Por que as pessoas não respeitam o distanciamento social?

No Estado do Amazonas, segundo dados do Mapa Brasileiro da COVID-19 (MBC, 2020), entre os dias 01/02/2020 e 01/05/2020 nunca houve índice de 70%.

Artigo escrito pelo professor Lucas Sousa do DEA/UFAM 


Caros leitores do Portal Amazônia. Apresento a vocês o Prof. Dr. Lucas Vitor de Carvalho Sousa, professor de carreira do Departamento de Economia e Análise da Universidade Federal do amazonas. O professor Lucas é Bacharel em Ciências Econômicas pela Universidade Federal de São João del-Rei – UFSJ (2011). Mestre em Economia pela Universidade Federal de Viçosa – UFV (2014) e Doutor em Economia pela Universidade de Brasília – UnB (2018).

Atualmente, é professor adjunto no Departamento de Economia e Análise da Universidade Federal do Amazonas (Ufam). Atua principalmente nas seguintes áreas de pesquisa: Economia do Saneamento, Economia Ambiental, Economia Ecológica, Economia das Mudanças Climáticas e Métodos Quantitativos em Economia. Aproveito também para compartilhar com vocês um texto produzido por ele sobre a questão do não obedecimento ao isolamento social na cidade de Manaus. Confira:

Manaus aérea. (Foto: Chico Batata/Divulgação)

É sabido e fortemente divulgado na mídia, que no atual cenário de pandemia, uma das principais recomendações de prevenção ao COVID-19 é o distanciamento social, pois ainda não há vacina e nem medicamentos minimamente eficazes contra o vírus.

O distanciamento social é uma situação em que os indivíduos ficam em suas casas, saindo o mínimo possível e tendo contato direto apenas com os indivíduos da mesma residência. Isso diminui o número de interações entre os indivíduos e, por conseguinte, a velocidade de transmissão do vírus, reduzindo assim, a pressão nos serviços hospitalares, que seriam incapazes de atender toda a demanda de infectados num cenário sem distanciamento (OMS, 2020).

De acordo com as autoridades médicas, o grau de distanciamento social ideal é de 70%, sendo 60% uma meta factível para municípios e estados. Em outras palavras, espera-se que entre 30% e 40% da população fique em suas residências, mantendo assim o distanciamento social. No Estado do Amazonas, segundo dados do Mapa Brasileiro da COVID-19 (MBC, 2020), entre os dias 01/02/2020 e 01/05/2020 nunca houve índice de 70%.

Dos quase 90 dias analisados, apenas em um (dia 19/04/202-um domingo) houve distanciamento de 60%. Essa situação leva ao seguinte questionamento: apesar da recomendação de distanciamento social e da ampla divulgação na mídia, inclusive mostrando o cenário caótico vivenciado em muitos hospitais, por que parte significativa da população não está respeitando o distanciamento social? A resposta para essa pergunta não é imediata, mas, pode-se levantar algumas hipóteses, entre elas:

a) Preferência pelo status quo: desde a Constituição de 1988 as pessoas possuem direito universal de ir e vir. Qualquer mudança desse paradigma é de difícil aceitação. Em outras palavras, as pessoas têm aversão as mudanças e preferem agir como sempre agiram. No caso de políticas públicas, a aversão a mudança por parte do tomador de decisão também é comum e pode trazer consequências negativas em situações de emergência em que uma decisão não usual deve ser tomada.

No Brasil, a política econômica antes da pandemia era pautada em ações que visavam o crescimento de longo prazo, criação de empregos, redução de juros e inflação sobre controle; ou seja, esse era o status quo da política econômica no Brasil. No entanto, com a pandemia e o crescente número de infectados e mortes no país, muitos prefeitos e governadores decretaram medidas de distanciamento social.

Esses decretos, porém, não convergem com o discurso e as atitudes pessoais do presidente da república. Para ele existe um trade-off (um dilema) entre crescimento econômico e distanciamento social. E entre essas alternativas, ele optou pela primeira, ou seja, manutenção do status quo.

