Os policiais saem de casa para proteger as vidas e os patrimônios alheios, e, muitas vezes, deixa desprotegida as vidas de seus familiares e seu reduzido patrimônio
Pode parecer estranho, mas para fazer segurança pública é necessário que o agente de segurança tenha segurança para trabalhar. E, lamentavelmente, é comum não terem segurança.
Para iniciarmos essa discussão, necessário se faz esclarecer de que segurança estamos falando. Por óbvio, estamos nos referimos à segurança no sentido amplo da palavra. No entanto, ainda está inserida no contexto de segurança pública.
Segundo Brito, Segurança Pública, sob o aspecto jurídico seroa, portanto,
o afastamento por meio de organizações próprias, de todo perigo ou mal capaz de afetar a ordem pública, em prejuízo da vida, da liberdade ou de direitos de propriedade dos cidadãos. É uma condição concreta proporcionada pelo Estado legal, através da garantia e preservação de direitos e liberdades individuais a serem alcançadas por seus cidadãos, na qual pode haver até mesmo uma limitação individual em detrimento do bem-estar de toda a sociedade.
Se a Segurança Pública se concretiza quando o Estado proporciona as garantias e preservação de direitos e liberdades individuais, podemos avançar para o conceito de segurança pública como direito fundamental, relacionado ao direito social e à dignidade da pessoa humana:
É um direito fundamental e social, que promove a segurança pessoal, física e mental do indivíduo enquanto ser dotado de liberdade pública, para que possa exercer seus outros direitos constitucionalmente assegurados como, por exemplo, à vida, à integridade física e psíquica, à inviolabilidade da intimidade, à liberdade pessoal e à dignidade.
Os direitos à vida e à integridade física as vezes ficam comprometidos em razão das condições precárias de trabalho. É comum os policiais não terem equipamentos individuais para trabalhar, tais como: coletes balísticos, escudos, capacetes, rádio comunicadores, armas automáticas etc. As vezes as viaturas em que trabalham não oferecem segurança. As vezes falta até preparo adequado: treinamento físico regular, treinamento de tiro e até defesa pessoal. Essas deficiências muitas vezes são supridas pela iniciativa dos próprios policiais, que tiram dinheiro de seus bolsos para arcarem com despesas com academia, munição para a prática de tiro, equipamentos individuais e academia de lutas. Quando sua vida está em jogo, não vale a pena arriscar. Ao invés de esperar que o governo cumpra com seu dever, proporcionando esses treinamentos e equipamentos, os policiais fazem o que é necessário.
Essa, lamentavelmente, comum falta de apoio, somada ao constante risco de morte, tem levado muitos policiais a situações de depressão, ansiedade e estresse, o que compromete sua integridade psíquica.
Com relação ao direito à inviolabilidade da intimidade, podemos dizer que é comum ser relativizado, pois muitos policiais não conseguem preservar sua vida particular. Isto porque o serviço costuma absorver tanto o policial que sua vida pessoal fica comprometida, pois não consegue dar a devida atenção à família, vive para o trabalho, ocorrendo o que muitos chamam de dano existencial.
O direito à liberdade pessoal também é comprometido. Os policiais, principalmente, os militares, não gozam da plenitude das liberdades comuns aos demais cidadãos, pois muitas coisas lhes são proibidas por lei: sindicalização, greves, filiação a partidos políticos, dentre outras.
Chegamos agora a um ponto delicado: o direito à uma vida digna. Como se vive com dignidade quando não se tem um salário digno, correspondente ao grau de complexidade e risco da atividade. Eis uma das maiores reclamações dos policiais em quase todo o país. São poucas as polícias que pagam bem seus profissionais.
Os policiais saem de casa para proteger as vidas e os patrimônios alheios, e, muitas vezes, deixa desprotegida as vidas de seus familiares e seu reduzido patrimônio. Isto porque muitos moram em locais de alto índice de criminalidade, pois não ganham o suficiente para morarem em locais melhores, mais seguro. Há casos em que os policiais escondem sua profissão para não serem mortos pelos bandidos que atuam nas comunidades em que eles moram. Situação absurda, mas é uma realidade em algumas regiões do Brasil.
Para dar uma melhor condição de vida e segurança para si e seus familiares, principalmente os filhos, muitos policiais fazem “bico”, ou seja, trabalham como segurança em estabelecimentos particulares. Nesses casos, se sofrerem algum acidente ou morrerem, ficarão desassistidos e não terão direito aos benefícios previdenciários e sociais, pois o mal sofrido não teria relação com o serviço policial.
Os filhos nem sempre conseguem acesso a uma boa educação que oportunize os melhores cursos superiores.
Ao lerem isso, muitos podem dizer: e daí, a maioria dos trabalhadores tem salários menores do que os dos policiais, vivendo em condições de pobreza, faltando até o que comer. Isto é verdade. Ocorre, no entanto, que não se deve tomar a miséria como parâmetro. Além do mais, os policiais, todos eles, prestam concurso público, com grande concorrência, para ingressarem na vida policial, e exercem uma atividade exclusiva de Estado, essencial para o bom funcionamento do Estado. Sem segurança pública ninguém goza dos demais direitos fundamentais.
