​Garimpo ilegal no Rio Madeira: cegueira deliberada e omissão

“A notícia pode ser uma novidade para as pessoas do restante do Brasil, mas para quem mora na região do Rio Madeira, principalmente em Rondônia, não há nenhuma novidade”, comenta o professor Sávio Lessa.

Nos últimos dias os grandes jornais do país têm divulgado, com bastante surpresa, a invasão de dragas de garimpo de ouro no Rio Madeira, entre Rondônia e Amazonas, mais precisamente nas proximidades de Autazes-AM. Uma das manchetes diz o seguinte:

“Centenas de balsas de garimpo ilegal desafiam fiscalização e tomam conta de trecho do rio Madeira, na Amazônia: A ocupação começou há cerca de 15 dias em Autazes, a 113 quilômetros de Manaus. Os danos ao meio ambiente já começam a aparecer nas encostas, mas ainda não houve nenhuma ação dos órgãos de fiscalização” i.


É preciso fazer uma correção nessas notícias: ao contrário do que consta na primeira manchete, “a ocupação não começou a cerca de 15 dias”, o Rio Madeira sempre esteve invadido por dragas de garimpo de ouro. Essa notícia pode ser uma novidade para as pessoas do restante do Brasil, mas para quem mora aqui na região do Rio Madeira, principalmente em Rondônia, mais precisamente em Porto Velho, capital do Estado de Rondônia, não há nenhuma novidade nessa notícia. Ao longo dos anos, a invasão do Rio Madeira por garimpeiros só mudou a intensidade, mas sempre houve.

Segundo HERRAIZ e DA SILVA, a bacia do rio Madeira, com uma superfície drenada de 1.420.000 km², abrange três países do continente, tendo os seus formadores em território boliviano (51% com o Beni, Mamoré e Guaporé) e peruano (7% com o Madre de Dios). O rio Madeira recebe esse nome após o encontro dos rios Beni e Mamoré, na fronteira entre Brasil e Bolívia. Ele é o terceiro maior rio do país e o principal afluente do Rio Amazonas. 
Dragas atracam próximo ao município de Autazes/AM. Foto: Silas Laurentino

Pelas suas características e origem andina, o rio Madeira é a principal fonte de sedimentos em suspensão e sólidos dissolvidos da bacia amazônica, chegando a transportar metade dos sedimentos da bacia. É nesses sedimentos carregados pela corrente do Madeira que o ouro é transportado desde as cabeceiras dos tributários, mais especificamente do rio Madre de Dios, no Peru, até as planícies e várzeas da bacia amazônica no Brasil onde os ribeirinhos começaram a explorar nos anos 1970 a 1980 com a consequente alteração da paisagem e dos sistemas produtivos ii.

A descoberta de ouro no Rio Madeira se deu em meados de 1734, pelos irmãos Fernando e Artur Paes de Barros, que atrás dos índios Parecis, descobriram um veio aurífero, que recebeu o nome de ‘Minas do Mato Grosso’, situadas nas margens do rio Galera, no vale do Guaporé, terras do atual estado de Rondônia. Os Anais de Vila Bela da Santíssima Trindade, escritos em 1754 pelo escrivão da Câmara dessa vila, Francisco Caetano Borges, citando o nome Mato Grosso, assim nos explica:

“Saiu da Vila do Cuiabá Fernando Paes de Barros com seu irmão Artur Paes, naturais de Sorocaba, e sendo o gentio Pareci naquele tempo o mais procurado, […] cursaram mais ao Poente delas com o mesmo intento, arranchando-se em um ribeirão que deságua no rio da Galera, o qual corre do Nascente a buscar o rio Guaporé, e aquele nasce nas fraldas da Serra chamada hoje a Chapada de São Francisco Xavier do Mato Grosso, da parte Oriental, fazendo experiência de ouro, tiraram nele três quartos de uma oitava na era de 1734”. iii

Reportando-nos a história mais recente, o jornalista Carlos Sperança, em meados de 1980 o garimpo do ouro no rio Madeira atingia o seu ápice criando milionários em Porto Velho. A migração de todo País era intensa para Rondônia, em sua maioria de garimpeiros, com suas balsas e dragas tomando conta das águas barrentas do Madeirão .

