao alimento e a água fica limitado. Apenas quem está conduzindo o novo xamã na iniciação o autoriza ou não a comer nesse período.
Desafios
Após adquirir os conhecimentos necessários, os pajés podem curar doenças espirituais e aquelas trazidas por não-indígenas para o território, como malária e pneumonia. Eles também conseguem curar mordida de animais ou até atrair caças através do xapiri. Porém, as doenças da cidade são muito mais desafiadoras para eles, de acordo com o líder indígena Peri Xirixana Yanomami, de 61 anos, da região do Alto Mucajaí.
Ele foi um dos pajés que começou os estudos ainda quando criança. Além de ser xamã, Peri também é agente de saúde indígena na comunidade dele. Por isso, quando se trata de doenças que podem ser curadas através do xamanismo, ele mesmo comunica à equipe de saúde.
“Quando eu tinha 11 anos eu comecei a apreender porque eu pedi do meu primo. Ele falava assim ‘tu tem que aprender a ser pajé, quando você aprender você vai defender seus netos, tu vai defender tua mulher pela saúde. Quando o espiritual fizer mal pro teus netos, teus filhos, é tu mesmo que vai curar’. Eu pedi para aprender, mas não foi brincadeira não”.
Ao explicar as regras para se tornar pajé, Peri contou que quem tem interesse não pode ter feito relações sexuais e tem que se alimentar de comidas leves, pois os xapiris preferem pessoas que comem pouco. As obrigações podem variar de acordo com cada comunidade.
Um dos desafios é manter a tradição. Por conta da responsabilidade, muitos jovens preferem não se tornarem xamãs, como é o caso do filho de Peri. “Eles [jovens] têm medo. Só tem Mário, meu tio e eu. Eu ainda falei para o meu filho ‘Ó Abelardo, filho se você quiser aprender de pajelância eu ensino vocês'”, detalhou Peri.
Imposição das religiões cristãs preocupa Kopenawa
Kopenawa também fala sobre outro desafio: a imposição das religiões cristãs aos Yanomami. Missões evangélicas muitas vezes adentram o território e acabam reprimindo as manifestações religiosas dos Yanomami, como é o caso da própria comunidade de Yakeplaopi.
“Aqui tinha dois xapiri muito forte, há 40 anos atrás. Os crentes, pastor, chegaram aqui e atrapalharam. Falaram assim: ‘vocês estão fazendo xapiri, xapiri é satanás. Satanás está ensinando vocês a fazer xapiri’. Para nós não existe essa palavra satanás. Quando vocês [não-indígenas] chegaram aqui no Palimiú vocês proibiram, proibiram tomar Yakoana, proibiram xapiri e xapiris ficaram com medo”, disse, em referência a Missão Evangélica da Amazônia (MEVA), que não ocupa mais o local.
Kopenawa revela que agora a comunidade conta apenas com um pajé, mas que a esperança é inspirar outros jovens e crianças através da celebração e do encontro dos xamãs.
Hutukara: 20 anos de história e resistência
Nascida através da luta do xamã e liderança política, Davi Kopenawa, a criação da HAY aconteceu em uma assembleia indígena, na comunidade de Watorikɨ, região do Demini, no Amazonas, em 2004. A assembleia é convocada a cada quatro anos e desde sua fundação, Davi Kopenawa vem sendo reeleito como presidente da associação, e seu filho Dário Vitório Kopenawa, foi escolhido para ocupar o cargo de vice-presidente, em 2022.
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🇳🇴 Entre os participantes da assembleia de criação estava o sueco Kristian Bengton, representante da embaixada da Noruega no Brasil. Convidado para a celebração do aniversário, Bengton, filho de mãe brasileira, mantém uma relação de longa data com os povos da Terra Yanomami. Nos últimos 20 anos, visitou o território ao menos cinco vezes e recorda que a embaixada norueguesa foi a primeira a apoiar financeiramente a HAY.
