Galerias Subterrâneas de Manaus: a realidade do aterramento de igarapés

Construído entre o final do século XIX e início do século XX, o sistema foi planejado para atender 60 mil habitantes.

O Centro Histórico de Manaus, no Amazonas, foi construído baseado em estilo arquitetônico da ‘Belle Époque‘ (do francês, “bela época”), um período marcado pela forte influência da cultura cosmopolita na Europa com o final da Guerra Franco-Prussiana, em 1871. A região foi tombada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) em 2012, e abrange uma área entre a orla do Rio Negro e o entorno do Teatro Amazonas.

Considerado o local onde Manaus surgiu, o centro histórico foi construído em cima de galerias subterrâneas que se estendem pelas principais avenidas. As chamadas ‘galerias pluviais’ possuem várias entradas e uma das principais é selada por um medalhão com o símbolo do império brasileiro na Praça da Matriz, na Avenida Eduardo Ribeiro. 

O Portal Amazônia entrevistou o arqueólogo João Queiroz Rebouças, especialista em História e Historiografia da Amazônia pela Universidade Federal do Amazonas (UFAM), para entender o propósito e o funcionamento dessa construção. 

Foto: Chico Batata/Cedida

“A construção das galerias ocorreu devido ao aterramento dos igarapés do Centro. Os aterramentos ocorreram no final do séc. XIX e início do séc. XX. Como Manaus passava por um desenvolvimento econômico devido ao comércio da borracha, era necessário transformá-la em uma cidade moderna. Uma cidade que perdesse suas características indígenas e ganhasse fisionomia europeia. Daí vem o termo “belle époque”, comparando Manaus a Paris”,

explica o especialista.

Além da conversa com o arqueólogo, o Portal Amazônia encontrou mais informações sobre a história das galerias na dissertação de mestrado  de Cristiana Maria Peterson Grobe, ‘Manaus e seus Igarapés’, para o Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Amazonas (Ufam) em 2014.

Na dissertação é mencionado o autor Rafael Augustus Sêga, que relata que a cidade de Manaus passou por um processo de “embelezamento” na época, com o objetivo de aparentar ser uma cidade moderna, por conta dos interesses da elite mercantil e da política. 

Cristiana explica que, na segunda metade do século XIX, com a consolidação do capitalismo monopolista, os cenários das cidades estavam se equipando com os padrões de uma sociedade capitalista, implantando intervenções de melhoramento e embelezamento, que ofereçam serviços, que concentrasse unidades produtivas e estimulasse o mercado consumidor, além de organizar e disciplinar a massa trabalhadora, adotando os modos de vida da civilização europeia ocidental.

O modelo de modernidade da época apontava como os igarapés da cidade eram obstáculos que interferiam no crescimento e desenvolvimento urbano, além de proliferar doenças.

Acontece que a estrutura de Manaus no fim do século XIX e início do século XX ia contra a imagem que a concepção de cidade, como centro civilizador, deveria ter. Era considerada como não civilizada, selvagem e rústica aos olhares forasteiros. Tal visão era encontrada em um documento chamado ‘Código de Posturas’, que desde o início da segunda metade do século XIX mostrava a necessidade de aprimorar a imagem da cidade.

A partir de 1870, Manaus começou a viver o crescimento da exploração da borracha, passando a ser um período de grande riqueza econômica que influenciou e modificou de fato a imagem e estrutura física da cidade. Nos anos em que o governador Eduardo Ribeiro estava à frente da administração, muitos dos projetos que transformaram de forma estrutural e social a cidade também foram realizados.

A ideia da reconstrução da imagem da cidade tinha o propósito de aparentar uma falsa “bela vitrine”, sendo essencial a planificação da cidade, garantindo a imagem do progresso e da paisagem moderna, limpa e lustrosa.

Foto: Reprodução/Instituto Moreira Salles

Os principais bairros da cidade na época eram República, São Vicente, Espírito Santo e Remédios, e eram “cortados” por igarapés, o que dificultava a locomoção das pessoas. Um exemplo é igarapé que dividia o bairro Remédios: durante a cheia do rio, os moradores precisavam se locomover por meio de montarias para atravessar. Além  disso, eram construídas pontes de madeira para o deslocamento, o que fazia com que a manutenção fosse constante. Pontes essas que até hoje ainda são usadas como recurso de locomoção no Centro no período de enchente do rio Negro.

Com a necessidade de modificação, iniciaram os trabalhos de intervenção urbanística, e para isso, em 1881, foi necessário realizar o processo de aterros e desaterros por conta da necessidade de nivelamento da cidade para a instalação dos equipamentos e da infraestrutura necessária.

Carta cadastral da cidade e arrabaldes de Manaós. Foto: Reprodução/Instituto Durango Duarte

Além do nivelamento do solo, os igarapés também foram aterrados. O primeiro deles foi o Igarapé da Ribeira, que ficava na região onde a cidade iniciou a sua ocupação, próximo ao Forte de São José.

