Lamentavelmente, a violência doméstica e familiar contra a mulher é uma realidade que insiste em não acabar. Recentes pesquisas apontam que os casos de agressão e mortes de mulheres são altos. O Fórum Brasileiro de Segurança Pública, no Atlas da Violência 2020i, apresenta uma série histórica dos números de homicídios por UF, de 2008 a 2018. Destacamos os números de região norte e constatamos que em todos os estados houve aumento no número de casos. A média nacional foi de um aumento de 12,2 % no período mencionado. Com exceção de Rondônia, que teve um aumento de 7,7%, todos os estados tiveram um aumento maior que a média nacional, confirmando que a região norte do Brasil é uma das mais violentas, em todos os sentidos. Em artigo publicado nesta coluna apresentamos dados que confirmam isso Para combater a ”violência epidêmica” precisamos, mais do que ”política de segurança pública”, de uma ”política pública de segurança”.
Os Estados onde houve os maiores aumentos foram: Roraima (253,3%), Tocantins (123,8%), Acre (169%) e Amazonas (101%).
O que se pode extrair desses dados é que a Lei Maria da Penha, lamentavelmente, não tem conseguido reduzir os casos de violência contra a mulher. A referida Lei foi criada em 2006. Os dados objeto de estudo iniciaram em 2008. Desde então, os casos só aumentaram.
Outro dado interessante, que confirma que os casos de homicídios de mulheres estão relacionados à violência doméstica, é o local onde elas foram mortas. O gráfico abaixo deixa claro que a maioria absoluta das mulheres foram mortas dentro de casa, dando a entender que foram vítimas de violência doméstica.
Um estudo recentemente publicado por uma colega de doutorado, Ivania Prosenewicz, em parceria com Lígia Mori Madeirai, revela dados importantes sobre violência doméstica contra a mulher. O estudo tomou Rondônia como referência. Segundo as pesquisadoras, Rondônia:
“em seu contexto social e histórico, destaca-se pela forma como se sucedeu sua ocupação populacional, pois recepcionou pessoas oriundas de diversas regiões do Brasil, com suas culturas diferentes, que buscavam em Rondônia oportunidades de trabalho“
A realidade de Rondônia não difere muito dos demais estados da região norte, são, inclusive, cultural, social e geograficamente muito parecidos. Sendo assim, os resultados desse estudo são válidos para os demais Estados.
As pesquisadoras optaram por realizar o estudo em Rondônia:
“pelo alto índice de violência doméstica e familiar. No Mapa da Violência 2015, o estado aparece na 7ª posição na comparação das taxas de homicídios de mulheres nos estados e em suas respectivas capitais brasileiras“.
De acordo com dados mais recentes, conforme tabela exibida anteriormente, Rondônia teve aumento de casos de homicídios de mulheres menor que os demais Estados do Norte. No entanto, em 2015, data referência para o estado, Rondônia despontava como o estado do norte com as piores taxas de violência doméstica. Os dados não são os mesmos, mas ainda são válidos, pois continuam altos.
O artigo de PROSENEWICZ e MADEIRA traz grande contribuição para o estudo da violência doméstica e familiar contra a mulher na região norte do Brasil. No referido artigo as pesquisadoras analisaram três categorias centrais: a) as representações do significado da violência; b) a culpabilização da mulher pela violência; c) as percepções sobre os serviços de atendimento. Vejamos alguns dos principais achados, relacionados com as duas primeiras categorias:
a) as representações do significado da violência;
Segundo as pesquisadoras:
por meio das representações é possível entender o que os grupos ou os indivíduos pensam da violência, o que definem como violência, que varia conforme o ambiente em que ela é construída“. Com relação a isso, causa-nos surpresa o que as mulheres e homens entendem como violência. O que eles entendem como violência está muito aquém do conceito legal de violência doméstica contra a mulher previsto no artigo 7º da Lei 11.340/2006, in verbis:
Art. 7º São formas de violência doméstica e familiar contra a mulher, entre outras:
I – a violência física, entendida como qualquer conduta que ofenda sua integridade ou saúde corporal;
II – a violência psicológica, entendida como qualquer conduta que lhe cause dano emocional e diminuição da autoestima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, violação de sua intimidade, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação;
III – a violência sexual, entendida como qualquer conduta que a constranja a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada, mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força; que a induza a comercializar ou a utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade, que a impeça de usar qualquer método contraceptivo ou que a force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição, mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação; ou que limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos;
IV – a violência patrimonial, entendida como qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades;
V – a violência moral, entendida como qualquer conduta que configure calúnia, difamação ou injúria.
Para algumas mulheres entrevistadas, violência seria:
Para mim, violência contra a mulher é xingar, bater e ameaçar. (M1). A violência é muita coisa, a covardia, a calúnia, a ameaça, a agressão física, mas, para mim, violência também é ser traída. (M2). A violência psicológica acho a pior, está em todas e afeta a vida, nela está a humilhação, o homem que explora a mulher para o trabalho, são relacionamentos tóxicos. (M4).
Ele me traía muito, saía à noite, chegava bêbado, e ainda contava vantagens sobre o que fazia; aquilo me doía tanto, acho que a gente sofre mais do que quando leva um soco na cara; eu me sentia humilhada, desrespeitada.
