Como comunidade Yanomami saiu de situação de violência para rotina tranquila e até futebol com crianças

Comunidade na região de Palimiú, em Roraima, foi alvo de ataque a tiros em 2021, mas hoje vive um cenário de reforço na segurança.

Rio Uraricoera em maio de 2021. Foto: Alexandro Pereira/Rede Amazônica RR

Atacada a tiros por garimpeiros armados há mais de três anos na Terra Indígena Yanomami, a comunidade Yakeplaopi, em Palimiú, com uma população de mais de 800 pessoas, vive atualmente um cenário diferente da tensão daquela época: hoje em dia os indígenas retomaram as atividades de pesca e caça, as mulheres voltaram a usar a água do rio para cozinhar e o gramado palco dos ataques voltou a ser um campo de futebol para jovens e crianças. Esta nova rotina é possível em razão do reforço na segurança na região.

Yakeplaopi fica as margens do rio Uraricoera, em Alto Alegre, Norte de Roraima e era um dos trechos usados por garimpeiros ilegais para acessar o território. A tensão entre a comunidade e garimpeiros se acirrou no dia 10 de maio de 2021, quando ao menos sete barcos com invasores armados abriram fogo contra os indígenas. Houve feridos, relatos de mortes, correria de mulheres e crianças em fuga dos tiros, mais de 7 dias seguidos de tensão com sucessivos atentados e até troca de tiros dos invasores com a Polícia Federal.

A Terra Yanomami é o maior território indígena do Brasil com quase 10 milhões de hectares entre os estados de Roraima e Amazonas. Cerca de 30 mil indígenas vivem na região.

Leia também: Quem são os Yanomami? Conheça um dos maiores povos indígenas da Amazônia Internacional

Em novembro deste ano, o Grupo Rede Amazônica visitou a comunidade para saber o que mudou com o reforço na segurança após o episódio. A região de Palimiú engloba ao menos 11 comunidades, onde vivem cerca de 800 indígenas.

A motivação para a violência dos garimpeiros contra os indígenas à época foi uma corda instalada como barreira sanitária contra a Covid-19. Quando os invasores passavam pelo local, os Yanomami confiscavam os materiais que seriam transportados para áreas de garimpo ilegal. Em resposta, os garimpeiros destruíram a barreira e promoveram o ataque a tiros.

Fernando Palimitheli é cacique de Yakeplaopi. Em entrevista, a liderança relembrou os momentos de tensão vividos por jovens, crianças, adultos e idosos da comunidade.

A instalação de um cabo de aço entre uma margem e outra do rio para impedir a passagem dos invasores e a permanência fixa de forças de segurança federal na comunidade foram os principais fatores para fazer com que os indígenas voltassem a ter uma rotina normal. Desde então, não há registros de conflitos na região.

A estrutura de aço foi instalada em fevereiro de 2023, há pelo menos um ano e 10 meses, o que faz com que os Yanomami se sintam mais seguros dentro da própria casa. À época dos ataques, eles ficaram escondidos na mata por quatro meses, o que prejudicou a caça e o plantio de roça, necessários para a subsistência da comunidade.

Outro reflexo foi a geografia da comunidade: algumas moradias deixaram de ser ocupadas e foram construídas malocas mais distantes do campo onde ocorreu o tiroteio.

Nelia e Fernando com o neto no colo. Foto: Samantha Rufino/Rede Amazônica RR

Volta à rotina tradicional

Com a segurança reforçada, a rotina voltou a ser como os dias vividos antes dos ataques: roças com bananas, macaxeiras, cacau e outros plantios foram retomados, assim como as atividades de pesca e caça. Além disso, a comunidade voltou a usar a água do rio para atividades diárias, como tomar banho e cozinhar.

Devido ao avanço do garimpo ilegal e a passagem constante de barcos dos invasores, os indígenas deixaram de usar a água do rio por vários meses. A comunidade se limitou a usar água de um pequeno riacho, distante cerca de 30 minutos do centro da comunidade.

Segundo um balanço da Casa de Governo – órgão responsável por coordenar as ações na TIY, divulgado em novembro deste ano, o território registrou uma redução de 96,3% na área de novos garimpos, que passou de 1.002 hectares em 2022 para 37 hectares em 2024. Além disso, nos meses de setembro, outubro e novembro de 2024, não houve registros de abertura de novas áreas de garimpo.

Na percepção dos indígenas ouvidos pela reportagem, até o rio está mais limpo em comparação há anos atrás – uma imagem feita na comunidade mostra essa mudança (veja acima). Além da água do rio, eles também tem utilizado poços artesianos instalados na comunidade pelo governo federal.

A presença fixa de agentes federais também fez com que os indígenas tivessem confiança para retomar os jogos de futebol no campo. O posto de fiscalização, onde ficam os agentes da Força Nacional, Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) e Polícia Federal é no mesmo local onde eles se divertem.

