Uma breve história sobre a mestra da floresta

A surucucu-pico-de-jaca pode ser encontrada em toda a Amazônia e em alguns remanescentes da Mata Atlântica, onde ainda não foi extinta.

*Por Conexões Amazônicas – contato@conexoesamazonicas.org

Quando a maioria das pessoas pensa em cobras, imagina animais perigosos, espreitando à procura de sua próxima vítima. Essa visão romântica e preconceituosa provavelmente resulta da cultura que compulsoriamente herdamos de nossos colonizadores europeus. Na realidade, menos de 30% das mais de 235 espécies de cobras conhecidas no Brasil são peçonhentas. Destas, mais da metade são cobras-corais, que raramente causam acidentes com humanos devido ao seu comportamento recluso. Portanto, mais de 200 espécies de cobras brasileiras são inofensivas para humanos e animais domésticos, e exibem uma incrível diversidade de tamanhos, cores e hábitos de vida.

Acidentes ofídicos não devem ser subestimados como problema de saúde pública. Eles são classificados pela Organização Mundial da Saúde como uma doença tropical negligenciada, o que se deve mais à dificuldade de acesso ao tratamento adequado com soro antiofídico do que ao perigo inerente das cobras. Pessoas em áreas remotas geralmente enfrentam maiores riscos de acidentes e desafios para chegar a um hospital, especialmente na Amazônia, onde precisam percorrer distâncias imensas pelos rios.

No entanto, há muito mais a ser explorado sobre cobras além do risco de acidentes. Como parte da impressionante diversidade de vida que resultou de bilhões de anos de evolução biológica, a história das cobras revela mistérios sobre a própria história do planeta. A Amazônia, por exemplo, abriga uma das maiores cobras peçonhentas do mundo, a única víbora das Américas que reproduz depositando ovos e uma das poucas espécies que exibem cuidado parental – as fêmeas cuidam de seus ovos e podem usar contrações musculares para manter a temperatura estável. Estou falando da surucucu-pico-de-jaca (Lachesis muta, Viperidae), conhecida no Ceará como malha-de-fogo e nos países de língua inglesa como Bushmaster – a mestra da floresta!

A surucucu-pico-de-jaca pode ser encontrada em toda a Amazônia e em alguns remanescentes da Mata Atlântica, onde ainda não foi extinta. No entanto, não ocorre entre esses dois biomas, na região chamada diagonal seca da América do Sul, formada por biomas de clima relativamente seco e vegetação aberta, como o Cerrado e a Caatinga. Mudanças geológicas e climáticas ao longo de milhões de anos separaram as duas grandes florestas tropicais da América do Sul, isolando populações de surucucus-pico-de-jaca.

Assim, essa cobra incrível fornece evidências de que a Amazônia e a Mata Atlântica já foram uma única floresta. Hoje, sabemos que esses biomas estão separados há tempo suficiente para que as populações isoladas de surucucus tenham divergido evolutivamente a ponto de se tornarem espécies distintas. Estudar surucucus-pico-de-jaca na natureza é um desafio. São animais noturnos, com camuflagem eficiente e ocorrem em baixas densidades populacionais, o que significa que geralmente existem poucos indivíduos por unidade de área. Em meus 18 anos de experiência na Amazônia, encontrei apenas cinco indivíduos, sendo um deles particularmente interessante. Em uma noite chuvosa na região do interflúvio Madeira-Purus, no sudoeste da Amazônia, um colega australiano gritou: “A mexican hat!!” (“um chapéu mexicano”, em inglês). Demorei alguns segundos para entender que ele havia avistado uma enorme surucucu-pico-de-jaca, com a cabeça repousada sobre o corpo enrolado, lembrando um chapéu mexicano.

Capturar aquela cobra enorme para coletar os dados necessários para os nossos estudos seria um desafio enorme. Meu colega não tinha experiência capturando cobras, e eu jamais me atreveria a tentar sozinho. Estávamos a mais de 5 km da estrada mais próxima, em péssimas condições, e levaria um dia inteiro para chegar a um hospital. Então não podíamos correr riscos. Decidimos que meu colega ficaria de olho na cobra enquanto eu buscava o resto da equipe, a 3 km de distância.

A trilha era bem marcada, então parecia fácil. Mas especialmente naquela noite alguns obstáculos apareceram pelo meu caminho. Uma grande árvore caída bloqueou a trilha, e na tentativa de desviá-la, fiquei perdido na floresta por uns 30 minutos. Também havia uma grande poça d’água que decidi pular, sem me atentar para um galho de árvore que despontava do outro lado, na altura da minha cabeça. Bati tão forte com a cabeça que vi tudo girando, e caí desmaiado na poça. Recuperei a consciência rapidamente, e percebi que havia sangue escorrendo pela minha orelha. Mais à frente tentei me equilibrar atravessando uma pinguela sobre um igarapé (ponte feita com tronco fino de árvore), e caí da forma mais dolorosa que você pode imaginar em uma situação como essa.

Finalmente, alcancei meus companheiros, que ficaram eufóricos com a notícia da surucucu-pico-de-jaca. Voltamos todos correndo e encontramos meu colega australiano ainda observando a cobra. Planejamos cuidadosamente a captura, coletamos nossos dados e voltamos ao acampamento, felizes, cansados e molhados. Que noite!

Parte da equipe de pesquisadores e assistentes de campo na BR-319, estrada que corta o interflúvio Madeira-Purus, sudoeste da Amazônia. Fotos: Rafael de Fraga/Acervo pessoal

*Autor:

Rafael de Fraga é biólogo, mestre e doutor em ecologia. Ele tem estudado cobras na Amazônia há 16 anos, investigando padrões de diversidade associados à variação nas características de florestas e savanas. Também participou como apresentador e pesquisador da série de TV Em Busca das Cobras.

Rafael de Fraga – r.defraga@gmail.com

Sobre o Conexões Amazônicas

O coordenador da ONG Rede Conexões Amazônicas, Ayan Fleischmann, é pesquisador titular do Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá, sendo mestre e doutor em recursos hídricos. Em sua trajetória tem pesquisado as águas e várzeas amazônicas em suas múltiplas dimensões. É representante da ONG na coluna no Portal Amazônia, onde recebe pesquisadores convidados que contam os bastidores de suas experiências de pesquisa na Amazônia.

*O conteúdo é de responsabilidade do colunista

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