Caubóis da floresta: rodeios ao estilo norte-americano invadem a Amazônia

Na esteira do desmatamento que avança sobre a Floresta Amazônica, cresce no sul do Pará um fenômeno cultural, associado à pecuária: rodeios ao estilo norte-americano.

Reza durante cavalgada em Canaã dos Carajás, Pará. Foto: Ricardo Teles

Nem bem o sol desponta por trás dos montes, a cavalgada já está a mil no Parque de Exposição Agropecuária. Cavaleiros montando potentes zebus ou mulas enfeitadas de argolas de ferro. Mulheres desfilando em roupas de cores festivas, carregadas de lantejoulas. A moda é sincrética: biquínis com chapéu de caubóis ou cocares de indígenas norte-americanos. A música sertaneja bomba nas alturas, enquanto locutores saúdam autoridades e animam o público. A carne é distribuída generosamente entre a população local.

Podia ser Barretos, capital paulista dos rodeios. Podia ser o Texas. Mas é Canaã dos Carajás, no sudeste do Pará, nas bordas da Amazônia. O município nasceu há quarenta anos, com a regularização de terras de grileiros, mas teve seu “boom” no início deste milênio, após a descoberta de enormes jazidas de minério de ferro. Em três anos, de 2010 a 2013, sua população triplicou. Hoje são quase 40 mil habitantes.

Depois da mineração (legal e ilegal), veio a pecuária, que contribuiu para o aumento exponencial do desmatamento não só em Canaã dos Carajás como em toda Amazônia paraense, sobretudo ao longo do chamado do Arco do Desmatamento – a grande franja de pastagem que vem comendo a Floresta Amazônica pelas bordas.

“Isso aqui tudo ao redor era mata”, lembra Manoel dos Santos, que está na região desde os tempos da corrida do ouro de Serra Pelada. “Parauapebas não existia, Curionópolis não existia”, diz, citando algumas das muitas cidades que cresceram naquela parte do Pará. “Era caititu, anta, tatu, paca, veado-mateiro. No começo, as pessoas se sustentavam só com carne de caça.”

Desmatamento exponencial 

Segundo o MapBiomas, nas últimas quatro décadas de exploração e colonização intensivas, a Amazônia Legal brasileira perdeu 46 milhões de hectares de floresta, a maior parte convertidos em pastagens para gado.

No início, nos anos 1970 e 1980, a expansão da criação de gado na região amazônica brasileira era limitada a grandes fazendeiros que se estabeleceram na Amazônia Oriental, nos estados de Pará e Mato Grosso, graças à especulação fundiária, crédito e incentivos governamentais. Atualmente, são os filhos e netos dessa geração de fazendeiros e seus funcionários que estão envolvidos na pecuária, uma das poucas opções de trabalho na região.

São esses descendentes que agora se transformam em caubóis, criando uma subcultura que funde a imagem tradicional dos vaqueiros norte-americanos com a música sertaneja brasileira e normaliza o desmatamento como uma forma de exploração da terra.

Inicialmente, a criação de gado na Amazônia era altamente rentável, devido aos generosos incentivos e subsídios governamentais que estimulavam essa atividade. Embora muitos desses incentivos tenham sido cortados posteriormente, novos estímulos surgiram, o que impulsionou a expansão da criação de gado por toda a Amazônia. Em 2004, o Brasil se tornou o principal exportador global de carne, com o crescimento impulsionado pela produção amazônica, que aumentou dez vezes mais rápido do que a média nacional nos anos 1990.

A erradicação da febre aftosa e as condições climáticas favoráveis tornaram a Amazônia uma região viável para a criação de gado, que antes ocorria em regiões produtoras mais próximas de grandes centros urbanos, onde a terra era mais cara. Em 2021, segundo o IBGE, a região Norte já detinha 25% do rebanho bovino nacional.

Tropeiros em Rio Verde (PA). Foto: Ricardo Teles

Ocupação especulativa

E quem está na linha de frente do desmatamento na Amazônia é justamente o peão de boiadeiro, chamado na região de tropeiro, cujas habilidades no manejo do gado são celebradas anualmente em rodeios como o de Canaã dos Carajás. Para Paulo Barreto, pesquisador do Imazon (Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia), o tropeiro amazônico é o principal agente do chamado “desmatamento prematuro”.

Segundo Barreto, “existem três fatores para se entender o desmatamento por razões econômicas. O primeiro é o interesse pela área de mata, se ela tem alguma atração agropecuária ou para a mineração. O segundo é se existem leis que protegem aquela área e se essas leis são realmente cumpridas. O terceiro é se o acesso à área é fácil. Se existe estrada ou rio que facilite a pessoa a chegar na área a ser desmatada. Na Amazônia, o desmatamento ocorre mesmo quando esses fatores não estão presentes. É um desmatamento prematuro onde áreas bem distantes são ocupadas por pessoas que acreditam que um dia a estrada vai chegar lá, as terras serão regularizadas e o terreno irá valorizar”.

Nessa estratégia de ocupação especulativa, a pecuária é a ferramenta ideal, pois prescinde da necessidade de infraestrutura de apoio, como silos no caso da produção de grãos. “Se um fazendeiro decide plantar soja, ele vai precisar estar perto de uma certa infraestrutura para conseguir armazenar a produção na hora da colheita, ter uma estrada perto para transporte, etc. O gado não precisa dessa infraestrutura”, diz Barreto.

