Novo carimbó é palco de lutas feministas e LGBTQIA+ no Pará

Mulheres rodando a saia, vozes animadas cantando, o tambor curimbó ao fundo, acompanhado do maracá e por aí vai. Se você nunca foi a uma roda de carimbó no estado do Pará, a visão é quase essa, com muito mais detalhes e animação. O carimbó faz parte da história cultural do estado nortista e do país, e em setembro completa dez anos que a expressão virou patrimônio cultural imaterial do Brasil, em votação unânime do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural do Iphan. O ritmo de origem indígena é conhecido por sua dança alegre e suas estampas coloridas que ganham formas nas saias rodadas e nas camisas usadas por quem está nos instrumentos.

Com o tempo, o carimbó passou por várias transformações. Hoje, além de expressão da cultura popular paraense, virou um espaço de resistência e de luta. É um novo movimento no qual a população LGBTQIA+ e as mulheres cis tem buscado seu espaço, com diferentes grupos que tocam e cantam por mais representatividade e diversidade. Para Gabriela Luz, Travesti, Indígena de Maeri, multiartista, carimbozeira, professora e ativista pela associação índigena Wyka Kwara, o carimbó é sinônimo de coletividade:

Coletivo de carimbó Volta ao Mundo Foto: @luanacpalheta

“Venho da periferia, eu sempre fui cercada, cresci nesse caos, barulho, dentro de casa, morando com muitas pessoas, os vizinhos colocando som, tem uma cultura das nossas periferias em Belém, que é de música alta, principalmente nos finais de semana. Cresci brincando na rua, cresci nesse contexto coletivo, e aí com muita cultura”.

Coletividade, movimento, tradição, esperança, são várias as palavras que surgem quando se fala sobre o carimbó, como complementa Gabriela. “O carimbó deriva dessa relação cultural que na verdade é um encontro, um atravessamento de diversas culturas históricas dessa região do norte. A principal delas é indígena que vem com os maracás, a dança e o canto. O carimbó tem a ver com o cotidiano de pesca, de cultivo, de agricultura, da vida cotidiana desses povos ribeirinhos”. Segundo a artista, quem vai em uma roda de carimbó sempre sai “atravessado”, não importa se você sabe dançar, se vai apenas observar ou bater palma.

A multiartista Gabriela Luz (Foto: Matheus Cunha Lima)

Em Belém, é fácil encontrar relatos de pessoas apaixonadas pelo ritmo porque se lembram da sua infância, ou dos festejos que iam quando crianças. Assim como vários ritmos tradicionais, o carimbó sofre com diversos problemas estruturais que vão além da falta de oportunidades para artistas, ausência de estrutura, mas perpassa também por questões como machismo, apagamento e preconceito em relação às mulheres musicistas e artistas LGBTQIA+.

Quando se cresce, se você for uma pessoa LGBTQIA+ ou mulher, esse espaço tende a se distanciar de como era na sua lembrança. Mas essas novas possibilidades que o carimbó trouxe são uma construção a longo prazo, um processo onde a história caminha junto ao respeito por quem veio antes e o entendimento sobre ser sim possível mudar tradições.

“Eu sentia uma certa resistência em relação a homens que tocam carimbó e passei por situações ruins de machismo mesmo e comecei a sentir a necessidade de ter mais mulheres tocando juntas”. Quem traz essa fala é Anne Almeida, lésbica e percussionista autodidata, integrante do coletivo “Carimbó Volta ao Mundo”. O coletivo de Belém surgiu da necessidade e urgência de mais espaços onde mulheres e pessoas LGBTQIA+ se sentissem confortáveis em tocar carimbó, mesmo sendo profissionais ou não. E tem o objetivo de reunir “Mulheres, pessoas não binárias, mães, sapatão, bi, artistas, produtoras, musicistas, brincantes de carimbó” para fortalecer o carimbó.

Segundo Anne, a formação do coletivo foi natural, depois de algumas participações em rodas de carimbó,ela já começou a participar ativamente do grupo, “e nesse momento, nós começamos a tocar juntas e foi muito maravilhoso poder tocar com mulheres, pessoas não binárias, e essa proximidade do carimbó, poder fazer aquilo que a gente gosta sem problema nenhum como deve ser”.

