Os autores argumentam a urgência da união da espiritualidade com a ecologia, a partir do apoio e entendimento das crenças locais.
Os modos peculiares das comunidades tradicionais e de povos indígenas perceberem as relações entre humanos e não humanos, desde animais e plantas até os espíritos e consciências de rios ou montanhas, rochas e fungos, por exemplo, podem revelar muito além das amplas cosmovisões de povos tradicionais do mundo inteiro e passar a servir de guia para novas políticas sobre atividades antrópicas em espaços naturais.
É como defende o artigo ‘Curupira e Caipora: o papel dos seres elementais como guardiões da natureza’, publicado na edição corrente do Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi (MPEG). Os autores argumentam a urgência da união da espiritualidade com a ecologia, a partir do apoio e entendimento das crenças locais, com foco na implementação de estratégias ecologicamente inspiradas, tanto para a conservação racional dos recursos naturais quanto para a manutenção do patrimônio biocultural a eles ligados.
Representação estilizada do Curupira (destaque para os pés virados para trás), confeccionada com látex ‘balata’ de maparajuba (Manilkara bidentata (A. DC.) A. Chev 1932; Sapotaceae). Artesão: Jony Alex Pimentel Braga (Belém, Pará, 2022). Foto: Dídac SantosFita
O universo anímico é o das narrativas orais e do folclore, onde o Curupira e a Caipora são destacados como as duas entidades mais conhecidas no imaginário brasileiro, ambos responsáveis por proteger as caças e os recursos naturais. O estudo mais atento de suas lendas, mitos e relatos de casos apontaram para outras possibilidades de estudos em Etnoecologia e uma elaboração de políticas públicas.
Tais estudos foram levantados em buscas qualitativas nas bases Google Scholar e Scientific Eletronic Library Online (SciELO), no período de janeiro a julho de 2021, tanto em livros; capítulos de livros; artigos publicados em revistas e em anais de eventos, sites e blogs sobre lendas brasileiras. Os descritores, as palavras-chave elencadas, foram: Curupira; Caipora; seres sobrenaturais; folclore; lendas e mitos indígenas; espíritos da natureza; caça; etnoconservação e suas combinações.
A pesquisa aponta à existência de ‘donos/donas’, ‘senhores/senhoras’, ‘pais/mães’ ou ‘guardiões’ dos animais e da floresta, em todo o mundo, e leva à reflexão necessária da “importância de diferentes percepções culturais sobre ecossistemas e paisagens naturais para o desenvolvimento e fortalecimento de estratégias mais eficazes e holísticas direcionadas ao manejo dos ecossistemas e coexistência das realidades simultâneas”, como observam os autores.
Os pesquisadores também destacam que “a modernização socioeconômica e a introdução de novas instituições e cultos religiosos dogmáticos (cristãos e neopentecostais) têm causado o descrédito e aversão dos mesmos habitantes locais pelos espíritos da floresta, ocasionados por mudanças em sua cosmovisão e nos modos de vida tradicionais, consequentemente interferindo nos sistemas autóctones de crenças e práticas relacionadas à regulação do acesso e do uso de recursos, comprometendo, assim, a conservação da natureza”.
A partir de 59 materiais para a revisão bibliográfica, com análise crítica textual discursiva e interpretação sobre o assunto, à luz da literatura levantada, e apesar desses novos cenários sociais adversos, o resultado da pesquisa reforça a importância das populações locais poderem ser “consultadas sobre a localização de lugares encantados, bem como sobre os tipos de interações que desenvolvem com as entidades residentes, e seu conhecimento deveria ser incorporado nos planejamentos e tomadas de decisão”, podendo servir como “ferramenta poderosa para mitigar os impactos negativos das atuais pressões antropogênicas sobre a natureza e seus elementos”.