Caldeirão de culturas e valorização regional: Movimento Roraimeira completa 40 anos

Entre os louros colhidos pelo trio durante as décadas de carreira está a maior honraria dada a um artista no Brasil: a medalha da Ordem do Mérito Cultural, em 2018.

Roraima é um caldeirão de cultura, né? Quem é roraimense, ou se sente ‘roraimado’, conhece de cor os versos da canção Makunaimando e, com orgulho, celebra as belezas naturais e culturais do extremo Norte do Brasil. Essa expressão é fruto da genialidade de três artistas de Roraima: Zeca Preto, Eliakin Rufino e Neuber Uchôa. Juntos, o Trio Roraimeira transformou a identidade de Roraima em arte.

O grupo comemora 40 anos de uma união artística tão forte que se consolidou como o Movimento Roraimeira, um marco na cultura roraimense, em 28 de agosto. Entre os louros colhidos pelo trio durante as décadas de carreira está a maior honraria dada a um artista no Brasil: a medalha da Ordem do Mérito Cultural, concedida ao trio em 2018. Hoje, eles são “cavaleiros da cultura brasileira”.

Com quatro álbuns lançados juntos, shows por todo o Brasil — na Europa também — e canções gravadas por grandes nomes da música, o trio hoje se consolida como os maiores expoentes culturais de Roraima, tendo o trabalho de exaltação ao estado refletido além da musica, nas artes plásticas, na dança e até na fotografia.

O movimento Roraimeira é o último grande movimento cultural do século 20, de acordo com a doutora pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul e que pesquisa o movimento Roraimeira pela Universidade Federal de Roraima (UFRR), Cátia Monteiro Wankler.

Trio roraimeira se apresenta em Roraima em foto de arquivo. Foto: Jorge Macedo/Divulgação

A musica composta por Zeca Preto, “Roraimeira”, que batiza o trio ficou em segundo lugar no 2º Festival de Música de Roraima em julho 1984, mas o marco inicial para o movimento foi uma apresentação no Teatro Amazonas em agosto do mesmo ano, que levou a cultura de Roraima para além das fronteiras do estado. O primeiro álbum “Roraima”, consolidando a identidade cultural nortista do trio veio apenas em 1992.

“O povo conseguiu entender a nossa mensagem. Eu conheci um homem aqui em Boa Vista, que foi pra um congresso e disse que era do Amazonas, e disse pra mim ‘Zeca, eu não vou falar que eu sou roraimense’. Passou um tempo e ele me disse ‘Poxa cara, você não imagina como eu me orgulho de ser de Roraima, vocês plantaram isso no meu coração’ eu fico muito emocionado”, relembra o cantor e compositor Zeca Preto.

O movimento rompeu fronteiras e foi parar até na Europa, em 1995, com shows na Suíça e Alemanha. Ao longo dos anos, o Trio lançou álbuns e fez apresentações, recebendo reconhecimento nacional.

Segundo o cantor e compositor Neuber Uchôa “a gente não poderia virar as costas, e decidimos ‘vamos fazer uma antropofagia’ a gente não pode abrir mão do que o colonizador trouxe, porque algo bom vai vir’ […] a gente já cantava a pedra nessa época, uma hora a gente ia ter que virar de frente para essas fronteiras” disse.

O ritmo “Makunaimeira” do trio, vem justamente dessa mistura. Na música “O Que É” Zeca cita os ritmos que fazem parte do cotidiano roraimense e também cita a mistura do norte com o sul do país.

O trio não “descobriu a roda” quando o assunto é falar de Roraima. Artistas plásticos, fotógrafos e dançarinos já retratavam o estado, mas “viraram a cara do movimento” por estarem sempre em evidência.

Para Cátia Wankler “a música atinge muito mais gente do que qualquer outra arte […] o papel do trio foi assim inominável, porque foi através deles que, apesar do movimento já existir, se lançou uma luz sobre o Roraimeira “, contou.

Alguns lançados pelo Trio Roraimeira ao longo de 40 anos. Foto: Caíque Rodrigues/Rede Amazônica

‘Uma nova era, lua nova’

O marco inicial do movimento Roraimeira foi um espetáculo promovido pelo trio no Teatro Amazonas, em Manaus, no dia 28 de agosto de 1984. Esse show que envolveu músicadança e artes plásticas foi tido como o “Manifesto Roraimeira”. Após isso, o mesmo espetáculo foi replicado em Boa Vista, em outubro. De lá para cá, o movimento se consolidou como um marco na cultural roraimense, mas a história é anterior a isso.

Tudo começou com uma canção, a Roraimeira, de Zeca Preto. O que iniciou como uma das mais belas canções a falar de Roraima, em pouco tempo, evoluiu para algo muito maior. Antes do marco inicial do movimento, durante festivais de música no estado, Zeca percebeu que outros artistas locais também estavam criando músicas com temáticas regionais semelhantes. Foi então que surgiu a ideia de unir forças e formar o movimento Roraimeira.