Esse posicionamento leva a crer que o presidente é totalmente avesso ao risco de comprometer o andamento da economia, mesmo com todas as recomendações ao enfrentamento a pandemia. Essa aversão pode levar governos a se envolverem numa série de estratégias processuais destinadas a minimizar um problema e negar a necessidade de uma ação substantiva para lidar com ele, em vez de adotar medidas positivas para a sua solução (HOWLETT, 2012; 2014). Essas estratégias incluem a tentativa de reduzir o tamanho e a extensão do problema, ou seja, a de tratá-lo de modo parcelado ou atacando a legitimidade e a credibilidade dos defensores de uma atividade mais substantiva (SAWARD, 1992).

b) Fake news: As pessoas tendem a acreditar nas notícias que são compartilhadas pelos seus parentes e amigos, sem ter o hábito de verificar a veracidade dos fatos. Muitas vezes elas acreditam mais nessas notícias do que na própria mídia tradicional, como o caso recente de caixões vazios que induziu a população a crer que havia manipulação no número de mortes por COVID-192.

De acordo com Bayer et al. (2019), tecnicamente fake news (notícias falsas) é denominada como desinformação ou “propaganda” com o intuito de disseminar conteúdo falso, publicado com a intenção de provocar um efeito político sobre uma questão de interesse público.

Ainda de acordo com este estudo, a desinformação pode se originar de agentes governamentais ou não, domésticos ou estrangeiros. Os elementos da desinformação e propaganda (i) são projetadas para serem total ou parcialmente falsa, manipulada ou enganosa, ou utilizam técnicas de persuasão antiéticas; (ii) diz respeito a uma questão de interesse público; (iii) tem a intenção de gerar insegurança, hostilidade ou polarização, ou tenta perturbar processos democráticos; (iv) e é disseminado e/ou amplificado por meio de técnicas automatizadas e agressivas, tais como robôs sociais, inteligência artificial e etc., frequentemente usados para impulsionar a visibilidade da “notícia” ao público.

c) Discurso e opinião dos tomadores de decisão: o discurso dos tomadores de decisão, principalmente aqueles que tem a capacidade de atingir milhares ou milhões de pessoas, pode influenciar o comportamento delas. Em particular, em um cenário de pandemia, as atitudes e opiniões do líder político pode afetar significativamente a saúde individual e os serviços de saúde.

O estudo de Ajzenman, Cavalcanti e Mata (2020) procurou responder como as palavras e ações do líder político afetam o comportamento das pessoas no Brasil. O resultado revela que após o presidente do Brasil minimizar publicamente os riscos associados à pandemia de COVID-19 e desaconselhar o distanciamento, os níveis de distanciamento social nas regiões pró-governo reduziram em relação aquelas regiões em que o apoio ao governo é menor.

Em outras palavras, o discurso do presidente afeta o comportamento das pessoas, principalmente nos municípios em que o presidente recebeu a maior parte dos votos nas eleições de 2018. Resultado semelhante é encontrado no ensaio de Ribeiro e Ferrini (2020) em municípios de São Paulo com mais de 300 mil eleitores.

Os autores estimaram a correlação entre a porcentagem de votos em Bolsonaro no primeiro turno das eleições e a média do grau de distanciamento social após o pronunciamento presidencial do dia 24 de março de 20203. E verificaram que há forte correlação negativa, ou seja, quanto maior o número de votos em Bolsonaro, menor o grau de distanciamento social.

d) Viés do indivíduo não identificado (ou efeito da vítima identificável – identifiable victim effect): sem dúvida a morte é algo que as pessoas têm total aversão. No entanto, apesar das mais de 8 mil mortes registradas no Brasil por COVID-19, muitas pessoas começaram ou continuam desrespeitando o distanciamento social. Isso pode estar ocorrendo por causa do viés do indivíduo não identificado.

Este termo é atribuído ao economista americano Thomas Schelling ao descrever que o dano a um indivíduo em particular provoca sentimentos de ansiedade, culpa, reverência e responsabilidade, no entanto, a maior parte desses sentimentos desaparece quando as pessoas lidam apenas com estatísticas de mortes (SCHELLING, 1968).

