Geógrafa identifica forma de afirmação da pluraridade dos povos originários em produção artística contemporânea

A geógrafa Olívia Pires acredita que através da produção artística dessas populações, elas demostram que existem, que são diversas e que possuem modo de vida múltiplos.

Pode a arte catalisar a resistência de populações indígenas brasileiras? Para a geógrafa Olívia Pires Coelho, a resposta é: “Sim”. Ao produzirem cultura, essas populações demonstram que existem, que são diversas e que possuem modos de vida múltiplos, ajudando a combater o mito segundo o qual todos os indígenas possuem uma única identidade. A conclusão da pesquisadora faz parte de sua tese de doutorado, defendida na Faculdade de Educação (FE) da Unicamp, e resultou de um estudo em que buscou traçar caminhos e interseções das obras de artistas do movimento de resistência dos povos originários.

“A ideia de trabalhar com arte indígena surgiu porque eu cresci em uma família na qual há um diretor de teatro. A Companhia Vitória Régia, que ele fundou, tem como mote as questões amazônicas, principalmente a identidade desses povos, seu pertencimento e os elementos que os formam, sempre partindo do ponto de vista da multiplicidade”, relata a autora, que cresceu em Manaus, em uma família de linhagem indígena. “Quando eu escolhi trabalhar com esse tema, a ideia era utilizar a minha experiência para descobrir outras expressões artísticas mais contemporâneas e que também conversassem com a ideia de multiplicidade.”

No estudo, a autora explorou dois campos argumentativos distintos. Em primeiro lugar, Coelho investigou a arte no contexto familiar, a partir de suas memórias junto à companhia de teatro de Nonato Tavares, seu tio. Nesse caso, a educadora utilizou uma abordagem autoetnográfica, um ramo da etnografia em que as experiências pessoais do pesquisador são analisadas minuciosamente e relacionadas com situações, eventos e experiências compartilhadas com pessoas que se encontram em situação semelhante, refletindo aspectos estruturais da sociedade.

Em um segundo momento, a autora utilizou a abordagem da investigação baseada nas artes (IBA) para ligar suas experiências com as de cinco artistas indígenas contemporâneos das artes visuais: Naine Terena, Denilson Baniwa, Arissana Pataxó, Jaider Esbell e Gustavo Caboco Wapichana. O objetivo, no entanto, não foi realizar uma análise crítica das obras desses artistas, mas colocá-las como ponto central da pesquisa, investigando como essas obras dialogam com experiências que, embora particulares, também estão presentes na história de outras pessoas.

Para o orientador Silvio Gallo, tese proporcionou também um inédito processo de auto conhecimento. Foto: Antonio Scarpinetti

De acordo com o professor Sílvio Gallo, que orientou o doutorado, além de abordar um tema raramente presente nas pesquisas da área de educação, a tese se destaca pela possibilidade de Coelho olhar para si mesma e se autodescobrir, uma metodologia sugerida pela professora aposentada da FE Ana Lucia Goulart. “Eu não sei se isso está presente em outras áreas, mas é muito interessante para a gente do campo da educação se permitir determinados descaminhos na pesquisa. E o estudo de Olívia tem um elemento de produção de um conhecimento novo, mas também a produção de um autoconhecimento sobre algo que não estava previsto no processo acadêmico”, afirma.

Multiplicidade

Todos os artistas selecionados para compor o corpo da tese trabalham com a ideia de que ser indígena não é uma característica única ou que pode ser sintetizada em apenas um conceito, um modo de estar no mundo ou uma única cor de pele. Coelho exemplifica isso ao mencionar a obra “Mikay” (“pedra que corta”, em Patxôhã), de Arissana Pataxó. Composta por um facão de cerâmica marcado com os dizeres “O que é ser índio para você?”, a obra resultou do incômodo da artista plástica com os comentários de pessoas que se surpreendiam diante do fato de ela não ter a imagem estereotipada de indígena.

“A ideia de resistência principal, nesse contexto, é que nós somos muitos e diferentes. O próprio conceito de arte indígena contemporânea, que tem sido a arte produzida no contexto de maior difusão, passa por um embate grande porque muitos artistas não concordam com essa ideia”, relata. “Para eles, isso seria uma forma de reducionismo do que se chama arte indígena ancestral, como se as obras produzidas na aldeia fossem diferentes das encomendadas pela galeria e avaliadas por curadores e acadêmicos”, comenta a pesquisadora.

Por esse motivo, um grande desafio da geógrafa ao longo da pesquisa traduziu-se em conseguir dar conta da multiplicidade de opiniões e pontos de vista dentro do movimento indígena. Por outro lado, essa dificuldade a ensinou a realizar escolhas e defender seus posicionamentos, como a do próprio uso do termo “arte indígena contemporânea”. Dialogando com a opinião defendida por Gustavo Caboco Wapichana, a autora entende que, ao estar relacionada com a ideia de difusão e formação de redes, a arte contemporânea contribui para se tornar um ponto no qual tanto as populações indígenas como as não indígenas podem se relacionar com o diferente.

Para a autora, somente o contato com o diferente proporciona essa multiplicidade de opiniões e identidades, algo que, inclusive, contribuiu para ela mesma entender suas origens. Embora venha de família indígena, Coelho foi adotada na infância por um professor universitário branco que havia se casado com sua mãe. A experiência de sair da periferia e ingressar no ambiente universitário trouxe oportunidades a que a maior parte dos indígenas só começou a ter acesso nos últimos anos. Por outro lado, fez nascer na hoje geógrafa uma identidade fragmentada, cuja construção só terminou, segundo ela, com a finalização da própria tese.

“Eu já me afirmei muito como descendente de indígenas. Então, foi um processo que eu construí a partir dos pontos de encontro que tive com o movimento indígena e outras experiências”, relata a pesquisadora, que se graduou na Universidade Federal do Amazonas (Ufam), fez mestrado na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e estagiou, durante o doutorado na Unicamp, na Universidade Católica de Louvain (Bélgica). “Se eu tivesse ficado no Amazonas, a indagação sobre mim não teria surgido tão facilmente. Foi preciso ir até o Rio Grande do Sul e depois até a Europa para eu ter a minha identidade tensionada e ver que, diferentemente dos meus colegas, apenas a palavra ‘brasileira’ não seria suficiente para me definir”, relata.

*O conteúdo foi originalmente publicado pelo Jornal da Unicamp, escrito por Paula Penedo, com fotos de Antonio Scarpineti

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