Bom para comer, vender e para se ver: um olhar por entre as coisas de comer nas ruas e esquinas da grande Belém

As narrativas textuais e imagéticas têm ajudado a mostrar que, tais práticas e experiências, apesar de relativamente antigas, se mantêm frente a um contínuo processo de modernização

A priori, preciso destacar que este ensaio é um recorte do meu campo fotoetnográfico, por meio do qual desde o ano de 2015 tenho observado e descrito algumas experiências de consumo e comensalidades no contexto urbano de Belém, direcionando meu o olhar àquelas práticas “banais” e corriqueiras que performam e atravessam os modos de comer, de vender e de viver, especialmente, nas periferias da capital paraense e sua região metropolitana. As narrativas textuais e imagéticas têm ajudado a mostrar que, tais práticas e experiências, apesar de relativamente antigas, se mantêm frente a um contínuo processo de modernização que toma conta da Cidade das Mangueiras.

VERDUREIRO: vendedor de verduras, frutas e legumes. Os verdureiros circulam, pelas manhãs, nas ruas de Belém. Foto: Miguel Picanço/Acervo pessoal.

Destarte, a fotografia tem se mostrado uma potente aliada, me possibilitando captar os detalhes, as especificidades empíricas da realidade estudada que, às vezes, escapam ao primeiro olhar, não se revelando à primeira vista (SAMAIN apud ACHUTTI, 2004, p.83). São detalhes que não são ditos ou escritos, se escondem por detrás da aparência e que, às vezes, só a fotografia pode revelar.

Dito isso, importa salientar que as narrativas deste texto fazem referência a repertórios alimentares e a tratativas “mercadológicas” que, no decorrer do tempo, têm atravessado e figurado modos singulares de viver, povoando o cotidiano das ruas e esquinas das periferias da Grande Belém, e quiçá de bairros centrais da cidade, mas que de certa maneira parecem alheios e quiçá invisibilizados no pensamento sociocultural dos belenenses e de outros sujeitos.

Falo dos “caranguejeiros”, “tapioqueiros”, “migauzeiros”, “completeiros”, “chopeiros”, “pupunheiros”, “verdureiros”, dentre outros, e suas respectivas comidas, as quais, historicamente resistem ao tempo e à modernidade, sendo comercializadas e consumidas cotidianamente por entre as ruas da capital paraense, onde desempenham papel fundamental na dinâmica da cidade, contribuindo para sua sustentabilidade econômica e, ao mesmo tempo, potencializando a permanência de sua identidade coletiva. São, portanto, desses elementos, coisas, pessoas e práticas que “falam” as imagens deste ensaio.

Outrossim, se faz necessário compreender que as práticas de consumo narradas nas fotografias são regidas por tratativas, nas quais os sujeitos que as protagonizam são respectivamente fregueses e não clientes. E é exatamente nessa condição de ser freguês que reside a capacidade do fenômeno de se configurar em relações de consumo que não se findam em negociações meramente mercantis. Ao contrário, são práticas eminentemente culturais que desempenham papel decisivo na construção e estreitamento de laços sociais, assim como no enfrentamento de mudanças, ou na criação de permanências, por entre os interstícios da modernidade e dos contextos urbanos.

Sendo assim, considerando as prerrogativas de Douglas; Isherword (2006), Rocha (2006), Appaduari (2008) e Contreras; Gracia (2011), as tratativas em torno dessas experiências de consumo mencionadas não podem ser compreendidas apenas como um fenômeno inerente ao mercado global; são, antes disso, práticas eminentemente culturais que dizem respeito à satisfação do desejo de comer algumas coisas que foram elaboradas no bojo das construções das identidades coletivas daqueles que as consomem pelas ruas e esquinas de Belém.

Nessa perspectiva, argumenta-se aqui que essas experiências ainda permanecem em meio aos processos globais, que tendem a homogeneizar todos os campos da vida, inclusive aqueles referentes à alimentação, porque a comida é dotada de representações simbólicas e emocionais ativadas pela satisfação de poder degustar um alimento que outrora povoou aqueles hábitos alimentares, de acordo com gostos e preferências específicas (CONTRERAS; GRACIA, 2011).

Assim, acredita-se que o consumo das comidas vendidas nos espaços urbanos, conforme retratam as fotografias deste ensaio, emerge como linguagem e imagem de identidade do povo belenense. Tratando-se de um fenômeno “[…] eminentemente social, relacional e ativo, em vez de privado, atônico ou passivo […]” (APPADURAI, 2008, p. 48). Um fenômeno, a priori, da ordem cultural e, a posteriori, de cunho mercadológico (DOUGLAS; ISHERWOOD, 2006), que desempenha papel central na construção e permanência das identidades coletivas, “na regulação das relações sociais, assim como na definição […] de mapas culturais […] e, como tal, é investido […] de valores socialmente utilizados para expressar categorias e princípios, cultivar ideias, fixar e sustentar estilos de vida, enfrentar mudanças ou criar permanências” (ROCHA, 2006, p. 8).

Referências 

ACHUTTI, Luiz Eduardo Robinson. Fotoetnografia da Biblioteca Jardim. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2004.

APPADURAI, Arjun. “Introdução: mercadorias e a política de valor”. In: APPADURAI, Arjun (Org). A vida social das coisas: as mercadorias sob uma perspectiva cultural. 1ª Ed. Niterói: Universidade Federal Fluminense, 2008.

CONTRERAS, Jesús; GRACIA, Mabel. Alimentação, sociedade e cultura. Rio de janeiro: Fiocruz, 2011.

DOUGLAS, Mary; ISHERWOOD, Baron. O mundo dos bens: para uma antropologia do consumo. 1ª Ed. Rio de Janeiro: UFRJ, 2006.

ROCHA, Everardo. “Os bens como cultura: Mary Douglas e a antropologia do consumo”. In: DOUGLAS, Mary; ISHERWOOD, Baron (Orgs). O mundo dos bens: para uma antropologia do consumo. 1ª Ed. Rio de Janeiro: UFRJ, 2006. 

Sobre o autor

Miguel Picanço é doutor em Ciências Sociais (PPGCS/UNISINOS/ PDSE/ODELA-Universidad de Barcelona) e pós-doutor em Antropologia da Alimentação: Alimentação, Patrimônio e Turismo (ODELA-Universidad de Barcelona).

*O conteúdo é de responsabilidade do colunista. 

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