Estudo revela informações sobre o passado de duas aves e das áreas habitadas por elas há milhares de anos na Amazônia.
Um recente estudo de duas espécies de passarinhos, a choca-do-bambu e o papa-formiga-barrado, que até 1980 foram concebidas como uma única espécie, traz importantes contribuições para a ciência.
A partir de uma abordagem que considerou tanto o sequenciamento do DNA quanto a área potencial de distribuição das unidades evolutivas, os três pesquisadores sugerem como as florestas de bambu, hoje concentradas no sudoeste da Amazônia, provavelmente tinham uma extensão muito maior no passado, sendo substituídas pelas florestas de terra firme durante o final do período Pleistoceno.
Além disso, eles apontam que a separação das duas espécies ocorreu há, provavelmente, cerca de um milhão de anos e, mesmo assim, há sinais de que elas mantêm fluxo gênico, ou seja, continuam a cruzar entre si.
“Na verdade, além do nosso trabalho, vários outros publicados recentemente têm demonstrado que populações intercruzantes e que mantém sua identidade evolutiva não são exceção na Amazônia. Portanto, é preciso ter esses detalhes estudados e considerados ao avaliar o status de conservação das espécies”, explica Leonardo Miranda, primeiro autor do artigo. Ele concedeu à Agência Museu Goeldi uma breve entrevista sobre as implicações que os resultados do estudo têm tanto para a ciência quanto para a formulação de políticas ambientais na Amazônia.
Entre outros destaques, Miranda chama a atenção para a importância de altos investimentos em ciência básica, assim como a impossibilidade de se estabelecer políticas de conservação da biodiversidade sem o conhecimento aprofundado dos ecossistemas.
Como é possível descrever as características gerais similares da choca-do-bambu e do papa-formiga-barrado, assim como os seus habitats? E como (metodologicamente) vocês descobriram as diferenças entre eles?
Leonardo Miranda – As duas espécies são bem parecidas superficialmente. Em ambas, os machos são barrados em preto e branco. Já as fêmeas possuem tom alaranjado, com penas no topo da cabeça de cor uniforme (em vez de barrado).
Em relação à plumagem, a diferença entre as espécies é que as penas no topo da cabeça são mais alongadas nas chocas-do-bambu, entre as quais, nas fêmeas, essas penas começam alaranjadas e terminam pretas enquanto que a fêmea de papa-formiga-barrado é toda alaranjada. A choca-do-bambu também é mais robusta, com um volume de corpo maior; e a cor dos olhos é preta enquanto a do papa-formiga-barrado é vermelha. Mas a diferença mais marcante é a vocalização.
Ambas também ocupam habitats diferentes: a choca-do-bambu, como o próprio nome diz, se especializou em ocupar as florestas de bambu dominantes no sudoeste da Amazônia enquanto que o papa-formiga-barrado ocorre em florestas de terra firme em todo o bioma e ainda na América Central.
Qual a importância de estudar a história filogenética das espécies e a história dos ambientes em que elas se encontram numa região como a Amazônia? Esse conhecimento pode contribuir com a conservação das espécies e as suas áreas de distribuição? Há outros fins possíveis para essas informações?
Leonardo Miranda – A Amazônia é um ambiente muito complexo, com uma história bastante dinâmica. Esses processos históricos – ligados à geologia ou ao clima, por exemplo – são, em grande parte, responsáveis pela complexidade. A melhor maneira de aproveitar os benefícios que a Amazônia proporciona é entender como ela funciona e que processos afetam seu funcionamento. Os organismos presentes na Amazônia são os testemunhos desses processos e fazem parte dessa complexidade.
Estudar a história evolutiva das espécies é uma entre as várias maneiras que temos, cientificamente, de estudar o ecossistema. Dessa forma, ações de manejo e conservação podem ser mais eficientes se soubermos como o bioma e os organismos responderam às mudanças no passado e antecipar ações visando possíveis cenários de mudanças futuras.
Neste trabalho, estamos contribuindo para o preenchimento de algumas lacunas de conhecimento. Individualmente, são questões que parecem pouco importantes, mas no conjunto, quando se tem várias pessoas espalhadas pela Amazônia estudando um determinado grupo, padrões podem começar a surgir e o entendimento do funcionamento do todo vai ganhando corpo. Por isso, é importante investir na ciência brasileira. Principalmente na ciência de base, que pode cascatear informações até a aplicação.
No resumo do artigo consta que, mesmo que diferentes, as espécies estudadas ainda podem cruzar e que esses resultados possuem relevância para os estudos das espécies de modo geral. O que isso significa para a ecologia?
Leonardo Miranda – Definir o que é uma espécie é um dos assuntos na biologia cujo debate ainda está aberto. Existem vários conceitos diferentes que, numa análise mais minuciosa, apontam para diferentes aspectos do processo de evolução. O conceito mais conhecido e aplicado, pelo menos quando se trata de alvos para conservação, é o conceito biológico, que define as unidades como grupos de populações que cruzam e deixam descendentes férteis.
Do ponto de vista da conservação das espécies, pode ser enganoso achar que “espécies” com ampla distribuição e que cruzam entre si, mesmo mantendo a sua identidade evolutiva, não sofram ameaças, principalmente considerando a vasta extensão da Amazônia e a forma desigual de pressão ambiental em diferentes pontos. Por exemplo: as populações que ocorrem no sudeste sofrem muito mais com perda de habitat e, possivelmente, com as mudanças climáticas do que populações no extremo oposto, noroeste.
Na verdade, além do nosso trabalho, vários outros publicados recentemente têm demonstrado que populações intercruzantes e que mantêm a sua identidade evolutiva não são exceção na Amazônia. Portanto, é preciso ter esses detalhes estudados e considerados ao avaliar o status de conservação das espécies.
Do ponto de vista ecológico, a variabilidade, seja ela no nível de genética populacional ou na diversidade filogenética de uma comunidade, são elementos da biodiversidade relacionados à manutenção do funcionamento equilibrado dos ecossistemas. Proteger essas variabilidades é chave para garantir a resiliência do meio ambiente frente às mudanças ambientais atuais e futuras.
Por essas razões, volto a insistir, somente investimentos maciços em ciência básica na Amazônia podem lançar luz sobre a biodiversidade brasileira e, consequentemente, a políticas ambientais de uso e proteção do bioma embasadas com dados científicos.