A família Bignonieae, formada em grande parte por cipós e um componente importante das florestas tropicais, conta agora com um privilégio raro na biodiversidade brasileira: um levantamento completo e atualizado de seus 21 gêneros e 393 espécies, contendo dados sobre morfologia, taxonomia, distribuição geográfica e genética, além de informações sobre a história evolutiva e biogeográfica do grupo.
“Temos cerca de 250 famílias de plantas no Brasil e para bem poucas delas chegou-se a esse grau de detalhamento, o qual é fundamental para o entendimento dos processos que levaram à formação da nossa flora como um todo, bem como para o estabelecimento de áreas prioritárias para a conservação, planos de manejo e uso sustentável da biodiversidade”, disse Lohmann.
Ao longo dos últimos 24 anos, a pesquisadora vem aprimorando a classificação das bignoniáceas, família cujas flores têm um característico formato de trompete e que tem na tribo Bignonieae seu maior grupo. A tribo, por sua vez, inclui a linhagem mais diversa de cipós – também conhecidos por lianas – das florestas tropicais.
“Trata-se de um grupo muito importante. O que diferencia as florestas do velho mundo das florestas da região neotropical é justamente a presença das lianas. Como as espécies da tribo Bignonieae representam a linhagem mais diversa e abundante de cipós da região neotropical, o entendimento de sua história evolutiva nos traz importantes informações sobre a origem e a diversificação das florestas neotropicais como um todo. Além disso, as espécies da tribo são muito utilizadas por comunidades indígenas por conta de suas propriedades medicinais, apresentando bom potencial farmacológico”, afirmou Lohmann.
O primeiro passo, seja na direção de conhecer melhor o passado de certos ecossistemas ou de buscar novos compostos químicos para a produção de fármacos, era saber exatamente quantas espécies de cipós desse clado existem, onde cada uma se encontra, como evoluíram e quais são seus parentes mais próximos – levantamento que configurou o objetivo central do estudo.
Com a nova organização, foram descritas cerca de 10 novas espécies, propostas 190 novas combinações nomenclaturais e quase 100 novos lectótipos (espécimes sobre os quais se baseia a redescrição de uma espécie) e resolvidos inúmeros problemas taxonômicos. Com esse grau de conhecimento, a tribo Bignonieae passou a servir como um dos modelos utilizados no Projeto Temático “Estruturação e evolução da biota amazônica e seu ambiente: uma abordagem integrativa”, também realizado sob a coordenação de Lohmann.
Colaboração
O temático – uma colaboração dos programas BIOTA – Fapesp (Programa Fapesp de Pesquisas em Caracterização, Conservação, Restauração e Uso Sustentável da Biodiversidade) e Dimensions of Biodiversity, da National Science Foundation, dos Estados Unidos – investiga a origem da biodiversidade da Amazônia, onde as lianas chegaram há cerca de 40 milhões de anos, 10 milhões de anos após surgirem na região leste do Brasil, onde hoje está a Mata Atlântica.
Segundo Lohmann, linhagens do grupo seguiram migrando e diversificando-se e, em torno de 30 milhões de anos atrás, chegaram a áreas secas do Cerrado. Alguns milhões de anos depois, ocorreram a evolução do hábito arbustivo, a perda de gavinhas – uma modificação dos folíolos de plantas trepadeiras que lhes dá apoio para a escalada – e a evolução de sementes com contornos arredondados, que lhes permite viajar por grandes áreas abertas como frisbees. Com o passar do tempo, espécies de Bignonieae continuaram a expandir sua extensão pelas Américas, até atingir o México e o sul dos Estados Unidos.
