Dinora Moraleda, de 33 anos, amamenta sua filha de 4 meses, sentada no chão de uma sala de 10 metros quadrados junto a oito familiares. Ela tosse seco, sintoma da pneumonia que pegou no prédio precário e insalubre onde mora, localizado na Cidade de Deus, um bairro pobre na zona norte de Manaus, capital do Amazonas. Um ano antes, ela amamentava seu filho Jordi no mesmo prédio, mas ele morreu de pneumonia aos 18 meses porque ela não tinha dinheiro para levá-lo ao hospital.
Dinora faz parte do povo Warao, a segunda maior comunidade indígena da Venezuela, com 30 mil integrantes, que antes tinha um modo de vida mais tradicional numa das regiões mais isoladas ao norte do país, no litoral da Amazônia.
O nome Warao significa ‘povo do barco’. Eles consideram a Terra, chamada Hobah em sua língua, como um disco flutuando sobre um grande corpo d’água, e creem que tudo na natureza tem um espírito. Longe das florestas preservadas onde cresceram, agora a família sobrevive com apenas uma refeição por dia. Geralmente, uma porção de peixe e arroz. Dinora deixou o país em 2016, fugindo da crise econômica e humanitária; 26 familiares depois se juntaram a ela no Brasil.
O estado do Amazonas está repleto de comunidades Warao. Agora, cerca de 800 deles vivem em Manaus, a maioria na favela Cidade de Deus. Dinora não tinha ideia do que a vida lhe reservava no Brasil. Obrigada a mendigar, inclusive quando ela mesma estava com pneumonia, Dinora pedia dinheiro nos semáforos com o filho Jordi nos braços.
“Eu mendigava até quando nós dois estávamos doentes, porque para ir ao hospital preciso pegar três ônibus, e eu não tinha dinheiro para chegar lá”.
Assim como Dinora, 12 famílias de origem Warao vivem em quartos de 5 metros quadrados em barracos improvisados na Cidade de Deus. Eles vieram do Delta do Orinoco, um labirinto de rios que se estende por mais de 25 mil quilômetros quadrados e compreende mais de 300 canais.
Às margens de um desses canais, a família de Dinora vivia numa palafita na comunidade de Yorinanoko. Sua mãe, Amelia Cardona, lembra aquele tempo com nostalgia. “Tínhamos duas canoas pequenas, meu marido pescava, nós plantávamos mandioca, banana, cana-de-açúcar, e vivíamos tranquilos”, conta.
Como muitos refugiados Warao no Brasil, a família de Dinora tinha migrado para Caracas em 2008, quando o pai sofreu um derrame. “Ele não conseguia mais pescar nem trabalhar, e era cada vez mais difícil conseguir o remédio de que ele precisava para viver”, explica Amelia.
Seu marido tem dificuldades para falar, mas retira a caixa de fenobarbital de 120 mg do bolso, o remédio que impede que ele tenha tremores incontroláveis.
Maior êxodo na América Latina em cem anos
A história dos Warao é repleta de experiências de migração forçada. Os grupos indígenas foram deslocados pela primeira vez nos anos 1960, para abrir caminho a projetos hidrológicos que desviaram os rios dos quais se abasteciam. Epidemias de cólera, malária e sarampo surgiram na mesma época, forçando alguns Warao a deixar suas comunidades.
Mas foi a atual crise econômica, que fez a Venezuela entrar em colapso com uma inflação que chegou a 800% ao ano em 2016, a responsável pela mais recente onda de emigração dos Warao em busca de oportunidades econômicas, saúde, combustível e alimentação básica.
Daisy Pérez, 42 anos, que era professora na Venezuela, é uma das que deixou o país. Em 2017, ela viajou centenas de quilômetros de barco, ônibus e a pé para chegar a Pacaraima, em Roraima, e depois a Manaus alguns meses depois.
Ela ficou sem salário e teve de sobreviver vendendo artesanato nas ruas brasileiras com seus quatro filhos e marido. Duas de suas irmãs e seus pais também vieram juntar-se a ela. “Qualquer lugar parecia melhor que a Venezuela naquela época. Era sair ou ficar e ver nossos filhos morrerem de fome”, conta.
Desde 2014, a crise humanitária e social da Venezuela, que registrou níveis recordes de inflação, compeliu milhares de cidadãos a fugirem para países vizinhos. O Brasil recebeu mais de 400 mil venezuelanos. Mais de 3 milhões de pessoas fugiram da Venezuela, no maior êxodo na América Latina em um século, representando cerca de 10% da população daquele país. Cerca de 6 mil indígenas venezuelanos, incluindo os Warao, chegaram ao Brasil desde 2014.