“Decidimos nos unir. Nosso primeiro show foi em agosto no Teatro Amazonas. Foi lá que tudo começou e desde então continuamos nessa estrada, fazendo muitos shows e difundindo nossa cultura”, recorda Zeca Preto.

A canção “Roraimeira” havia ficado em segundo lugar no “2º Festival de Música de Roraima” em 1984. Zeca relembra que a principio a música não havia sequer sido selecionada para participar do festival, mas tudo mudou quando Eliakin descobriu uma fraude no concurso — um dos selecionados tinha plagiado a obra de um amigo, o que deu espaço para a composição de Zeca brilhar.

Ele explica que o nome da música surgiu por acaso e foi uma “invenção” que “soou bonita”. A ideia era relacionar o estado com algo sagrado, por isso Zeca misturou as palavras “Roraima” com “Romaria” — o nome católico dado às peregrinações religiosas. Em 2015, a canção foi declarada “Hino cultural de Roraima” pelo governo do estado.

Outro marco do movimento é o poema “Cavalo Selvagem”, de Eliakin Rufino, publicado em dezembro de 1992, onde o poeta se coloca na posição deste animal marcante do lavrado roraimense. Em 2008, tanto a música “Roraimeira” quanto “Cavalo Selvagem” foram tombados como patrimônios culturais de Roraima.

Trio Roraimeira em apresentação em 2012. Foto: Jorge Macedo/Divulgação

“Os cavalos chegaram a Roraima há 225 anos, em 1789, trazidos para as fazendas reais da coroa portuguesa. Quando a república foi proclamada em 1889, as fazendas foram saqueadas e os cavalos abandonados. Esses cavalos começaram uma vida livre nas savanas, e é sobre essa liberdade que escrevi o poema ‘Cavalo Selvagem'”.

“A paisagem do Lavrado é única em Roraima, e o poema reflete essa singularidade. Comecei a declamar ‘Cavalo Selvagem’ em shows a partir de 1991. Lembro-me de um show em que abrimos com esse poema, e a reação do público foi incrível”, relembra o poeta Eliakin.

Para Cátia Monteiro, Cavelo Selvagem é um dos símbolos da Roraimeira e uma das obras mais relevantes do movimento.

“Cavalo Selvagem é um clássico. Cavalo Selvagem diz muito ‘eu sou o Cavalo Selvagem, não aceito cela’. Ele tá falando dos povos daqui de quem nasceu aqui, dos indígenas que nasceram aqui. Que querem continuar assim, cavalos selvagens, não querem ser dominados porque vem de fora por quem não é Cavalo Selvagem”.

Outro hit presente no consciente do roraimense é a canção “Cidade do Campo”, com letra de Eliakin e música por Armando de Paula. A obra é uma homenagem afetiva à capital roraimense, Boa Vista. O que poucos sabem é que a música foi feita para homenagear ao centenário da cidade e foi feita na mesma época em que Eliakin compôs o hino da capital.

A música foi um sucesso na voz do interprete Halisson Crystian, em 1998, e foi responsável por apelidar Boa Vista como a eterna “cidade do campo”.

“Em 1990, Boa Vista comemorou seu centenário, e o prefeito da época organizou dois concursos: um para criar o hino oficial da cidade e outro para músicas em homenagem ao centenário. Participei desse festival com a música ‘Cidade do Campo’, em parceria com Armando, e ganhei. A música foi um sucesso na voz de Alisson, mas só foi gravada em 1998, permanecendo anos no limbo”.

Não dá para falar de Roraimeira sem falar em uma das principais músicas do movimento. “Cruviana” é composição de Neuber Uchôa e foi lançada em 1992. Na boca do povo roraimense desde o seu lançamento, a canção fala sobre o orgulho nortista.

Para Neuber, “Cruviana” é como se fosse o “Trabalho de Conclusão de Curso” do compositor. Para ele, foi um dos momentos “mais incríveis da minha vida como compositor”. A letra é conta com versos iniciados em pronomes possessivos no início de cada frase.

“‘Cruviana’ nasce em um momento em que estávamos descobrindo o que tínhamos em mãos; já não era mais uma batata quente, já sabíamos o que estávamos fazendo. Todos nós fizemos obras nesse período, e eu compus ‘Cruviana’ nesse contexto. A música surgiu quando eu quis dizer que sou o cio da tribo”.

‘Voa meu pensamento sobre o Monte Roraima’

Com 40 anos de história, o movimento Roraimeira continua a ser um pilar da identidade cultural de Roraima, inspirando novos artistas e reforçando a importância da preservação das tradições locais. As vozes dos artistas de Roraima ecoam a influência e o impacto da mensagem de valorização regional. O g1 também ouviu artistas influenciados pela arte makunaimeira, entre eles a cantora e compositora Milena Makuxi.

