No Brasil, é comum celebrarmos o Dia dos Povos Indígenas em 19 de abril. A data foi instituída no país a partir de uma lei assinada em 1943 pelo então presidente Getúlio Vargas. A intenção daqueles que instituíram o Dia dos Povos Indígenas no Brasil era de comemorar a presença dos povos indígenas como um fator positivo na formação socioeconômica brasileira, assim como na composição do povo brasileiro.
Mas, você sabia que existe outro dia que celebra a ancestralidade indígena? Isso mesmo. Em 9 de agosto de 1994, a Organização das Nações Unidas (ONU) instituiu o Dia Mundial dos Povos Indígenas, entretanto, essa data é pouco lembrada no Brasil. Neste ano de 2024, a ONU determinou que no dia 9 de agosto se celebre o Dia Mundial dos Povos Indígenas Isolados, um momento dedicado a reconhecer a presença dos povos indígenas isolados no mundo.
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De acordo com o professor Lino João de Oliveira Neves do departamento de Antropologia da Universidade Federal do Amazonas (UFAM), a ideia da ONU é promover a conscientização sobre a necessidade de respeito e de proteção dos povos isolados, reafirmando com isso as garantias previstas na Declaração das Nações Unidas sobre Direitos dos Povos Indígenas.
“Só relembrando, povos indígenas são aqueles grupos sociais que por possuírem características socioculturais, como línguas, culturas, organizações próprias, e se distinguem dos outros grupos sociais, e por isso são chamados de povos indígenas. Em geral, aquelas populações que são originárias dos territórios que mais tarde foram colonizados por outros povos”, explicou o professor.
O Censo 2022 do IBGE revelou que quase 1,7 milhão de indígenas vivem no Brasil, correspondendo a 0,83% da população total do país. Esse total é formado por 305 etnias, cada uma com suas particularidades, seja no idioma ou tradições culturais. “Apesar desse número, existem muitos povos indígenas que vivem isolados, sem qualquer tipo de contato com a sociedade, tecnologia e o mundo moderno. O isolamento desses indígenas é voluntário”, destacou.
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Isolamento voluntário
E o que são esses povos em isolamento voluntário, ou, falando de modo simplificado, povos indígenas isolados? São indivíduos que evitam o contato com segmentos da sociedade e mesmo com outros grupos indígenas. São povos que podem ter contatos intermitentes e eventuais, tanto com elementos da sociedade nacional ou com outros povos indígenas, mas que evitam o contato, as relações sociais continuadas e frequentes, e por isso mesmo são chamados de povos isolados.
“Devemos entender que quando se fala isolados nós não estamos falando de uma condição espacial, de um isolamento geográfico, de uma localização em uma área remota. Estamos falando de uma categoria política. Isolamento, nesse caso, é uma categoria política que define alguns povos indígenas que evitam, de uma forma deliberada o isolamento. Daí a ideia de isolamento voluntário. Povos que decidem por si próprio não manter contato, não estreitar contato com outras populações, com segmento da população nacional e com outros grupos indígenas”, explicou Neves.
Para o especialista, a decisão deste isolamento pode ser fundamentada por experiências de contatos anteriores, experiências traumáticas que ocorreram no passado e que, ainda hoje, influenciam no processo de decisão dos indígenas isolados. “Vamos lembrar que a colonização trouxe prejuízos para as populações indígenas. Trouxe violência, ameaças e massacres, que foram perpetrados e diversos povos sofreram consequências trágicas”, revelou.
Com esse histórico de contato trágico, muitas etnias buscaram refúgio das florestas, ou seja, se refugiaram no interior das matas em áreas até então pouco acessíveis pela sociedade. Dessa forma, estes indigenas conseguem driblar todas as ameaças que podem significar o extermínio de seus povos.
Com isso, se deve entender que os povos indígenas isolados são aqueles que, adotando estratégias de defesa, buscam distanciamento do mundo externo. Assim, eles mantêm o seu modo de vida, a sua cultura, a sua integridade social e pessoal. É certo que existem etnias isoladas há mais de 100 anos, mas o que se percebe é que a decisão de evitar o contato com pessoas de fora de seus grupos está presente na memória coletiva desses povos.
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Números
Segundo pesquisas mais recentes, no mundo, existem cerca de 200 povos isolados, ou seja, 200 grupos indígenas que ainda hoje resistem a manter relações com a sociedade exterior. “Se pensarmos a nível de continente sul-americano, ou na América do Sul, existem registros de 185 povos em isolamento. A maior parte deles está na Amazônia”, informou o professor.
O número de grupos indígenas isoladas varia de acordo com a fonte. A Fundação Nacional do Índio, que é a agência do Brasil responsável pelas questões indígenas, informou que a Amazônia registrou a presença de 100 comunidades isoladas. Outras entidades, como por exemplo, a Equipe de Apoio aos Povos Indígenas Livres (EAPIL) admite a presença de 119 registros de grupos isolados.
Já o número oficial registrado pela Fundação Nacional dos Povos Indígenas (FUNAI) é de 114 povos indígenas isolados na região amazônica. Mesmo informando o registro de 114 comunidades isoladas, a Funai reconhece apenas 28 povos. Para os antropólogos, com essa situação de reconhecimento de apenas um reduzido número, presenta a exclusão dos outros 86 povos isolados.
“Nós temos chamado esse fato de ‘política de produção da negação da existência desses povos’. Uma política de invisibilização. Através do não reconhecimento, o Estado brasileiro nega a visibilidade desses índios, nega a possibilidade ddesses 86 grupos de índios isolados existirem. E isso é extremamente grave”, revelou o especialista.
Para o professor Lino João, existe uma política deliberada de negação da presença dos povos isolados. E a implicação que isso pode ter para a possibilidade de continuidade de existência dessas pessoas enquanto grupo sociais é enorme. A negação dos direitos desses povos, que é produzida por essa invisibilidade, permite com que aqueles interesses anti-indígenas avancem sobre os territórios e a vida desses povos indígenas isolados.
“É isso que nós temos observado nestes últimos tempos. A invasão das terras indígenas, a depredação das terras indígenas, sejam por garimpos, extração ilegal de madeira, ocupação das terras pelo agronegócio ou a ocupação mais recente pelo narcotráfico nas regiões de fronteira da Amazônia com os outros países. Essas ações ilícitas põem em risco a existência dos indígenas, em particular os povos isolados”, afirmou o professor.
Proteção
O professor garante que a preservação dos territórios dos indígenas isolados representa, em um primeiro momento, a manutenção das condições ambientais da floresta. Vários tópicos da proteção dos indígenas isolados estão expostos em diversos documentos internacionais, com a indicação de diretrizes para a proteção aos povos isolados.
“Tudo isso que eu acabei de dizer está exposto em vários documentos internacionais, como, por exemplo, as ‘Diretrizes de Proteção aos Povos Indígenas em Isolamento e em Contato Inicial da Região Amazônica, Gran Chaco e Região Leste do Paraguai’, do Escritório do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos. Essas Diretrizes, que datam de 2012, foi uma primeira manifestação da ONU em termos da necessidade de se garantir a possibilidade de existência dos povos isolados”, disse Lino João.
A integridade dos territórios dos povos isolados é de suma importância para o mundo contemporâneo. Afinal, são nessas florestas isoladas que estão preservadas o potencial de biodiversidade e da sociobiodiversidade. “Essas questões por si só já seriam o suficiente para proteger esses povos indígenas. Ainda mais neste momento em que vive o planeta com as mudanças climáticas, que colocam em perigo a própria existência humana na Terra”, destacou o professor.