O Brasil tem atualmente mais de 210 milhões de habitantes e embora mais de 8 mil pessoas tenham morrido em decorrência da COVID-19, elas são para a grande maioria da população desconhecidas. Embora possa haver certa comoção, o viés do indivíduo não identificado faz com que as pessoas não mudem de comportamento.

e) Paradoxo do isolamento social: quanto mais as pessoas ficam socialmente distantes, menos contágio haverá, e as pessoas tendem a achar que o distanciamento social é desnecessário. Ou de outra forma, mesmo com o distanciamento, há casos de transmissão, pois nem todas as pessoas estão isoladas.

Pessoas que trabalham em serviços essenciais, como saúde, segurança e alimentação continuam trabalhando, o quepode acarretar em transmissão do vírus para essas pessoas. Essa situação faz com que as demais pessoas acreditem que o distanciamento social não funciona. Mas, evidentemente, se todas as pessoas não tivessem isoladas o número de casos confirmados de COVID-19 aumentaria mais rapidamente, levando os serviços de saúde ao colapso.

f) Condições socioeconômicas: antes da pandemia de COVID-19, a situação socioeconômica dos brasileiros já era preocupante. O número de desempregados era de quase 12 milhões e 40,7% dos trabalhadores estavam no setor informal da economia4.

Com o reconhecimento da pandemia por parte da OMS, prefeitos e governadores decretaram o distanciamento social. O principal efeito desse decreto é que a renda da maioria dos trabalhadores informais tornou-se praticamente nula, e no início não houve nenhuma contrapartida de renda por parte do governo.

Mesmo com a aprovação do benefício emergencial de R$ 600,00 por pessoa durante três meses, esse recurso está demorando a chegar nas mãos das pessoas, fazendo com elas abandonem o distanciamento social, em busca de algum sustento.

Todas essas hipóteses influenciam direta ou indiretamente na decisão das pessoas em aderir ou não ao distanciamento social. Mudanças no status quo exigem muita conversa e conscientização, sobretudo quando o tomador de decisão tem forte aversão a mudança.

No caso do presidente do Brasil, além da preferência ao status quo, há indícios de viés de confirmação. Ou seja, trata-se de um tipo de viés cognitivo em que o indivíduo tende a lembrar, interpretar ou pesquisar informações de forma a confirmar suas crenças ou hipóteses iniciais5.

Nesse caso, a resistência à mudança torna-se mais aguda. Como o presidente minimiza a pandemia, caberá aos prefeitos e governadores darem prosseguimento ao enfrentamento do problema.

As fake news são um desafio aos formuladores de políticas públicas, pois podem moldar o comportamento dos indivíduos de acordo com o objetivo desejado, sendo este, muitas vezes prejudicial a sociedade. Em um cenário de pandemia a disseminação de conteúdo falso torna-se ainda mais preocupante, pois pode levar ao descrédito das autoridades sanitárias, repercutindo em maior transmissão do vírus.

Dessa forma, as fake news devem ser combatidas, com punição exemplar aos criadores e propagadores. O viés do indivíduo não identificado e o paradoxo do isolamento social podem ser atenuados com conscientização e informação de qualidade. Inclusive a mídia já tem mostrado os rostos das vítimas do COVID-19 e enfatizado a importância do distanciamento social.

Com relação as condições socioeconômicas da população, cabe ao governo federal maior celeridade no processo de concessão e pagamento aos trabalhadores afetados pelo distanciamento social, evitando assim, que os indivíduos saiam de casa em busca de sustento.

Todas essas possíveis soluções podem levar algum tempo para surtir efeito. Como não somente o Estado do Amazonas, mas também o Brasil, enfrentam uma situação de emergência, a saída para a manutenção do distanciamento social será moldar os incentivos.

Um dos princípios básicos da economia é que os indivíduos reagem aos incentivos, e o maior deles é o preço. Dessa forma, o tomador de decisão terá que fiscalizar e impor multas aos que não respeitarem o distanciamento social, como inclusive já ocorre em países europeus.

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