Com relação à violência sexual, a pesquisa traz um dado interessantíssimo:
“a violência sexual praticada por parceiro íntimo nem sempre é percebida”. Segundo as pesquisadoras, “uma das mulheres entrevistadas discorda do estupro no casamento; em sua concepção, não há violência sexual na relação entre marido e mulher”.
Vejamos o relato de uma delas:
Na delegacia perguntaram se eu fui estuprada porque estava toda mordida. Claro que não, se eu estava na casa dele, já tinha três dias, era porque eu queria; aí, dizer que a mulher é estuprada quando mora junto, quando é amasiada, não existe. Se está casada tem suas obrigações. (M3).
PROSENEWICZ e MADEIRA, analisando esse relato, conclui que:
“é comum, ainda nos dias atuais, a mulher não identificar abusos sexuais por parte do parceiro íntimo, tendo em vista que há toda uma construção social e cultural em que a mulher foi educada para agradar e satisfazer as necessidades do marido, assim, a relação sexual, mesmo que abusiva, é considerada uma obrigação de esposa“.
É incrível que nos dias de hoje, muitas mulheres ainda carregam essa carga de submissão.
Se algumas mulheres ainda têm uma visão distorcida do que seja violência doméstica, o que dizer dos homens agressores?
Um dos entrevistados mencionou:
Hoje não pode xingar que é violência, tudo agora é Maria da Penha, não pode mais gritar com a mulher, mas lei pro homem não tem nenhuma. Gritar e xingar não seria violência, só aqueles que batem de deixar roxo é o caso, né? É o que eu acho. (H5).
Por obvio, o agressor tende a não reconhecer que praticou uma violência, tenta justificá-la e fugir da punição. Todos querem ficar impunes.
b) a culpabilização da mulher pela violência.
Não surpreende que os agressores responsabilizem as vítimas por sua conduta violenta. É de se esperar. As pesquisadoras confirmam que:
“a maioria dos homens, autores de violência, atribuiu a culpa à mulher, alegando que o comportamento inadequado, as provocações ou a tentativa de controlá-los que motivaram as agressões“.
Vejamos alguns depoimentos:
Desde o início brigamos, eu gosto de beber e ela não aceita, mas me conheceu em um bar e agora quer me controlar […]. No dia que eu fui preso e fiquei duas semanas na cadeia, eu não lembro bem o que aconteceu […] só sei que ela estava com o rosto todo arranhado na delegacia. (H4).
[…] no início não tinha briga, mas depois ela começou a me controlar, quando eu queria sair sozinho, jogar bola, ela começava a dizer que eu ia atrás de outra mulher. Na última briga foi em um domingo, eu ainda uso maconha, aí fumei bastante na noite anterior e acordei meio neurótico e aconteceu toda a briga. (H6).
Neste tópico é onde encontramos alguns dos achados mais impressionantes: algumas mulheres vítimas de agressão acham que são culpadas por terem sido agredidas.
Segundo as pesquisadoras:
“nas representações das mulheres também se obtiveram discursos de autoculpabilização“.
Vejamos os depoimentos de algumas:
Eu é quem deveria ser presa, eu que provoco, eu sou a culpada pelas brigas, eu começo a bater. (M1).
Nessa fala, segundo PROSENEWICZ e MADEIRA,
percebe-se que a mulher sente-se culpada por ter começado “a briga”, entretanto, mesmo com a possibilidade dela ter iniciado as agressões, no contexto das correlações de forças, da violência de gênero, a mulher está sempre em desvantagem, “o saldo negativo da violência de gênero é tremendamente mais negativo para a mulher que para o homem” (SAFFIOTI, 1994, p. 446).
Outro relato interessante, onde as vítimas se culpam pela violência:
Muitas vezes que aconteceram as agressões, é porque eu tinha procurado ele, eu voltava para a casa dele, eu procurava por ele, não conseguia ficar longe, eu não deveria voltar lá. (M3).
O caminho para reduzirmos a violência contra a mulher envolve muitos fatores e campos de atuação, envolvendo família, escola, igreja, órgãos governamentais, enfim, toda a sociedade. Não se pode culpar a mulher pela violência que ela sofreu. Errados estão os agressores. Nada justifica a violência contra a mulher, ou contra quem quer que seja. É preciso acabar com cultura da violência no Brasil. Nada pode legitimá-la. Ela precisa ser punida exemplarmente.
A transformação precisa ser cultural, o que demandará muito tempo. Precisamos de políticas públicas eficazes e efetivas que promovam as mudanças necessárias.
i ATLAS DA VIOLÊNCIA 2020. DOI: https://dx.doi.org/10.38116.riatlasdaviolencia2020
ii PROSENEWICZ, Ivania, e MADEIRA, Lígia Mori. Violência doméstica e familiar: análise das Representações Sociais em Rondônia. Rev. bras. segur. pública | São Paulo v. 15, n. 1, 22-39 fev/mar 2021. Pág. 22.
Sávio A. B. Lessa é Doutor em Ciência Política; pós graduado em Ciências Penais, Segurança Pública, Direitos Humanos e Direito Militar; Advogado Criminalista; Professor de Direito Penal e Processual Penal da FCR; Pesquisador do PROCAD/MIN. DEFESA; e Coronel da Reserva da PMRO.