Outro ganho proporcionado pela pesquisa foi a possibilidade de entender, em cada caso, o que veio primeiro: a ocupação de novos ambientes ou a transformação de características morfológicas. “Com a filogenia [história genealógica de uma espécie ou de um grupo biológico], conseguimos determinar quando certa característica mudou. Nos casos em que características evoluíram antes da ocupação de uma nova área, temos o que chamamos de surgimento de uma inovação-chave, ou seja, a evolução de uma característica que viabilizou a ocupação de um novo ambiente e a diversificação do grupo. Quando a alteração ocorreu depois da ocupação de um novo ambiente, temos adaptações propriamente ditas”, disse Lohmann.
Das coletas ao laboratório
Ao longo do projeto, Lohmann e seus orientandos rodaram o Brasil fazendo coletas em campo e visitando herbários. Acre, Amazonas, Bahia, Ceará, Espírito Santo, Goiás, Mato Grosso, Minas Gerais, Pará, Paraíba, Piauí e Rio de Janeiro, além do próprio Estado de São Paulo, foram alguns dos destinos da equipe.
“Escolhemos algumas localidades nas quais as lianas haviam sido pouco coletadas. Em outras, já sabíamos da ocorrência de cipós, mas a coleta de mais exemplares permitiu um aumento no número de registros e acesso a material fresco para extração de DNA, trabalhos com anatomia e fitoquímica”, contou Lohmann.
Um legado da visita a esses herbários foi a identificação de muitos materiais que não estavam classificados anteriormente. Outra boa herança foi a interação entre alunos de graduação e pós-graduação locais com aqueles que estavam trabalhando com Lohmann. “Ao longo deste projeto, jovens pesquisadores de diferentes estados me procuraram querendo estudar em mais detalhes a flora de suas regiões. Agora, tenho orientandos e parcerias com alunos e professores de diversos estados brasileiros. O apoio é mutuo com os alunos de São Paulo, que sempre foram muito bem recebidos em todas as instituições visitadas”, disse.
Também houve visitas a países como Alemanha, Áustria, Bélgica, Espanha, Estados Unidos, França, Inglaterra, Suécia e Rússia, onde se encontram coleções clássicas e grande quantidade de material-tipo necessário às revisões taxonômicas.
A análise de todo o material se deu em um momento de transição. No início do projeto, em 2012, fazia-se sequenciamento genético pelo método Sanger, com a utilização de apenas alguns marcadores moleculares. A proposta original era, portanto, sequenciar três marcadores para múltiplos indivíduos de todas as espécies da tribo Bignonieae. “Mas no meio do projeto”, contou Lohmann, “surgiu a chance de usarmos Next Generation Sequencing e, com isso, sequenciar genomas inteiros, o que nos permitiu reconstruir o parentesco entre gêneros e espécies com maior grau de certeza.”
Para dar conta da abrangência da investigação, houve a participação de um grande número de bolsistas, da iniciação científica ao pós-doutorado: Alexandre Rizzo Zuntini, Alison Nazareno, Annelise Frazão Nunes, Beatriz Machado Gomes, Eric Yasuo Kataoka, Fabiana Firetti Leggieri, Jéssica Nayara Carvalho Francisco, Luiz Henrique Fonseca, Maila Beyer, Maria Claudia Medeiros, Maria Fernanda Calió, Miriam Kaehler (doutorado e pós-doutorado) e Verônica Thode.
“Como usamos a mesma metodologia e conduzimos as investigações de forma padronizada, estamos agora consolidando uma grande base de dados com fotos, informações sobre morfologia, distribuição geográfica e genética das espécies. Também estamos estudando uma boa forma de disponibilizar os dados e as imagens em uma página na internet”, disse Lohmann.
Outro desdobramento previsto é entender como o grupo deve reagir a mudanças climáticas. Nesse sentido, a pesquisadora está orientando o doutorado de Juan Pablo Narváez Gómez, da Colômbia. De acordo com Lohmann, “o objetivo é encontrar as áreas com maior diversidade e endemismo de espécies da tribo Bignonieae, modelar a distribuição das espécies utilizando cenários atuais e futuros e, com base nisso, propor estratégias de conservação”.