Para os produtores, a criação de gado apresenta diversas vantagens em relação a outras formas de uso da terra, especialmente para grupos pobres e isolados. É uma atividade menos arriscada e requer menos investimento inicial, além de demandar menos trabalhadores em comparação à agricultura. Além disso, o gado é um ativo líquido que preserva seu valor e pode ser facilmente transportado para mercados próximos.

Os tropeiros são fundamentais nesse processo: abrem picadas na floresta e tocam o gado por ela, andando por vezes até dias, sem precisar de estradas. Chegam até a região distante a ser desmatada e colocam novilhas por lá, que logo vão virar vacas e gerar bezerros. Entre a ocupação e a retirada do gado gordo para vender, podem demorar seis ou sete anos. “Para o fazendeiro, isso é um ativo biológico semelhante a uma aplicação bancária”, explica Barreto. “Se, no pior cenário, a estrada não aparecer, ele tira o gado de lá e vende. Se tiver pressa, vende os bezerros para engorda a uma fazenda mais próxima de um frigorífico”.

Resumindo: é uma ocupação especulativa resultante em uma pecuária ineficiente, de baixa produtividade e um desmatamento muito além do necessário, em termos econômicos.

Queimada criminosa em Área de Proteção Ambiental do município de Anapu (PA). Foto: Ricardo Teles

Baixos salários e o sonho de ser campeão 

O objetivo desse modelo de pecuária não é ampliar a produtividade por hectare, mas desmatar a maior área possível, se apropriando de terras que são públicas ou protegidas pelo Estado. Em termos de desenvolvimento regional, ele soma um desastre social ao desastre ecológico.

“Eles abrem áreas imensas, com baixíssima produtividade. Consequentemente, a geração de emprego é pequena e a qualidade do emprego é ruim”, diz Barreto. Mesmo dentro da Amazônia, quando a pecuária é comparada com outros setores, ela apresenta níveis maiores de informalidade e salários menores. “São trabalhadores espalhados em uma área gigante, que geram uma demanda por energia, saúde, educação e muito pouca arrecadação de impostos”.

Os baixos salários tornam o sonho do peão de rodeio ainda mais atraente, quando se sabe que um campeão pode ganhar até R$ 30 mil caso consiga ficar montado no touro por pelo menos 8 segundos, além da fama e oportunidades de patrocínio.

“Todo peão quer vir pro rodeio, quer ser campeão. A adrenalina que passa na cabeça quando a gente tá em cima de um boi, mete o pé na porteira e solta aquele trem pra fora… o cara que passa por isso não larga mais. Você quebra uma junta, um pé, mas não sai fora. Se o braço tá esfolado, a gente amarra e vai pra cima do boi”,

diz Mateus de Assis Pereira, que trabalha em uma fazenda de gado no sul do Pará.

São dois os pontos altos da cultura country-amazônica: o rodeio e a cavalgada. Relembrando as picadas que desbravaram o centro e o sul do país desde os tempos do Brasil colonial, a cavalgada é formada por grupos distintos de cavaleiros, as comitivas, cada ums com seu patrocinador — em geral fazendas de gado, marcas de tabaco e rapé e lojas de roupas, selas ou componentes para montaria. Os cavaleiros partem de um extremo da cidade e a atravessam até chegar ao local da exposição local. 

Peões rezam antes da competição de montar em touros durante rodeio em Canaã dos Carajás (PA). Foto: Ricardo Teles

Trailers e caminhões seguem na frente, tocando música sertaneja, muitas vezes com artistas ao vivo. Após marchar pela cidade por horas, todos se reúnem em um acampamento ou em um centro de exposições para beber e comer churrasco, com carne doada por fazendeiros e comerciantes da região. Em 2022, mais de 9 toneladas de carne foram servidas durante a Expocanaã, em Canaã dos Carajás.

Até poucos anos atrás, quem quisesse participar de um rodeio precisaria se deslocar para o Sudeste ou Centro-oeste, locais tradicionais de grandes shows agropecuários. Na Amazônia, o crescimento explosivo decorrente da pecuária trouxe dinheiro e investimento em exposições de gado, cujo ápice é o rodeio. Os eventos são anuais, mas como se multiplicaram pelas cidades da região, praticamente não se passa um mês sem uma cavalgada ou rodeio.

E, assim, a cultura country-amazônica avança junto com o desmatamento, comendo a floresta pelas bordas ao som de música sertaneja, com cheiro de churrasco.

Como diz Leandro Santos, que, além de tropeiro, construiu um verdadeiro centro de treinamento para os peões que almejam participar de rodeios no Brasil e, sonho máximo, nos Estados Unidos: 

“Antes a cidade era pequena, tinha pouca gente. Aí foi expandindo e os trem foram valorizando. A cavalgada de Canaã é uma das mais bonitas da região e o povo começou a apoiar os rodeios. Antes, para ver um rodeio bonito, você precisava ir a Rio Verde ou Barretos. Agora tem aqui e vai crescer ainda mais, se Deus quiser”.

Leandro Santos

Desfile durante a cavalgada em Canaã dos Carajás (PA). Foto: Ricardo Teles

 *O conteúdo foi originalmente publicado pela Mongabay, escrito por Heinar Maracy

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