Do incômodo à sede por mudanças 

Anne, moradora da comunidade Seringal, na Ilha de Cotijuba, uma área de proteção ambiental (APA) localizada próxima à capital paraense, sentia que o carimbó sempre estaria na sua vida, mas sempre tocando com homens. Quando surgiu o convite para participar de um grupo diverso como o “Volta ao mundo”, não pensou duas vezes. “Era aquilo que tínhamos que fazer mesmo, precisávamos nos juntar e fazer”. Sobre as dificuldades sentidas quando estava em rodas com predominância masculina, Anne completa:

“Na hora de tocar, é como se as mulheres tocassem menos que os homens e eles que tinham que estar ali como protagonistas daquela história. Temos mulheres que tocam curimbó, mas eles acham que só eles que podem. O carimbó (e todas as suas vertentes) é muito machista, para chegarmos e tomarmos nosso protagonismo é complicado, mas a gente está aí, tentamos todo dia pelo menos”,

enfatiza.

Andrezza Mota, musicista do coletivo “Carimbó Volta ao Mundo”, se descreve como uma “mulher preta cis, bissexual, mãe e carimbozeira”. Ela conta que começou a se questionar sobre a presença de mulheres no carimbó a partir de algumas experiências em outros grupos, e isso a incentivou a escrever um projeto audiovisual com o intuito de documentar a presença de mulheres no carimbó. O projeto contemplado no edital Juventude Ativa – Lei Aldir Blanc 2020, resultou em uma web série onde mulheres referência no ritmo contam sobre suas vivências.

Andrezza, que também atua como produtora cultural e é mestranda em Agriculturas Familiares e Desenvolvimento Sustentável, se afirma como parte de uma nova geração de carimbozeiras. De acordo com ela, foi através dos batuques nas praças de Belém, como a Praça da República, que surgiu seu interesse e sua vontade de se aproximar do carimbó.

“Sempre me bateu essa curiosidade de querer tocar, o tambor sempre me chamou muita atenção, mas sempre foi um lugar onde eu via muitos homens, homem tocando tambor, homem tocando banjo, homem cantando”,

conta

De acordo com Andrezza, hoje são 11 pessoas participando ativamente do coletivo e somando desse novo movimento do carimbó.

Além dos encontros em espaços públicos como a Feira do Açaí, localizada no Ver-o-Peso, em Belém, o grupo também iniciou um novo projeto intitulado “Mulheres e LGBTI+ na roda de carimbó”, que acontece uma vez por mês. O objetivo assim como o do coletivo é protagonizar grupos de mulheres e pessoas LGBTQIA+ em rodas de carimbó. “Criamos esse movimento, em contrapartida disso tudo, é uma forma da gente se sentir segura e a vontade para tocar”, complementa.

Carimbó como símbolo de resistência e ativismo

Para Iris da Selva, artista trans não binário de Icoaraci, em Belém, a relação com a música que ele tem desde a infância veio principalmente por conta da vivência no carimbó. Por conta do ritmo tradicional, descobriu ser dessa forma que ele queria mostrar seu trabalho e descobriu também outros caminhos, “não só com essa questão da música mas da identidade mesmo, de entender qual a sonoridade que dialoga com o que eu quero transmitir, acho que isso foi muito importante para mim”.

Iris tem em sua música misturas da música popular brasileira e de elementos do carimbó. Ele formou seu grupo e banda base chamado “Pássaros Urbanos”, formado em sua maioria por músicos também da cena. Para o artista, escrever composições dentro da linguagem do carimbó é uma forma de contribuir para o momento e para a cena cultural do estado.

O artista não-binário Iris da Selva (Foto: @laercioesteves)

“Gosto muito de tratar de várias formas essa ansiedade que vivemos, dessa vida anestesiada, a gente vive muito isso, eu sinto que isso precisa estar sempre sendo dito de alguma forma, a minha música quer muito falar sobre isso, sobre esse olhar voltado em câmera lenta para a gente desacelerar de alguma forma, e trago isso em cada detalhes nas músicas”. 

As mudanças no carimbó refletem também nas composições e influenciam toda uma nova geração de artistas, também em outros espaços culturais do estado. Para Gabriela, que também é membro fundadora da Associação Cultural THEMôNIAS da Amazônia, um dos motivos de toda essa revolução no carimbó está relacionado com o pertencimento. “A nossa identidade é muito forte, a gente ama a nossa região, tem um apego emocional mas também cultural, político, fazemos questão de dizer que é do Pará, que toma açaí de verdade, tem uma questão de identidade muito forte”.

Gabriela enfatiza como essas mudanças ocorrem através da orientação, das bênçãos e dos acolhimento dos mestres de carimbó. Ela relata que a maior diversidade da cena gerou ainda mais respeito e fortalecimento à cultura do carimbó. “Se as mulheres começam a dominar esse lugar mais do que os homens, se a presença de corpos trans, pessoas LGBTs, esses grupos começam a ser diversificados é porque são essas pessoas que fazem os novos grupos”, e complementa:

“O carimbó fala do cotidiano, se é uma travesti cantando, eu vou falar do cotidiano da travesti, se é uma mulher cantando, essa mulher vai falar do cotidiano dela. Composições também acompanham a vivência, por isso eu acho que é sobre pertencimento, pessoas que se sentem parte, é sobre se sentir parte assim, eu acredito nisso, nessa comunhão”.

