O Estado existe para promover o bem-estar social. Através de programas a ações, o Estado precisa atender as demandas sociais e resolver os problemas que afligem a sociedade. É para isso que serve o Estado. A solução desses problemas sociais se materializa por meio de políticas públicas, que nada mais é do que:
O conjunto de políticas, programas e ações do Estado, diretamente ou por meio de delegação, com objetivo de enfrentar desafios e aproveitar oportunidades de interesse coletivo. Tais políticas, programas e ações concretizam-se na oferta de bens e serviços que atendam as demandas resultantes das disputas políticas acerca do que é ou deveria ser de interesse público (CASTRO; OLIVEIRA, 2014, p. 22).
Se o objetivo de uma política pública é enfrentar desafios, é mais do que evidente que a segurança pública precisa de um conjunto de políticas, programas e ações diretamente voltadas para enfrentar os graves problemas que afligem esse setor, pois desafios não faltam nessa área tão delicada da política pública.
O Atlas da Violência, edição 2020, publicado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, apresenta as taxas de homicídios no Brasil ao longo do período 2008-2018. A linha azul tracejada apresenta os dados da região norte. Observa-se, claramente, que a região norte tem um dos maiores índices de violência do Brasil, seguido pela região nordeste. Ao longo desse período a taxa de homicídios sempre esteve acima de 30 homicídios por grupo de 100 mil habitantes. A partir de 2015 a taxa superou os 40 homicídios/100mil habitantes. Essa taxa é quatro vezes maior que o tolerável pela Organização Mundial de Saúde (OMS), indicando que a região norte do Brasil está passando por uma “violência epidêmica”.
Não bastasse estarmos sofrendo com a pandemia do COVID-19, ainda vivemos, há muitos anos, uma epidemia de violência. A OMS afirma que taxas superiores a 10 homicídios por 100 mil habitantes representa “violência epidêmica”. Por outro lado, a doutrina de segurança pública chama esse limite de zona de estabilidade. Para Filocre (2010, p. 82):
Segurança pública decorre da conjugação do indicador de criminalidade com a atuação estatal por mecanismos de realimentação. Para uma satisfatória compreensão, a questão se põe numa sociedade hipotética da seguinte maneira. Considere-se um instante inicial onde a criminalidade esteja num ponto elevado e a atuação estatal, ao contrário, seja mínima. A medida que o Estado atua respondendo à criminalidade, os valores desta reduzem até alcançar zona na qual a criminalidade esteja de acordo com as condições socioeconômicas daquela sociedade. Aquela zona recebe a denominação zona de estabilidade.
A política de segurança pública visa a adequação da criminalidade ao nível de estabilidade da sociedade, para a qual ela é elaborada e implementada.
Índices tão altos de homicídios provocam instabilidade social, situação enfrentada hoje pela maioria dos Estados brasileiros. A região norte, infelizmente, tem despontado negativamente nesse cenário, pelo menos é o que se verifica nas estatísticas.
É necessário que o Estado, em todas as suas esferas, promova ações visando reduzir os índices de criminalidade à baixo da “zona de estabilidade’, a fim de permitir o mínimo de condições de vida digna para a população.
Em sua grande maioria, os problemas relacionados `à segurança pública são consequência de diversos fatores sociais. Para a solução desses problemas, necessário se faz promover políticas públicas que atuem especificamente nesses fatores. Dentre esses fatores, destaca-se: planejamento familiar, paternidade responsável, educação, emprego e segurança social. Estes fatores estão inter-relacionados e acabam resultando em violência, criminalidade e insegurança pública.
Política de segurança pública é tão interdisciplinar que começa pelo planejamento familiar e paternidade responsável. Com relação a isso, o médico Dráuzio Varella, em entrevista ao jornal “o Globo, afirmou que ‘A falta de planejamento familiar é uma das causas mais relevantes do aumento vertiginoso da violência que ocorreu nas duas últimas décadas. Segundo o ele, tal conclusão está embasada em sua experiência profissional na Casa de Detenção de São Paulo, onde era raro encontrar um presidiário que tivesse sido criado por pai e mãe, sendo que a maioria era fruto de lares desfeitos. Também não há dúvida de que o problema da criminalidade começa com a ruptura da primazia das estruturas familiares e educacionais de socialização’.
A fim de corroborar com esta afirmação de Dráuzio Varella, Pomin apresenta os seguintes dados:
Em agosto de 2004, o jornal “Folha de S. Paulo” publicou informações contidas no banco de dados do município de São Paulo, colhidas no período de 2000 a 2004 pela Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados (SEADE). A reportagem demonstra que regiões com indicadores sociais mais precários são as que têm o maior número de moradores com até 15 anos, ou seja, nos locais onde se concentram os maiores índices de violência e exclusão é onde estão os recordes em crescimento populacional (POMIN, 2012, 57).
Sabe-se que política pública é o conjunto de políticas, programas e ações do Estado formulados e implementados com o objetivo de encontrar solução para enfrentar os desafios que afligem a sociedade. Sendo assim, o conceito de política de segurança pública é o seguinte:
É um conjunto composto de programas, estratégias, ações e processos atinentes à manutenção da ordem pública no âmbito da criminalidade, incluídas neste contexto questões sobre violência e insegurança, inclusive subjectiva. ‘Manutenção da ordem pública’ é expressão tomada em sentido amplo e compreende alcançar a ordem pública, mantê-la e fazer com que evolua. A criminalidade é um fenômeno social que tem o poder de comprometer a ordem pública que se queira alcançar, ou que abala a ordem pública que se quer manter, especialmente quando agravada pela qualificadora violência (FILOCRE, 2010, p. 80).
