Entre os remédios medicinais eficazes está o chá feito com pedaços do caule do Cipó de Tracuá.
Uma pesquisa desenvolvida na Universidade Federal do Oeste do Pará (Ufopa) vem investigando desde 2009 a eficácia do uso de plantas amazônicas no tratamento de picadas de serpente. O projeto envolve diversos pesquisadores que, a partir de um levantamento etnobotânico feito nas comunidades de Cucurunã, São Pedro e Alter do Chão, em Santarém, no Oeste do Pará, elencaram as espécies vegetais mais utilizadas pela população para tratar os efeitos de picadas de serpentes peçonhentas.
Em junho de 2020, mais um resultado obtido a partir da pesquisa foi publicado. O artigo divulgado na revista Toxicon avaliou o potencial antiofídico da planta Philodendron megalophyllum, popularmente conhecida como cipó-de-tracuá, no tratamento de picadas de jararaca (Bothrops atrox), espécie de serpente responsável por mais de 95% dos acidentes na área do município de Santarém.
O envenenamento por este tipo de cobra causa reações locais como edema, dor, hemorragia, necrose e mionecrose (um tipo grave de gangrena, com necrose do músculo). Dependendo da gravidade, o acidente pode levar também a reações sistêmicas, principalmente problemas de coagulação sanguínea e hemorragia mais severa. Os moradores das comunidades na região de Santarém costumam tomar o chá feito com pedaços do caule do cipó-de-tracuá macerado logo após as picadas.
Os testes realizados in vitro e in vivo, com camundongos, nos laboratórios da Ufopa, da Universidade Federal do Amazonas (Ufam) e do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) mostraram que ingerir o chá, forma tradicionalmente adotada pela população local, não é eficaz para reduzir a hemorragia produzida pela picada do animal. No entanto, a ingestão do chá ajudou a bloquear a atividade de bactérias que passam da cavidade oral da serpente para o organismo da pessoa ferida e também se mostrou um bom antioxidante, podendo, após estudos adicionais, ser utilizado no tratamento complementar nas ações locais e infecções secundárias ocasionadas frequentemente pelos acidentes com serpentes do gênero Bothrops sp.
No Brasil, a maioria dos acidentes com serpentes peçonhentas notificados ao Ministério da Saúde ocorre na região Norte, sendo o Pará o estado com maior número de casos. Dentre os municípios paraenses, Santarém tem o maior número de notificações, com uma média de 300 acidentes por ano.
O tratamento preconizado pelo Ministério da Saúde é a aplicação de soro antiofídico. Mas esse tipo de acidente ocorre com maior frequência na zona rural e o deslocamento até a área urbana nem sempre é fácil ou rápido. “Muitas vezes os pacientes demoram até conseguir receber o tratamento específico. Isso pode levar ao aumento do número de complicações nos casos”, explica a pesquisadora, Valéria Mourão de Moura. É aí que entram as plantas medicinais, de fácil e rápida obtenção. “As plantas são usadas como coadjuvantes à soroterapia ou como medicamento alternativo aplicado na falta de recursos soroterápicos”, destaca.
O estudo com Philodendron megalophyllum faz parte de uma ampla pesquisa que investiga o potencial antiofídico de plantas amazônicas, e é fruto do trabalho de conclusão de curso da egressa do bacharelado em Biotecnologia da Ufopa, e agora doutoranda, Noranathan Guimarães.
A professora Valéria Mourão, que foi orientadora de Noranathan, é pós-doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Recursos Naturais da Amazônia (PPGRNA) desde 2017 na Ufopa. Em seu mestrado, orientada pela Profa. Dra. Rosa Mourão, pesquisou 12 espécies vegetais das mais citadas pelos comunitários da região. Dessas, cinco mostraram potencial antiofídico bastante eficaz (Bellucia dichotoma, Connarus favosus, Plathymenia reticulata, Aniba fragrans e Philodendron megalophyllum) e inibiram 100% da atividade hemorrágica, mas isso utilizando o protocolo de pré-incubação.
“É uma metodologia muito utilizada no meio científico, mas não foi tão significativo porque ela superestima os resultados. Ela consiste numa mistura prévia de determinada concentração do veneno com o extrato da planta, que fica trinta minutos em banho-maria a 37° e depois se aplica no teste in vitro ou in vivo. Mas isso não é o que ocorre na vida real. Ninguém prepara uma mistura do veneno com o extrato da planta para aplicar na hora do acidente”, explica Valéria.
Durante o doutorado, Valéria estudou a espécie Bellucia dichotoma (muúba ou goiaba-de-anta). Em forma de chá, o extrato da casca da planta foi capaz de reduzir o edema significativamente a partir de 30 minutos após a ingestão. A inibição foi ainda maior quando o chá foi administrado junto com o soro antibotrópico. Este tipo de tratamento, combinado, se mostrou mais eficaz do que o feito somente com o antiveneno padrão.
Já no pós-doutorado, Valéria tem-se dedicado, juntamente com sua equipe, a pesquisar as outras espécies indicadas pelo uso comunitário. Comprovaram, por exemplo, que a ingestão do chá de Aniba fragrans (macacaporanga ou louro-rosa) reduz significativamente a ação hemorrágica causada pela picada da jararaca, além de ter um alto potencial antimicrobiano. O chá preparado com Connarus favosus (verônica) também foi efetivo em reduzir a atividade hemorrágica e mostrou potencial antioxidante e antimicrobiano. Já o chá feito com Plathymenia reticulata (barbatimão), apesar de não reduzir a atividade hemorrágica, mostrou propriedades anti-inflamatórias que resultaram numa significativa redução do edema no local da picada.
Todos esses resultados foram publicados em artigos científicos ao longo dos últimos anos. “Conseguimos mostrar que os extratos das plantas em forma de chás são bastante eficazes no combate aos efeitos locais do envenenamento, principalmente contra a atividade edematogênica”, esclarece Valéria. Após a publicação de cada artigo, a equipe tem retornado às comunidades para ministrar oficinas aos moradores, esclarecendo a população acerca dos resultados obtidos com o estudo de cada espécie, uma forma de devolver o conhecimento que já é deles por tradição.