Com o tema ‘O Avesso do Bordado’, grupo junino Agitação Caipira retratou a história de casais homoafetivos e fez referência à resistência e luta das pessoas LGBTQIA+ na sociedade. Apresentação aconteceu no arraial Boa Vista Junina, em junho.
Com o tema “O Avesso do Bordado”, a quadrilha se inspirou no atual momento da comunidade. Em um país onde, em média, duas pessoas LGBTQIA+ morrem a cada três dias em 2023, o grupo junino fez referência à resistência e luta das pessoas LGBTQIA+ na sociedade.
“A gente passou a ver a discussão do assunto, da temática e da luta LGBT cada vez mais em evidência. Diante do preconceito que ainda existe, da violência que ainda existe e a gente via também o assunto cada vez mais presente em telenovelas, séries, filmes e reportagens. Então, a gente decidiu trabalhar essa temática LGBT no nosso espetáculo em 2023”,
explicou Magno Pereira, animador e membro da coordenação.
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A história foi apresentada na penúltima noite do Boa Vista Junina, no dia 24 de junho. A quadrilha ocupou o 4º lugar no ranking da categoria Especial. A campeã foi a quadrilha Garranxê.
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Magno explicou que levar o tema para o tablado do evento foi uma tarefa difícil, pois era preciso introduzi-lo ao contexto junino. Para isso, eles pensaram em uma história que também fizesse referência ao figurino junino, com a costura, o bordado e as linhas.
“O espetáculo ganhou esse nome, o Avesso do Bordado, que remete também ao que a gente deixa escondido no avesso, o que se esconde no avesso das coisas. São os sentimentos oprimidos, escondidos em vítimas do preconceito e da intolerância”, afirmou o quadrilheiro.
Antes de executar a apresentação, o grupo fez uma campanha de conscientização nas redes sociais, nomeada de “Consideramos justa toda forma de amor”. Em 2022, eles divulgaram conteúdos referentes ao assunto e abriram espaço para as pessoas contarem como revelaram a orientação sexual para a família e amigos.
“Foi para eles contarem como foi ter que enfrentar o preconceito às vezes dentro de casa mesmo, a violência que as pessoas LGBT enfrentaram e ainda enfrentam”, disse o animador, que fez vários discursos pedindo o fim do preconceito enquanto a quadrilha dançava.
Já no tablado, a ideia foi retratar uma cidade homofóbica, mas libertada pela mágica de amores proibidos. No enredo, a filha da prefeita de Emenda, cidade fictícia, é obrigada a casar com um homem por quem não tem sentimentos. No entanto, durante a prova do vestido de noiva, ela se apaixona pela costureira e decide lutar por esse amor.
O noivo dela também não entende por quais razões tem que se casar com a jovem. Assim como ela, enquanto experimenta o terno de casamento, ele se apaixona pelo alfaiate.
Em Emenda até a roupa da população era escolhida: os meninos só deveriam usar o azul e as meninas, o rosa. Foram com roupas nessas cores que os quadrilheiros entraram no palco, seguindo a história de uma cidade conservadora, uma prisão para casais homoafetivos.
A cidade é libertada por uma fada madrinha, a Drag Madrinha, diferente da senhorinha simples encontrada em contos infantis e que transcende barreiras de gênero. Interpretada pelo venezuelano Gilber Beei, de 24 anos, a fada exclui a homofobia e a descriminação da sociedade.
A entrada do artista no tablado foi com a música I Will Survive, grande sucesso de Gloria Gaynor nos anos 1970, um dos hinos da comunidade LGBTQIA+. Para ele a música foi muito mais significativa, pois marcou uma de suas primeiras aparições no palco como a drag queen Melanny D’Leon.
Gilber começou a fazer trabalhos como drag em 2017, enquanto cursava faculdade de produção audiovisual em uma universidade na cidade de Barcelona, estado de Anzoategui, na Venezuela. Em 2018, quando a crise econômica se agravou no país, ele se mudou para Roraima.
Morando no estado há quase seis anos, Gilber sempre quis misturar a arte drag com a cultura junina. Em 2021, Melanny D’Leon foi Rainha da Diversidade Junina pela quadrilha Agitação Caipira, quando nasceu o encontro de duas culturas para o artista.