Se é tão sacrificante assim, por que que tantas pessoas ainda querem seguir essa carreira? É uma boa pergunta. Poderíamos especular algumas respostas para ela:
- O salário, apesar de baixo, é melhor que o de muitas outras categorias, e permite condições mínimas de conforto e subsistência;
- Tem estabilidade;
- Possibilidade de progressão funcional;
- Aposentadoria especial (se sobreviverem aos riscos da profissão);
Poderíamos elencar outras razões, tais como status, prestígio, reconhecimento social, mas estaria mentindo. Lamentavelmente, a categoria policial nem sempre recebe o devido valor. São, muitas vezes, tratados como categoria profissional de segunda classe. É comum serem estigmatizados, e terem sua honra atacada pelos erros cometidos por seus pares. Erros esses, que não representam o cotidiano dos policiais. Em sua absoluta maioria, as corporações policiais são compostas por pessoas honestas, corajosas e devotadas à atividade policial. Poucos são os que cometem crimes e se corrompem, mas suas ações criminosas, infelizmente, são as que repercutem na mídia.
Importante destacar um outro tipo de insegurança que aflige os policiais: a insegurança jurídica, ou seja, a falta de segurança jurídica para realizar seu trabalho. José Afonso da Silva ensina que
“a segurança jurídica consiste no ‘conjunto de condições que tornam possível às pessoas o conhecimento antecipado e reflexivo das consequências diretas de seus atos e de seus fatos à luz da liberdade reconhecida’. Uma importante condição da segurança jurídica está na relativa certeza que os indivíduos têm de que as relações realizadas sob o império de uma norma devem perdurar ainda quando tal norma seja substituída”.
(SILVA, J., 2006, p. 133)
Pela natureza do seu trabalho, o policial não pode recusar missão e a executa em nome do Estado, que deve dar a eles a segurança jurídica necessária para que esse profissional possa desempenhar suas funções, especialmente nos casos em que há a ruptura da ordem e a periclitação da vida. O Estado que o obriga a exercer a atividade de risco, precisa também assumir as responsabilidades da ação em vez de abandonar o seu agente à própria sorte. Sobre esse tema, voltaremos a abordá-lo em outro artigo, pois exige atenção especial.
Aí voltamos a pergunta: por que, ainda assim, insistem em ser policial?
Só tem uma resposta para isso: amor, paixão, vocação e admiração pela profissão policial.
Ontem, dia 22 de março de 2022, assisti a uma formatura de um Curso de Força Tática da Polícia Militar de Rondônia. Não é um curso qualquer. Não existe curso fácil na carreira policial, principalmente na policial militar.
A Força Tática
A Força Tática constitui o segundo nível de Força do Estado no enfrentamento à criminalidade. As guarnições são compostas por quatro militares, estruturadas com armamentos e equipamentos diferenciados, considerada a tropa de pronto emprego. Atua na atividade de recobrimento de malha e apoio às guarnições dos setores em ocorrências de alta e média complexidade, que fogem ao cotidiano da rádio patrulha, e ainda agem como contenção e primeiro embate em situações que seja necessário o emprego do último nível de força do Estado, qual seja, o emprego da tropa de choque ou Batalhão de Operações Especiais.
Em razão das atividades desenvolvidas pela Força Tática, conclui-se que o Curso é extremamente difícil, com elevado grau de esforço físico e psicológico. Nele os policiais testam seus limites. O Curso iniciou com 40 policiais, porém apenas 21 o concluíram.
Apesar das dificuldades e da exaustão, todos os 21 concludentes participaram da formatura com muito entusiasmo e vibração contagiantes. Notava-se no semblante deles o orgulho e a felicidade em terem concluído o curso. Os familiares também estavam orgulhosos. Alguns pais eram policiais militares, já na reserva (inatividade). A felicidade e orgulho deles em verem seus filhos seguindo seus passos era emocionante.
É esse tipo de sentimento que move as corporações policiais. Esse entusiasmo e paixão é que explica o motivo de tantos desejarem ingressar na carreira policial e de permanecerem nela mesmo tendo a oportunidade de mudarem para outra área profissional. É ele, também, que explica o ato de arriscar a vida diuturnamente, de caminhar em direção ao perigo enquanto todos, naturalmente, correm na direção contrária. Encaram o perigo e encaram a morte olho no olho.
No entanto, é importante que as corporações policiais e seus valorosos profissionais sejam valorizados. Caso contrário, corre-se um sério risco de o entusiasmo acabar. Se isso acontecer, esses profissionais não conseguirão se sacrificar tanto em prol do serviço, o que comprometerá a qualidade e eficiência do serviço. Pensarão que não vale a pena. Poderão, inclusive, abandonar a carreira policial por outra com menos sacrifícios e melhores condições de trabalho, inclusive salariais. Com certeza não é isso que queremos. Perderemos todos nós.
Por fim, afirmamos que se a sociedade quer uma polícia melhor, que proporcione maior segurança para os agentes de segurança. Os gestores públicos e a sociedade precisam valorizar mais as corporações policiais e seus profissionais.
Sobre o autor
Sávio A. B. Lessa é Doutor em Ciência Política; pós graduado em Ciências Penais, Segurança Pública, Direitos Humanos e Direito Militar; Advogado Criminalista; Professor de Direito Penal e Processual Penal da FCR; Pesquisador do PROCAD/MIN. DEFESA; e Coronel da Reserva da PMRO.
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