Em 2021, Gabriela foi protagonista e roteirista de um videoclipe em formato de um curta-metragem intitulado “Flor de Mururé” e promovido pelo grupo de carimbó “Cobra Venenosa”, no qual a artista já foi integrante. Caminhando junto com os ideais dos novos grupos de carimbó, o curta-metragem apresenta uma reunião de mulheres cis e trans cantando, juntas, pelo fim do machismo e dos crimes de LGBTIfobia.

O futuro entre esperanças e o reconhecimento

Apesar das mudanças e de todo esse novo cenário, as perspectivas futuras e as inseguranças sentidas pelos novos grupos de carimbó, ainda perpassam por anseios comuns de qualquer artista da Amazônia sentem. São problemas relacionados à infraestrutura dos espaços, ausência de oportunidades, falta de reconhecimento.

Mesmo assim, os artistas não perdem a esperança de conseguir oportunidades e reconhecimentos para si e para os que vieram antes, ocupando os espaços públicos de Belém, se manifestando e reconhecendo a importância dos mestres para o futuro do carimbó. Mas para quem interessa a desvalorização dos ritmos tradicionais da Amazônia? Para Gabriela, essa desvalorização surge pela falta do “direito a festejar” que ocorre nas periferias das cidades.

“O carimbó se mantém e a motivação vem da coletividade, das pessoas quererem estar juntas. E a outra questão é o direito a festejar, o direito à alegria, o direito à arte. As pessoas acham que festejar está muito relacionado à criminalização, existe uma forma muito vil, muito injusta, muito violenta e racista na minha opinião de ver o divertimento. As pessoas se divertindo é sinônimo de bagunça, desordem, sinônimo de problema.” Para a artista, a busca pelo direito de festejar motiva os grupos a estarem cada vez mais mobilizados a alcançarem outros lugares porque precisam sobreviver, “unir o útil ao agradável, as articulações, a paciência e a inteligência de conseguir falar a língua dos editais”.

Coletivo Volta ao mundo. Foto: @gc_arte

Ressaltar o papel dos mestres na construção da história do carimbó é uma forma encontrada pela nova geração de carimbozeiras, carimbozeires e carimbozeiros para que os artistas não sejam esquecidos. Como afirma Gabriela, “pensamos em quem veio antes, pensamos nos mestres que já se foram, nos mestres que ainda estão vivos, que precisam se alimentar, são vitórias importantes, se não fosse isso o carimbó não teria se tornado patrimônio imaterial”.

Outro destaque feito pela ativista e artista é sobre a indústria musical. De acordo com Gabriela, o mercado acaba por sempre escolher artistas que estão dentro de um formato e por isso se encaixam com facilidade naquilo que está no interesse de quem financia. “Existe financiamento público, mas infelizmente ele não é acessível, muitos mestres de carimbó não tem o reconhecimento merecidos, não tem uma aposentadoria digna, passaram anos escrevendo composições incríveis para o carimbó, patrimônio imaterial mas não são reconhecidos enquanto esse lugar da arte, ou seja, é mestre, parece que ser mestre é menos valorizado do que ser artista”.

Essa também é uma preocupação abordada por Andrezza. Ela conta como a ausência de valorização dos artistas gera ainda a migração de muitos profissionais para outros estados, buscando estabilidade e reconhecimento. “Desejo que a gente valorize os nossos aqui dentro do nosso território, os mestres estão morrendo, estão sendo esquecidos, acho importante que eles tenham retorno por tudo que nos deixaram, eu desejo muito para esses que vieram antes e para os que vieram agora, e que eles encontrem um lugar melhor para viver o carimbó, um espaço mais respeitoso”.

Sobre novas oportunidades e possibilidades, o cenário de hoje é um vislumbre de como o incentivo à diversidade tem o poder de alterar e criar novas histórias. Os artistas também buscam o respeito por ser quem são, como diz Anne:

“Não queremos tomar o lugar de ninguém, só queremos estar ali também e a nossa luta é essa. Não queremos ser melhores que ninguém, só queremos chegar, fazer nossa música e ser feliz fazendo aquilo que a gente gosta de fazer”,

finalizou.

*O conteúdo foi originalmente publicado pela Nonada Jornalismo, escrito por Alicia Lobato

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