“Para mim é muito gratificante estar aqui, 20 anos depois, e ver o quanto cresceu a Hutukara, o quanto ela se consolidou, mas também com muita preocupação e tristeza quando a gente ver a situação que ainda persiste na região com garimpo, madeireiros, envolvidos com narcotráfico e crime organizado. Continuam sendo muitos desafios, mas eles estão cada dia mais fortalecidos, principalmente para fazer sua voz ser escutada”, disse, ao comentar que a Embaixada deve continuar com ações de apoio a HAY.
Além disso, a HAY também se articula com outras organizações do movimento indígena brasileiro, como é o caso da Aliança em Defesa dos Territórios, que une os povos Munduruku, Kayapó e Yanomami na luta contra o garimpo ilegal.
Mydjere Kayapó, natural da Terra Indígena Baú, em Santarém (PA), faz parte da iniciativa e também foi um dos convidados para a festa de aniversário. Ele também faz parte do Instituto Kabu, organização indígena que reúne 18 aldeias afiliadas nas Terras Indígenas Baú, Menkragnoti e Panará, no sul do Pará e norte do Mato Grosso. Pela primeira vez no território Yanomami, ele agradeceu o convite da associação.
“É uma experiência que eu vou levar para meu povo, para minha instituição […] Tudo isso, eu estou aqui aprendendo. Agora, os pajés estão aqui trabalhando pelo mundo, limpando e tirando todas as coisas ruins que estão dentro do nosso território e isso é uma coisa muito importante para mim”.
A partir da criação da Hutukara, surgiram outras associações da TIY que comportam os estados de Roraima e Amazonas – Associação Wanasseduume Ye´kwana (Sedumme), Associação Kurikama Yanomami (Kurikama), Associação das Mulheres Yanomami (Kumirayoma), Texoli Associação Ninam do estado de Roraima (Taner), Ypasali Associação Sanöma, Associaçao Xoromawë Indígena do Médio Rio Negro, Associação Parawami Yanomami e Urihi Associação Yanomami (Urihi).
Atualmente, a HAY tem a função de articulação política gere projetos voltados à proteção territorial, principalmente frente à invasão do garimpo ilegal. A organização também possui outras iniciativas com parcerias nacionais e internacionais, uma delas é a formação de comunicadores indígenas.
Na festa, a equipe de 10 jovens de diversas comunidades ficou responsável pela cobertura audiovisual do evento. Uma delas foi a jovem Cleosamar Santos Pereira, de 23 anos. De Maturacá, no Amazonas, ela afirma que pretende estudar para continuar na área e ficou “feliz” em participar como comunicadora.
“Estou achando muito legal, eu nunca vi isso que o pessoal da Hutukara está fazendo. É a primeira vez que eu estou vendo esse movimento. Está muito excelente!”.
Além do encontro de xamãs, a programação da festa incluiu a exibição do filme “Segurando o céu (2023)”, do cineasta bélgico Pieter Van Eecke, danças e músicas Hymuu e Wãyãmu.
Com mais de nove milhões de hectares, a Terra Indígena Yanomami é a maior do Brasil, localizada entre os estados do Amazonas e Roraima, com cerca de 32 mil habitantes, entre os povos Yanomami e Yekwana, divididos em mais de 380 comunidades. O acesso às comunidades é de 98% via aérea e 2% terrestre. Na terra Yanomami, também existe um grupo de indígenas considerados isolados, os Moxihatëtëma.
O território é alvo de garimpeiros ilegais desde a década de 80, mas nos últimos anos enfrentou o aumento desenfreado da atividade, que causa malária e desnutrição entre os indígenas. Desde 2023, o governo federal implantou ações de combate ao garimpo e apoio a saúde dos indígenas, com forças de segurança na Terra Indígena e distribuição de cestas básicas nas comunidades.
*Por Samantha Rufino, da Rede Amazônica RR