Com as obras de nivelamento, a cidade ficou chamativa e atraente para todos. O código de conduta favorecia a preservação dos igarapés que ficaram. 

Mas, com o tempo…

… os aterros e desaterros acabaram virando uma problemática gigantesca. Entre umas das disposições colocadas pelo Código de Posturas, o art. 52 apontava a necessidade de uma limpeza dos igarapés que separavam os bairros principais da cidade, sendo eles o igarapé dos Remédios, que separava os bairros Remédios e República; o igarapé do Espírito Santo, separando os bairros da República e Espírito Santo; e o igarapé de São Vicente, que juntamente com o igarapé do Espírito Santo, limitava o bairro com o mesmo nome.

Manaus em 1900. Foto: Reprodução/Brasiliana Fotográfica

Apesar das limpezas acontecerem dos principais igarapés, eles continuavam sendo uma preocupação em razão da “higiene da cidade”, sendo considerados motivo de proliferação de doenças e fatores de insalubridade. Os aterros e desaterros decorrentes das obras de melhoramentos, acabaram formando o acúmulo de águas e pântanos na região, junto com o lixo e sujeira que circulava na cidade.

Em um estudo sobre as Posturas Municipais e Regulamentos Sanitários no processo de transformação de Manaus da Província a República, realizado por Sebastião Rocha da Silva FIlho, inúmeros igarapés e pântanos foram aterrados, além dos que foram surgindo por conta desse processo que acontecia em desordem e sem projeto definido.

Devido a insalubridade, a cidade começou a ser o principal campo de contaminação de doenças, uma problemática que foi intensificando. Iniciou no governo de Fileto Pires Ferreira (1896-1900) o aterro de igarapés de onde irradiava o mosquito da febre palustre, conhecido como malária. As águas pluviais não escoavam e muito menos desaguavam no rio, com isso, começaram a surgir políticas de intervenções, para evitar a piora do desequilíbrio ambiental que estava acontecendo. 

Planta da Rede de Esgotos e Águas Pluviais de Manáos, em 1915. Foto: Reprodução/Instituto Durango Duarte/Biblioteca Samuel Benchimol

Baseado no projeto de esgotos embasado no Separate System, exposto no salão nobre na Associação dos Empregados no Comércio, o projeto de esgotos foi escolhido pois era considerado o mais apropriado às condições topográficas de Manaus. Além de ser uma opção econômica, uma vez que a cidade já possuía um sistema de galerias que exigia apenas ampliação e retificação. 

O material da rede de esgoto seria de cimento armado e reforçado, enquanto que o encanamento de drenagem ficaria na parte que passaria sob os prédios a esgotar. 

O sistema foi planejado para atender 60 mil habitantes na época, atendendo principalmente as regiões mais populosas. O arqueólogo João Queiroz Rebouças, afirma que a construção dessas galerias causou um impacto social muito grande. 

“Manaus foi modernizada para os comerciantes e banqueiros que aqui vieram se estabelecer. Eles tinham que sentir como se tivessem em seus locais de origem. Para isso, foi necessário aterrar os igarapés e desapropriar moradores para construção de ruas e prédios modernos”, 

destaca o arqueólogo. 

De acordo com João, as galerias se estendem em frente a Igreja da Matriz, indo a partir do Complexo Boothline, na Travessa Vivaldo Lima, seguindo pela Avenida Eduardo Ribeiro. Ali ocorreu o aterro do igarapé Espírito Santo (Eduardo Ribeiro) e a Ribeira das Naus (onde encontram-se os armazéns do Porto Flutuante). 

Também foi realizado o aterro do Igarapé dos Remédios, que compreende a Avenida Getúlio Vargas e a Floriano Peixoto. E o aterro do igarapé de São Vicente, que ficava, onde hoje é a rua São Vicente.

**Esta é a primeira parte da série ‘Galerias Subterrâneas de Manaus’, dividida em três reportagens.

Referências 

GROBE, Cristina Maria Petersen. Manaus e seus Igarapés: A construção da cidade e suas representações (1880-1915). 2014. 149 f. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal do Amazonas, Manaus, 2014.

SILVA FILHO, Sebastião Rocha da. A organização do serviço sanitário em Manaus: sanitaristas e suas práticas de intervenção (1891-1920). 2013. 155 f. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal do Amazonas, Manaus, 2013.

GALERIAS CONSTRUÍDAS NO IGARAPÉ DO ESPÍRITO SANTO e AVENIDA EDUARDO RIBEIRO. Disponível em: <https://manausdeantigamente.blogspot.com/2013/09/galerias-construidas-no-igarape-do.html>. Acesso em: 12 maio. 2022.

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