Resta claro que os programas e ações previstos na política de segurança pública têm a ver com criminalidade, mas criminalidade não voltada isoladamente a si própria, ou seja, com o objetivo de mera redução quantitativa de crimes ou de violência. A política de segurança pública deve estar comprometida em termos de compatibilidade com a estabilidade social, ou, noutras palavras, com a ordem pública. Sendo que a ordem pública não é simples e unicamente oposição à ideia de desordem, mas sim, numa perspectiva social ampla, sinônimo de equilíbrio dinâmico ou estabilidade.
Beato Filho faz uma observação interessante sobre a relevância da política de segurança pública, distinguindo-a das demais políticas públicas, destacando o dimensionamento de seu objetivo. Segundo ele:
O objetivo da política de segurança pública é a estabilidade social e não se origina da opção, do debate ou do jogo das forças políticas – é pré-existente, permanente e conceitualmente único -, fato que a põe em situação distinta de outras políticas públicas quando, nestas, eventualmente, seus objetivos sejam definidos como consequência do embate político. Por outro lado, ultrapassada a fase de adequado dimensionamento do objetivo – e não de ‘eleição’- a política de segurança pública comporta-se tal como qualquer outra política pública na medida em que a definição dos programas e estratégias para alcance do objetivo e as ações dela decorrentes são fruto da natural discussão ideológica e do processo político decisório.
É inconcebível que a política de segurança pública se origine apenas do embate de forças políticas, onde o grupo de atores com maior influência determine a política a ser formulada, nem tão pouco pode ter como objetivo às eleições. Não pode visar fins eleitoreiros, nem tão pouco interesses individuais ou corporativos.
O interesse público e a estabilidade social devem prevalecer, pois a manutenção da ordem pública, conforme dito anteriormente, é sinônimo de equilíbrio dinâmico e estabilidade. Nesse contexto, ordem pública está relacionada não apenas com segurança pública, mas também com educação, saúde, entre outros fatores sociais.
Ainda tratando do conceito de política de segurança pública, é importante esclarecer que existe uma distinção entre política de segurança pública e política pública de segurança.
Segundo Oliveira: Política de segurança pública é expressão referente às atividades policiais, é a atenção policial ‘strictu sensu’, ao passo que política pública de segurança é expressão que engloba as diversas ações, governamentais ou não governamentais, que sofrem impacto ou causam impacto no problema da criminalidade e da violência (FILOCRE, 2010, p. 81).
Por fim, FILOCRE (2010, p. 81) faz mais alguns esclarecimentos sobre as distinções entre política de segurança pública e política pública de segurança:
Para ser política de segurança pública, a política pública precisa estar comprometida com o objetivo específico de manutenção da ordem pública. Política pública de segurança, por sua vez, volta-se à segurança, que é conceito aberto e tem reflexos genéricos sobre a redução da criminalidade, mas não compromissada explicitamente com o controle da criminalidade na zona de estabilidade.
Se a política pública de segurança não tem compromisso explícito com o controle da criminalidade na zona de estabilidade, a política de segurança pública, por sua vez, visa a adequação da criminalidade ao nível de estabilidade da sociedade, para a qual ela é elaborada e implementada.
Com base nessas últimas observações, entende-se que a política de segurança pública não tem como objetivo eliminar a criminalidade, mas sim adequá-la ao nível de estabilidade de sociedade, ou seja, manter na zona de estabilidade. Não poderia ser diferente, haja vista que eliminar a criminalidade é uma utopia.
Ocorre, no entanto, que reduzir os índices de criminalidade a níveis toleráveis faz-se necessário envolver todos os organismos do Estado e da sociedade, pois, como vimos no artigo anterior, segurança pública é responsabilidade de todos. Assim sendo, o Estado precisa formular e implementar políticas públicas de segurança que envolva todos os organismos governamentais e não-governamentais, não deixando apenas a cargo dos organismos policiais. Afinal, a criminalidade, mais do que combatida, precisa ser evitada por meio de ações sociais que previnam a prática do crime e o surgimento do criminoso.
REFERÊNCIAS:
FILOCRE, Lincoln da Silva D’Aquino. Direito de Segurança Pública: Limites Jurídicos para Políticas de Segurança Pública. São Paulo: Edições Almeidina, 2010.
POMIN, Andryelle Vanessa Camilo. Os direitos da personalidade violados pela falta de segurança pública/ Andryelle Vanessa Camilo Pomin. – Belo Horizonte: Arraes Editores, 2012.
VARELLA, Draúzio. Planejamento Familiar. Publicado em: 25 de abril de 2011
Revisado em: 11 de agosto de 2020 (https://drauziovarella.uol.com.br/drauzio/artigos/planejamento-familiar-artigo).
Sávio A. B. Lessa é Doutor em Ciência Política; pós graduado em Ciências Penais, Segurança Pública, Direitos Humanos e Direito Militar; Advogado Criminalista; Professor de Direito Penal e Processual Penal da FCR; Pesquisador do PROCAD/MIN. DEFESA; e Coronel da Reserva da PMRO.