Com 24 anos, a artista, como o nome já diz, de origem indígena macuxi, destaca o papel crucial do movimento na valorização das culturas dos povos originários, mesmo que o trio principal não seja indígena. Para ela, ver os símbolos e o dialeto indígena sendo destaque positivo em músicas foi uma importante fonte de inspiração para artistas das comunidades roraimenses, como ela.

A música de Milena funde ritmos como o reggae, MPB e carimbó com cantos tradicionais indígenas e é um reflexo dessa fusão cultural. Milena enxerga o movimento como uma força de resgate, essencial para a preservação da cultura de Roraima.

O impacto do Roraimeira é multifacetado e profundo, como destaca o cantor e compositor Hugo Pereira. Membro fundador de bandas importantes para a cena cultural atual de Roraima, como Jamrock e Bodó Valorizado, ele afirma que o movimento trouxe mais do que uma simples expressão musical; trouxe um “direcionamento” e uma “linha de pensamento” que transcendem a música, abrangendo um posicionamento político e ideológico.

“O Roraimeira não é só música, é um jeito de ver o mundo, de entender nossa identidade em Roraima. Até mesmo quando não temos a intenção de seguir essa linha, acabamos sendo influenciados por ela, porque faz parte de quem somos,” diz o artista, evidenciando como o movimento permeia o cotidiano dos músicos e artistas locais.

A cantora e compositora Euterpe também expressa a importância do movimento na construção da identidade cultural de Roraima. Na visão dela, o Roraimeira não só enriqueceu a cena musical, mas também todas as formas de arte no estado.

Roraimeira: 40 anos da ‘Regionalíssima Trindade’

Durante as quatro décadas de carreira o trio viveu muitos momentos especiais e importante para o movimento, como em 1996 e 1998, quando o Roraimeira se apresentou na Suíça e na Alemanha, levando a cultura Roraimense para a Europa.

Neuber Uchoa, que se apresentou na Alemanha junto com Zeca preto, contou que a maior realização foi cantar músicas autorais em outro país.

“A maioria dos brasileiros vão para fora para cantar samba ninguém é doido de não fazer isso, só a gente. A visão lá fora é samba, é futebol. Mas gente insistia na história, grande mérito do movimento é esse, e a gente tem insistido encantar nossas músicas”.

E no Brasil, o trio se apresentou no Rio de Janeiro a convite do cantor e compositor Nilson Chaves, e também em em Curitiba na Caixa Cultural, além da turnê que fizeram pelo Norte do país.

Zeca, Eliakin e Neuber lançaram quatro álbuns do Roraimeira, o primeiro “Roraima”, foi lançado em 1992. Já o segundo, “O Canto De Roraima e Suas Influências Indígenas e Caribenhas” foi o primeiro álbum gravado ao vivo em Roraima, em 2000.

E mesmo em carreira solo nos anos 2000, o trio continuou se reunindo em momentos especiais, como em 2009 na gravação do terceiro álbum “Roraimeira – O Canto De Roraima” que celebra os 25 anos do Roraimeira.

E também na gravação do álbum “Show Roraimeira 30 anos” que foi gravado ao vivo no auditório do Centro Amazônico de Fronteiras da Universidade Federal de Roraima (CAF/UFRR).

A “regionalíssima trindade” também conquistou a maior honraria dada a um artista no Brasil: a medalha da Ordem do Mérito Cultural, em 2018. Junto ao Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro e o Museu de Arte de São Paulo (Masp), Zeca, Eliakin e Neuber se tornaram cavaleiros da cultura brasileira.

“Nós somos cavaleiros da Ordem do Medo cultural, que é o maior prêmio dado no Brasil de reconhecimento. E isso pra gente foi legal, porque a gente tá aqui no extremo norte, nós somos os primeiros na área da cultura”, disse Eliakin.

Além de shows na Europa, honrarias e shows em festivais, o trio também teve músicas regravadas por artistas nacionais, como Gaby Amarantos, que regravou “Pimenta com Sal”, uma composição de Eliakin Rufino.

“Hoje tem mais de 10 gravações nessa minha música […] A Lucinha Bastos lançou um CD chamado Pimenta com Sal, e a musica estoura em Belém, e a Gaby diz ‘Po, essa música é boa, quero gravar de quem é?”, contou o poeta.

Gaby Amarantos então chamou a cantora Fernanda Takai, já que “são uma preta e uma branca de mãos dadas na praia”.

“Gaby Amarantos e Fernanda Takai foram para o Altas Horas, e a música começou a ter uma repercussão incrível”, relembra Eliakin.

Em 2024, quando o Roraimeira completa 40 anos, o trio fez shows no São João do Anauá, no Sesc-RR e também vai se apresentar no palco do Teatro Municipal, durante o festival Mormaço Cultural.

*Por Rayane Lima e Caíque Rodrigues, do Grupo Rede Amazônica RR

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