Exposição de peças arqueológicas no Amazonas conta histórias de indígenas do Rio Negro

Programa Parinã exibiu achados em escavações em São Gabriel da Cachoeira que guardam semelhança com a arte da cerâmica indígena atual.

Uma construção constante da história com peças arqueológicas, narrativas indígenas, mapas, fotos e documentos sobre o Rio Negro em diversas épocas é a proposta da exposição ‘Memórias das Paisagens Ancestrais’, realizada na Casa do Saber/Maloca da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn), em São Gabriel da Cachoeira, no Amazonas.

A mostra, realizada em fevereiro, foi produzida pelo Museu da Amazônia (MUSA) e reuniu parte do resultado dos trabalhos do Programa Arqueológico Intercultural do Noroeste Amazônico (Parinã), desenvolvido por pesquisadores indígenas e não indígenas das áreas da arqueologia, cartografia, antropologia e história. Visitantes puderam contribuir com a exposição por meio de um mapa interativo da região.

“Com a exposição, demos um retorno do que foi feito até agora dentro do Parinã, com várias camadas de conhecimento que incluem de peças arqueológicas à narrativa oral de um mito. De documentos e fotos antigas à história de uma pessoa que sabe o que aconteceu naquele lugar, porque o avô contou”,

afirmou Filippo Stampanoni, arqueólogo e diretor-adjunto científico do MUSA.

Peças arqueológicas encontradas em São Gabriel da Cachoeira (AM). Foto: Ana Amélia Hamdan/ISA

“Propusemos aos visitantes uma caminhada pela trajetória do que é essa experiência coletiva da história na região do Rio Negro”, informou. A mostra foi financiada pela British Academy.

Programa Parinã 

Iniciado em 2018, o Programa Parinã envolve diversos parceiros, como o Instituto Socioambiental (ISA), o Museu Paraense Emílio Goeldi (MPEG), o MUSA, o Instituto de Arqueologia da University College London (UCL) e a Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), e com apoio da Foirn.

No caminho de histórias proposto pela exposição, os visitantes puderam ver fragmentos arqueológicos encontrados em escavações em São Gabriel da Cachoeira em 2019 e 2022, na praça da Diocese e na área da sede do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio). Elas indicam que a região é ocupada há pelo menos dois mil anos.

Com os fragmentos retirados do sítio arqueológico, foi possível reconstituir uma peça do período pré-colonial, possivelmente usada para decoração, que acabou se destacando das outras pela diferença de estilo, levantando uma série de hipóteses.

Uma dessas possibilidades é que a região onde hoje está o município de São Gabriel pode ter abrigado uma sociedade pluriétnica no passado. A cidade guarda essa característica atualmente, pois é um dos principais centros urbanos de um grande território onde vivem 23 povos indígenas.

“Nas escavações em São Gabriel, foram encontradas peças da chamada Tradição Polícroma da Amazônia, conjunto estilístico de distribuição ampla e padronizada datada do período de 800 a 1.600 (DC)”, explicou Stampanoni.

“Podemos imaginar que esse modelo é mais antigo que o período citado. Podemos pensar também que a peça é de um mesmo período, mas de grupos regionais que se encontraram nessa região onde hoje está São Gabriel, caracterizando uma sociedade pluriétnica”, definiu o arqueólogo. 

Apesar da diferença de estilo, as peças encontradas trazem uma importante semelhança na forma de serem feitas. Todas são confeccionadas com o mesmo tipo de material – basicamente argila e caraipé (casa de árvore queimada e moída) – usado ainda hoje pelas ceramistas da região.

“Podemos dizer que existe uma tradição tecnológica no fazer cerâmica que começa há dois mil anos e chega até hoje e está continuando para o futuro. Se a gente for pensar de forma geral, o Alto Rio Negro é uma região onde é possível esticar uma linha do tempo, uma continuidade cultural desde muito antigamente até hoje em dia”, contou. 

A cerâmica é um dos parâmetros para se observar essa continuidade. A antropóloga Fran Baniwa, que pesquisa o papel das mulheres na sociedade Baniwa, visitou a exposição e trouxe reflexões sobre a ligação dos povos do Rio Negro com o território.

“Nunca imaginei ver utensílios antigos, usados para comer e fazer comida, ornamentações e rituais. Feitos da forma que ainda hoje utilizamos”, descreveu. “Essa exposição vem comprovar, por meio de outras metodologias, o que já está nas nossas narrativas: que desde sempre, desde a construção desse mundo, estamos aqui. O estudo é fundamental e reafirma a nossa presença nesse território”,

completou.

Essas narrativas citadas por Fran Baniwa fizeram parte da exposição. Um minidocumentário produzido pela antropóloga Aline Scolfaro e pelo cineasta Moisés Baniwa mostrou conhecedores indígenas andando por São Gabriel e explicando pontos considerados como espaços de importantes acontecimentos relatados nas narrativas míticas. O filme ainda não está disponível para exibição.

Para a arqueóloga Meliam Gaspar, do MUSA, que também esteve no município, o diferencial da mostra foi ver as pessoas se identificando com a exposição e contando a história delas ou recontando o já escrito.

Um dos painéis trouxe um mapa onde as pessoas podiam acrescentar pontos de locais sagrados que eles conhecem, mas que ainda não estão descritos. “As pessoas gostam de ver o que está relacionado com a história delas, falar de sua própria história. Essa é uma das partes especiais da exposição”, refletiu. 

Exposição em São Gabriel reuniu parte do resultado dos trabalhos do Programa Arqueológico Intercultural do Noroeste Amazônico (Parinã). Foto: Ana Amélia Hamdan/ISA

A exposição foi visitada por conhecedores e lideranças indígenas da região, estudantes e público em geral. Moradora da Ilha de Duraka, às margens do Rio Negro, em São Gabriel da Cachoeira, Maria Odicleia Freitas Escobar, do povo Baré, foi uma das monitoras da exposição. Recém-formada em arqueologia, ela fez esse exercício da construção de saberes, rememorando a história de sua comunidade.

“A ilha de Duraka é um dos lugares onde a canoa de transformação ancorou. Ela ancorou e amarrou sua canoa no tronco da árvore chamada Duraka e saiu para ver se podia dar continuidade à viagem, pois logo acima desse ponto há muitas pedras no trecho do rio. Esse tronco ainda está lá, mas em forma de pedra e é um lugar sagrado”, disse.

O mito da cobra-canoa ou canoa da transformação fala sobre a origem dos povos Tukano da região. A exposição contou ainda com painéis narrativos, imagens e documentos referentes ao período colonial e da presença dos europeus na região. O material cartográfico possibilitou a visualização de São Gabriel com suas diversas camadas de histórias.

Para marcar a realização da exposição foi realizada uma roda de conversa com a presença do antropólogo Manuel Arroyo-Kalin, do Instituto de Arqueologia da University College London (UCL), também pesquisador do Parinã.

Participaram do encontro a bióloga Natália Pimenta, analista do Instituto Socioambiental (ISA), e o diretor da Foirn, Dário Cassimiro, do povo Baniwa. No encerramento, a artista indígena Rose Waikhon, do povo Piratapuya, fez uma performance trazendo elementos culturais e ancestrais dos povos indígenas do Rio Negro. “A exposição traz páginas das narrativas que sempre estiveram na nossa oralidade”, refletiu. A mostra contou com um poema de autoria da artista.

*Este conteúdo foi originalmente publicado pelo ISA, com reportagem de Ana Amélia Hamdan.

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