Quando a migração venezuelana começou, o governo brasileiro construiu abrigos para os refugiados. Também adotou algumas medidas legislativas para promover a integração das comunidades indígenas, estendendo a eles os mesmos direitos garantidos aos indígenas brasileiros.
Isso significa que as proteções constitucionais reservadas aos povos originários brasileiros também passaram a ser aplicadas aos indígenas vindos de outros países. Os Warao são, portanto, refugiados legais no país.
Mas a maioria dos Warao não conseguiu emprego permanente no Brasil; os homens costumam trabalhar descarregando barcos de pesca e recebem alguns peixes em troca do trabalho. A maioria deles não tem educação formal, fala apenas sua língua materna e sabe apenas algumas palavras em português. Para pagar o aluguel, são obrigados a mendigar.
Tuberculose e parasitas
A ex-professora Daisy não se conforma de ver sua comunidade vivendo em condições tão miseráveis, e, como uma das poucas que concluiu o ensino superior, ela se tornou uma liderança da comunidade. Ela bate em todas as portas para pedir ajuda.
“No começo, recebíamos cestas de alimentos; havia organizações como a Acnur [a agência para refugiados da ONU] que nos ajudavam, mas nossa situação deixou de ser considerada uma emergência, e agora não temos nada.”
Com médicos locais, ela conseguiu que todos os Warao na Cidade de Deus conseguissem fazer um checkup de saúde anual, e também acompanha os pacientes. Cerca de 20 pessoas já contraíram tuberculose, enquanto muitas crianças sofrem com parasitas.
Magaly Pérez, 36 anos, irmã de Daisy, explica: “Para enganar o estômago das crianças, damos água com açúcar para elas quando não temos mais nada. Sabemos que não é bom, mas é melhor que nada. Não tenho mais dinheiro para comprar leite para elas”, diz, desesperada.
A mãe conta que sua filha de 13 anos passa o dia nas ruas sentindo cheiro de carne assada. “Ela me pergunta porque não podemos comer; não desejo isso para mãe nenhuma, não conseguir alimentar os filhos direito.”
Os Warao têm acesso gratuito ao hospital público. Mas lá são discriminados por médicos e enfermeiros. Muitos evitam buscar tratamento por esse motivo. Um dos médicos locais explica:
“A situação é catastrófica. Alguns deles chegam ao hospital público em que eu trabalho, e dizem que estão há uma semana sem comer para poder alimentar seus filhos primeiro. Tenho colegas que se livram deles porque não entendem sua língua, precisamos de tradutores e de um verdadeiro sistema de atendimento”, diz o médico.
Isolados, os Warao têm pouca esperança no futuro. Daisy Pérez explica: “Nossa única esperança é conseguir terra para conseguirmos viver como antes da crise e de nossas sucessivas migrações. As mulheres poderão fazer artesanato novamente, e os homens poderão trabalhar na plantação.”
Sem árvores da vida
Sair de suas terras ancestrais foi traumático para os Warao, que perderam uma parte fundamental de sua cultura e modo de vida tradicional.
Paulito García mostra em seu celular uma foto de sua antiga casa no vilarejo de Mariusa, no Delta do Orinoco: uma casa construída de buriti (Mauritia flexuosa), a árvore da vida para os Warao. “Usávamos a palmeira moriche dos pés à cabeça: os frutos como alimento, as folhas para construção, a fibra para o artesanato”, lembra.
Paulito e seus seis filhos agora vivem num prédio no centro de Manaus que chamam de ‘Hotel 583’, num bairro considerado perigoso, junto a outras 20 famílias Warao. Na calçada, uma menina de 15 anos fuma crack enquanto sirenes de polícia soam na vizinhança. Paulito, que era um cacique, teme pelo futuro de seus filhos, que não vão à escola no Brasil.
“Sem terra, sem educação, o que eles vão fazer quando crescerem? Temo que suas vidas se reduzam a essas quatro paredes”, confessa.
Daisy Pérez, representante dos Warao na Cidade de Deus, conseguiu colocar as primeiras crianças da comunidade na escola primária, uma fonte de esperança para ela: “Se elas aprenderem a língua, se aprenderem um ofício, terão a mesma capacidade que os outros para se integrarem e conseguirem se sustentar.”
No segundo andar do Hotel 583, os adolescentes estavam à toa. Não tinham encontrado um barco para descarregar naquela manhã e ficaram sem os poucos peixes que conseguiriam pelo seu trabalho. Alguns estavam com os olhos vermelhos pelas drogas, outros pelo desespero.
*O conteúdo foi originalmente publicado pela Mongabay, escrito por Paloma de Dinechin e com fotos de Nicola Zanin, traduzido por Eloise de Vylder