Foto: Aguilar Abecassis/Secretaria de Cultura e Economia Criativa do Amazonas
O Teatro Amazonas, inaugurado em 1896 em Manaus (AM), representa um dos mais imponentes marcos do ciclo da borracha na Amazônia. Sua construção, em plena efervescência econômica do final do século XIX, marcou a transformação da capital amazonense de uma pequena vila em uma cidade moderna, inserida nos padrões arquitetônicos e culturais europeus.
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O salão nobre, conhecido por sua rica decoração e simbolismo, tornou-se o coração do teatro e o ponto máximo de sociabilidade da elite amazonense.
As festas, recepções e saraus realizados ali representavam não apenas momentos de lazer, mas rituais de exibição do refinamento e do poder econômico daqueles que enriqueceram com o látex.
Foi nesse contexto que surgiram os painéis decorativos do salão nobre do Teatro Amazonas.
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Os painéis do salão nobre distinguem-se de toda a iconografia do teatro. Diferentemente das alegorias mitológicas e motivos clássicos predominantes nas outras áreas do edifício, essas obras destacam a natureza amazônica, apresentando paisagens exuberantes, rios, aves, flores e animais regionais.
A representação da floresta e das águas, domesticadas pela estética europeia, revela um esforço de aproximar a imagem da Amazônia ao ideal de civilização e modernidade do século XIX projetado principalmente pela Europa.
O projeto decorativo foi coordenado pelo artista Crispim do Amaral, responsável pela ornamentação interna do teatro, que convidou o pintor italiano Domenico De Angelis para conceber as pinturas. O contrato previa a confecção de onze painéis pintados a têmpera sobre linho, imitando tapeçarias. As obras foram produzidas em Roma, na Itália, e posteriormente instaladas nas paredes do salão nobre, seguindo um detalhado programa iconográfico aprovado pelo Governo do Amazonas na época.
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As telas apresentam títulos atribuídos pelo público ao longo dos anos, como Borboletas Azuis, A Ponte, As Garças, O Crepúsculo e Pescaria no Amazonas. Cada uma delas retrata um aspecto da paisagem amazônica, emoldurada por “falsas molduras” que criam o efeito de janelas abertas para o cenário destes painéis. O conjunto promove uma visão idealizada da região — uma Amazônia pacífica, fértil e luminosa, sem os elementos considerados “adversos” ou selvagens, reforçando o discurso de uma natureza dócil e produtiva.
Natureza e civilização: os painéis decorativos do Salão Nobre do Teatro Amazonas
Os painéis do Salão Nobre do Teatro Amazonas foram tema do artigo ‘Natureza e civilização: os painéis decorativos do Salão Nobre do Teatro Amazonas’, de Ana Maria Lima Daou, da UFRJ, publicado no periódico História, Ciências, Saúde – Manguinhos (Casa de Oswaldo Cruz), em 2007.
Segundo a antropóloga, os painéis expressam a tentativa da elite de conciliar natureza e civilização. As representações da flora e da fauna locais são tratadas sob a perspectiva romântica europeia, na qual a paisagem é símbolo de identidade e progresso.
Essa estética aproxima-se da tradição científica e artística do século XIX, marcada pelas descrições de viajantes e naturalistas que viam na Amazônia uma fonte de inspiração e conhecimento.
As pinturas refletem também o pensamento da época, influenciado por ideias positivistas e românticas que valorizavam a natureza como elemento de identidade nacional. Nelas, rios largos, florestas verdes e o céu equatorial formam um cenário harmônico, que simboliza o equilíbrio entre o homem civilizado e o ambiente tropical.
A ausência de indígenas e a presença de figuras idealizadas, como o casal Ceci e Peri — personagens inspirados na ópera O Guarani, de Carlos Gomes — reforçam a ideia de uma natureza transformada e integrada ao projeto de civilização.
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Entre os painéis mais emblemáticos está o Painel do Vapor, que representa um navio a vapor navegando pelas águas amazônicas. A cena, segundo Ana Maria, simboliza o progresso, o comércio e a abertura do rio Amazonas à navegação internacional em 1867, evento crucial para o desenvolvimento econômico da região.
“O motivo registrado no painel denominado pelo gosto do público de ‘painel do vapor’ celebra um dos maiores anseios daquela sociedade em meados do século XIX, qual seja, a abertura do Amazonas à navegação internacional, questão primordial para a recém criada província, cuja capital situava-se a 1.500km do porto atlântico, solucionada em 1867. O fechamento do rio estava em desacordo com os ideais liberais e tendências da época, e sua abertura significava claramente a aproximação desejável com as nações civilizadas, o estímulo ao comércio e às trocas promotoras do progresso e da comunhão entre os povos”, pontua a autora no artigo.
Porém, as demais pinturas de De Angelis não se limitam à estética decorativa. Elas cumprem também uma função simbólica e política: projetar uma imagem positiva da Amazônia diante do olhar europeu.
Em um período em que relatos sobre doenças tropicais e isolamento afastavam imigrantes e investidores, os painéis funcionavam como propaganda visual de uma terra rica e promissora. A arte, portanto, atuava como instrumento de construção da identidade regional e de inserção da Amazônia no imaginário nacional.
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Painéis são apenas um dos elementos pensados para o Teatro
A inauguração oficial do salão nobre, em 1901, consolidou o Teatro Amazonas como centro da vida social e política da capital. Os eventos realizados no espaço reuniam autoridades, empresários e artistas, e eram retratados pela imprensa local como celebrações da modernidade. Assim, as paredes, adornadas pelas pinturas de De Angelis, criavam um ambiente que unia o esplendor europeu à exuberância tropical.
Durante as noites de gala, os espelhos do salão multiplicavam as imagens das pinturas e dos convidados, criando a ilusão de continuidade entre a natureza representada e o público presente. Vasos com palmeiras e plantas ornamentais reforçavam a ambientação, transformando o espaço em uma síntese entre arte e realidade. O salão tornava-se, então, no palco de um duplo espetáculo: o de uma visão da natureza amazônica eternizada nas telas e o da elite que celebrava seu poder em meio a esse cenário.
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Mais de um século após sua inauguração, os painéis do Salão Nobre do Teatro Amazonas continuam sendo objeto de estudo e admiração. Suas imagens condensam o espírito de uma época e representam, ao mesmo tempo, a idealização da Amazônia e a tentativa de traduzi-la segundo os padrões europeus de beleza e progresso.