Devido à problemas pessoais, Gilber não poderia participar da apresentação como quadrilheiro neste ano, mas se dispôs a atuar na parte teatral. Assim que viu o roteiro da personagem, ele aceitou.
“Quando eu olhei o roteiro, quando chegaram minhas falas eu falei: ‘gente, isso vai ser muito marcante’. Era uma responsabilidade muito grande porque se não tem a drag, não tem casamento, não tem a continuação da história. Então, foi uma responsabilidade eu ter aceitado aquela proposta e não tinha como eu falar não”,
explicou o artista.
O roteiro da sua personagem e a construção da história apresentada foi feito pelo coreógrafo baiano Márcio Fidelis e o diretor de teatro cenógrafo e figurinista, Guilherme Hunder. O baiano explicou que a temática foi idealizada pelo grupo junino e eles ajudaram a “traduzir a importância”.
A Drag madrinha tem o papel da pessoa que abraça, acolhe e transforma uma outra. No entanto, na história, ela também traz o processo de entendimento das construções humanas, como o caráter, identidade e percepção de mundo, de acordo com o coreógrafo.
“Então, a gente utilizou a fada, mas enquanto drag, porque a drag é a referência maior desses fazeres do movimento LGBTQIA+, elas são a maior referência de produção artística, cultural, empoderamento e de resistência nesse lugar de fala. Nada melhor do que a gente ter, trazer e construir uma fada que transforma, abençoa e abre portas e caminhos como uma drag”,
ressaltou Márcio Fidelis.
Cenografia
A cenografia da cidade de Emenda, que representa uma cidade tradicional, também fez referências a luta da comunidade e o figurino das quadrilhas juninas. Na trama, os noivos são condenados pela prefeita da cidade e presos em duas torres, que também representam um carretel de linha.
Com a chegada da Drag Madrinha, eles são libertos da prisão. A população abandona as roupas em azul e rosa, e saem de vários armários com roupas de noivos, bordadas com os detalhes da bandeira arco-íris, um dos principais símbolos da comunidade LGBTQIA+. A festa vira um casamento coletivo, uma comemoração da liberdade e do amor.
“É para celebrar esse casamento, para celebrar a liberdade de ser quem é, de empoderar esse lugar, de traduzir para esse fazer que é a quadrilha junina, o melhor dessas pessoas e o melhor é o quanto é importante o amor, porque o amor está acima de tudo. Amar o outro, se doar para o outro sem distinção de cor, raça e de gênero, que é o mais importante”,
disse Márcio.
Arranjo musical
O repertório foi gravado no Rio Grande do Norte e é composto por musicais autorais, compostas por Iris Lima, e sucessos como “Wilson Vai”, paródia da música ‘I Will Survive’.
A canção tema autoral fala sobre o avesso da costura como referência a vida escondida que a sociedade impõe para a comunidade LGBTQIA+, mas nada fica escondido por muito tempo, como a própria melodia diz:
“Me viro do avesso e um dia eu chego lá, quem não dá ponto sem nó, já sabe onde quer chegar. Agitação Caipira tem um babado pra contar: ninguém vai nos dizer como amar”.
“O repertório foi todo criado com músicas juninas e composto no Rio Grande do Norte, foi gravado lá e tem composições da Iris Lima, mas esse espetáculo também tem músicas de Dominguinhos e Luis Gonzaga. É um repertório extremamente junino”, explicou Márcio Fidelis.
As músicas “Paula e Bebeto”, de Milton Nascimento, “Onde Estará o meu Amor”, de Chico César, “Toda a forma de amor”, de Lulu Santos” e pout-pourri de forró também fez parte da coletânea.
Agitação Caipira
Com oito anos de existência, o grupo participou do concurso de quadrilha no grupo especial e conquistou a quarta colocação neste ano. Entre coordenação, teatro e corpo de baile, a Agitação Caipira contou com mais de 150 pessoas envolvidas na apresentação.
O arraial Boa Vista Junina 2023 encerrou no domingo (25) com público recorde de 280 mil pessoas nas seis noites do evento, segundo estimativa da prefeitura da capital, responsável pela festa. O evento ocorreu na praça Fábio Marques Paracat, Centro da cidade.
*Texto de Samatha Rufino e Yara Ramalho, do g1 Roraima; e fotos de Isabelle Lima, do Portal Amazônia