As partidas de futebol acontecem principalmente à tarde e é a diversão de grande parte da comunidade. São horários em que crianças e jovens jogam futebol enquanto mulheres acompanham, torcendo à beira do rio – uma tranquilidade que em nada se parece com os momentos de tensão em 10 de maio de 2021.

Além da base de proteção, a comunidade tem ainda com um polo de saúde indígena e uma escola, ambos em funcionamento. Em relação a doenças deixadas pelos rastros do garimpo, a malária ainda é uma delas. Equipes de saúde se esforçam para fazer o rastreio dos casos.

No primeiro semestre de 2024, 18.310 casos da doença foram confirmados entre os indígenas, segundo o Centro de Operações de Emergências Yanomami (COE-Y). No mesmo período do ano passado, foram 14.450 casos – ou seja, um aumento de 26,7%.

Caminhos além da segurança

Desde 2023, o governo Lula (PT) começou a criar ações para enfrentar a crise causada pelo garimpo ilegal no território, com o envio de profissionais de saúde, cestas básicas e materiais para auxiliar os Yanomami. Além disso, forças de segurança foram enviadas para a região para frear a atuação de garimpeiros no território.

A segurança e saúde tem sido o principal foco nos últimos anos. Em fevereiro de 2024, o governo federal instalou a Casa de Governo em Boa Vista para concentrar as ações de assistência ao território. Desde então, o órgão deflagrou diversas operações para frear a logística do garimpo e identificar os invasores.

Além das pastas de segurança, o trabalho no local envolve diretamente os ministérios dos Povos Indígenas, da Saúde, do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome, da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos.

Cabo de aço foi instalado na região para impedir a passagem dos invasores. Foto: Samantha Rufino/Rede Amazônica RR

Com a repressão a atividade ilegal nos últimos dois anos, a Casa de Governo deve focar em outras áreas para reestruturar o território, como explica o diretor, Nilton Tubino.

“A expectativa que no ano que vem com essa essa tranquilidade que a gente quer dar dentro do território é essas outras políticas públicas da parte da educação, principalmente, além da saúde, a questão da educação, a produção de alimento, a segurança alimentar que é fundamental”, adiantou.

‘Não tenho mais medo em Palimiú’

A nova realidade em Yakeplaopi, no entanto, só ocorreu após uma série de pressão e luta das organizações indígenas. Dário Kopenawa, filho do líder indígena Davi Kopenawa e vice-presidente da Hutukara Associação Yanomami – mais representativa do povo, explica que as lideranças fizeram diversas denúncias a órgãos nacionais e internacionais.

“A gente cutucou bastante nas autoridades e cobramos muito isso. A gente não pediu favor! A gente a gente cobrou o dever do Estado brasileiro, obrigação do governo federal, obrigação do mundo”, afirmou.

Como resultado do reforço na segurança, a indígena Adineia Yanomami, de 34 anos, uma das testemunhas dos ataques, afirma que se sente mais segura. Para ela, a garantia da segurança é a permanência das ações de desintrusão do garimpo.

“Tem que continuar a segurança, a Força Nacional, assim fica bom. Agora a água está um pouco mais limpa. Em 2022, estava muito contaminado, os peixes contaminados. Tinha lixo que os garimpeiros jogavam no rio. Hoje está limpo e agora estou banhando [no rio]”, falou.

“Nós não queremos mais garimpeiros, agora nunca mais passou garimpeiros. Não tenho mais medo em Palimiú”

O sentimento é compartilhado por Nelia Palimitheli, de 43 anos, coordenadora de mulheres na região. Esposa do cacique Fernando, ela foi uma das lideranças que lutou por melhorias em Palimiú.

A região de Palimiú está localizada às margens do rio Uraricoera e distante mais de 200 km de Boa Vista, capital de Roraima. Uma das preocupações das lideranças é a região de Ouro Mil, em Waikás, onde há forte atuação e registro de confrontos com membros de facção. A área fica próxima de Palimiú.

Tubino reconhece que ainda há permanência de garimpeiros e explica que o modo de exploração mudou: agora as máquinas trabalham à noite para dificultar a fiscalização. Para ele, a presença de membros de facção também diminuiu, pois as apreensões recentes não são de armamentos pesados, como os usados pelos criminosos.

“Pode ser que lá atrás tinham pessoas faccionadas trabalhando em garimpo, acho que é uma realidade. Lá atrás podia ter um interesse econômico de grupos mais organizados de facção na questão do ouro, mas desde o ano passado com a quantidade de investigação, de força policial, de prisões, esse pessoal procura um lugar mais fácil”, disse.

Campo de futebol em Palimiú, mesmo local onde ocorreu ataque a tiros em 2021. Foto: Samantha Rufino/g1 RR

*Por Samantha Rufino, da Rede Amazônica RR

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