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Quarta, 01 Mai 2024

Perigo e 'sustança' à mesa: histórias sobre o baiacu e o turu

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Para começo de conversa, comunico aos/as leitores/as que este ensaio é de cunho fotoetnográfico, portanto, ancora-se em narrativas textuais e imagéticas, cujas fotografias contribuem como "[...] forma de saber ver e saber dizer melhor para fazer pensar por meio da imagem [...]" (SAMAIN, apud ACHUTTI, 2004, p. 83). Assim, as fotografias que "povoam" este ensaio fazem com que os/as leitores/as percebam detalhes e informações que normalmente não se mostram à primeira vista. São detalhes que se escondem por detrás da aparência e que, às vezes, só a fotografia pode revelar. Portanto, aqui, as fotografias são autônomas, "pensam" e nos fazem pensar sobre algumas experiências dos/as araienses, ora com o baiacu, ora com o turu. 

Foto: Miguel Picanço/Acervo Pessoal.

Dito isso, informo que Araí está localizada no meio rural, a 60 km do município de Urumajó (Augusto Corrêa), na região nordeste do estado do Pará, particularmente na Amazônia Atlântica. É um vilarejo com aproximadamente três mil habitantes, sendo uma das maiores comunidades rurais do município, tendo como principais atividades produtivas a plantação de roça de mandioca e a pesca artesanal (PICANÇO, 2018). Esta última se processa nos manguezais e nas águas do principal rio do lugar, denominado de rio Araí.

Torna-se necessário registrar aqui, que "os Manguezais são ecossistemas que apresentam uma alta biomassa e concentração de biodiversidade. A alta produtividade favorece a exploração destes ecossistemas por muitas populações que vivem tradicionalmente da mariscagem e da pesca artesanal" (SOUTO, 2004, P. 22), como é o caso de praticamente todos os habitantes das comunidades rurais que compõem a região costeira do estado, em particular dos moradores de Araí.

Importa frisar que este ensaio é um recorte do campo fotoetnográfico deste aprendiz de antropólogo, o qual, há algum tempo tem se dedicado no estudo e registro, particularmente por meio de imagens, das experiências de pescaria e de comensalidades do povo araiense. O ensaio, ora apresentado, diz respeito a dois seres que povoam não apenas os manguezais e as águas do rio Araí, mas também as mesas dos araienses, a saber: o baiacu (tetraodontídeos) e o turu (Teredonavalis).

 O primeiro é um peixe, ao qual é atribuído certo perigo, chegando a ser conhecido como peixe venenoso, cujo o consumo inadequado pode ser fatal, levando o comensal a óbito. Casos de morte, proveniente do consumo inadequado do peixe, são registrados, conforme ocorreu com o primo da Leila, moradora de Araí:

O Henrique fez uma moqueca de fígado e ovas de outros peixes e misturou com o fígado de baiacu. E, acredito que esse fígado de baiacu tava envenenado, devia ter estourado e o veneno se espalhou e misturou. Depois de meia hora ele foi com o amigo dele lá pra banda do porto. Quando chegaram lá, ele disse ao amigo que não estava se sentindo bem, logo começou a se tremer, se debater, se babando e colocando uma baba verde pelo canto da boca. O amigo dele correu pra chamar a esposa do Henrique. Foi uma galera pro porto, atrás do Henrique, chegaram lá ele estava se debatendo, morreu logo depois. Isso aconteceu em Dezembro de 2022. 

Conversa informal com Leila, 2023.

 Outro caso me foi contado, desta vez por Natanael, o qual também foi vítima do peixe, escapando por pouco de uma fatalidade:

Eu peguei o baiacu salgado, depois de botar de molho eu coloquei numa brasa e comi uns três. Depois que acabei de comer fui me deitar. Aí, quando eu olhava pro telhado amode, assim, que atava rodando, já. Aí, eu levantei e sentia uma coisa ruim, aí, fui andar, comecei a trocar as pernas, já, parecia que eu tava porre. Passei dois dias naquela arrumação.

Conversa com Natanael, 2023.

Um dado interessante sobre o veneno do peixe, diz respeito a sua relação com o florescer dos cajueiros. Ocorre que, em Araí, durante o florescer dos cajueiros , setembro a outubro, é proibido o consumo do baiacu, o tabu se faz necessário porque, segundo os/as araienses, nesse tempo o veneno encontra-se espalhado por todo o peixe. Comê-lo no florescimento do cajueiro significa pedir para morrer, afirmou Leila.

Apesar do perigo que cerca os comensais adeptos de baiacu, sua presença à mesa pode ser possível, para tanto, exige-se sabedoria para, cuidadosamente, expelir o famoso veneno do peixe, o qual concentra-se em uma pequena glândula, que depois de retirada o torna próprio ao consumo humano. A retirada do veneno exige muito cuidado e técnica, sob pena da glândula estourar, tornando o peixe incomestível.

Glândula de veneno do baiacu. Foto: Miguel Picanço/Acervo Pessoal.

Além do baiacu, Araí e quiça em toda a Amazônia Atlântica são atravessadas pelo turu, um tipo de molusco, uma comida tão marcante e especial por essas paragens amazônidas quanto o peixe venenoso. Por lá, sua presença é historicamente notada desde as populações ameríndias. Para os de fora, a aparência do molusco pode causar estranheza, para os araienses ele é comida que dá sustança, acreditando-se e atribuindo-lhe considerável carga curativa e afrodisíaca, de modo que há uma máxima do pensamento social daqueles territórios amazônidos que diz que, o turu, particularmente o seu caldo, levanta até defunto.

Decerto é, que tanto o baiacu quanto o turu contribuem não somente para composição alimentar dos povos que habitam as comunidades rurais da Amazônia Atlântica paraense, eles mobilizam crenças e cosmologias que sustentam os modos de viver e compreender o mundo e a vida, como ocorre como povo de Araí. 

Referências

ACHUTTI, Luiz Eduardo Robinson. Fotoetnografia da Biblioteca Jardim. Porto Alegre: EDUFRGS, 2004. CONTRERAS, Jesús. Alimentación y Cultura: reflexiones desde la Antropología.

LEILA. [Entrevista cedida a] Miguelde Nazaré Brito Picanço, em Araí, AugustoCorrêa /PA, em abril, 2023. Entrevista realizada para finalidades de pesquisa.

NATANAEL. [Entrevista cedida a] Miguelde Nazaré Brito Picanço, em Araí, AugustoCorrêa /PA, em abril, 2023. Entrevista realizada para finalidades de pesquisa.

PICANÇO, Miguel de Nazaré Brito. Na roça, na mesa, na vida: uma viagem pelas trajetórias da mandioca, no e além do nordeste paraense. Belém: Paka-Tatu, 2018.

SOUTO, Francisco José Bezerra. A CIÊNCIA QUE VEIO DA LAMA: uma abordagem etnoecológica abrangente das relações ser humano/manguezal na comunidade pesqueira de Acupe, Santo Amaro, Bahia. (Tese de doutorado). Universidade Federal de São Carlos, Programa de pós-graduação em Ecologia e recursos Naturais: 2004.

Sobre o autor

Miguel Picanço é doutor em Ciências Sociais (PPGCS/UNISINOS/ PDSE/ODELA-Universidad de Barcelona) e pós-doutor em Antropologia da Alimentação: Alimentação, Patrimônio e Turismo (ODELA-Universidad de Barcelona).

*O conteúdo é de responsabilidade do colunista.

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