Segundo Sperança, num destes primeiros anos da década de 80, com mais de dez mil dragas quase coladas no rio Madeira e um formigueiro de pessoas nas ruas movimentando o comércio, emergiram alguns milionários do garimpo. Tanto sucesso despertou a cobiça da população, fazendo com que no ano seguinte se atiraram ao rio Madeira dentistas, médicos e advogados, além de jornalistas, construtores, padres, pastores, políticos, prostitutas, todos mirando a riqueza. O Rio Madeira, que tinha sido generoso até então, se transformou em um cenário de terror: o ouro rareou.

No início da década de 90 houve o declínio, mas até então a garimpagem acontecia no trecho do rio que ficava em Porto Velho, exatamente em frente ao complexo da Estrada de Ferro Madeira Mamoré, no centro da capital do Estado. Os mais antigos diziam que dava para atravessar o Rio Madeira de uma margem a outra andando sobre as dragas.

O garimpo no Rio Madeira em frente a capital Porto Velho só veio a ser proibido em 1991 com a criação da Área de Proteção Ambiental (APA), entre a cachoeira de Santo Antônio até abaixo do Igarapé Belmont, Descrita no Decreto n° 5124, de 06 de junho de 1991, com área total aproximada de 6.741, hectares, com a propositura única e exclusivamente de proteger o meio ambiente, já sofrida com a erosão e o assoreamento, ficando expressamente proibidas as atividades minerais ou garimpeira de qualquer natureza no trecho do rio madeira e suas margens conforme descrita no Decreto 5197 de 29 de julho de 1991:

Art. 1º Ficam suspensas todas e quaisquer atividades de extração de minério ou garimpagem no segmento do Rio Madeira compreendido pela Cachoeira Santo Antônio e a divisa interestadual de Rondônia com o Estado do Amazonas.

Obviamente que o garimpo no Rio Madeira, em Porto Velho/RO, não acabou imediatamente. Os garimpeiros ainda resistiram por mais alguns anos. Em razão da vergonha que era assistir a exploração ilegal de garimpo em plena capital do Estado, em plena luz do dia, com rio repleto de dragas, a fiscalização foi intensificada e as dragas saíram da cidade e foram para outro trecho do Rio Madeira, para fora da APA, ou seja, para o Amazonas, próximo a Humaitá.

A garimpagem ilegal no Rio Madeira, no Estado do Amazonas, cresceu e resultou em muitos conflitos entre garimpeiros e agentes de segurança pública. Em 2017 houve uma situação que repercutiu nacionalmente. Em 24 de outubro de 2017 a Polícia Federal, em conjunto com a Marinha do Brasil, IBAMA, ICMBio e Força nacional de Segurança Pública realizaram uma operação denominada ‘Ouro Fino’, cuja finalidade era reprimir a garimpagem ilegal de ouro. Essa operação revoltou os garimpeiros de Humaitá, que tentaram invadir e incendiar a sede da Agência Fluvial de Humaitá. 

Segundo a Marinha do Brasil, “A ação foi contida pelos militares da Marinha com o apoio do Exército e da Polícia Militar do Amazonas. No sábado (28), o Comando do 9º Distrito Naval deslocou um pelotão de Fuzileiros Navais e o Navio-Patrulha Fluvial Rondônia para garantir a segurança de seus militares e familiares, de suas instalações e de seus meios em Humaitá”. Já segundo a Polícia Federal, as investigações apontam para o suposto envolvimento de políticos do município de Humaitá-AM nesses ataques contra os agentes envolvidos na operação.

A garimpagem no Rio Madeira, em Porto Velho-RO, continuou apesar da suspensão. Vez ou outra ocorre uma operação para coibir. Em dezembro de 2018 três proprietários de balsas que atuam na extração ilegal de ouro no Rio Madeira em Porto Velho, foram presos durante uma operação realizada pela Polícia Militar, Exército Brasileiro e Marinha do Brasil .

Em janeiro de 20290 doze dragas foram apreendidas no rio Madeira durante uma operação da Polícia Militar Ambiental (PMA), Exército Brasileiro e Secretaria de Meio Ambiental (Sedam) em Porto Velho. Em duas das dragas foram encontradas cerca de 400 gramas de ouro .

O que está acontecendo agora é uma retomada intensa da garimpagem no Rio Madeira, e no Brasil, graças a falta de fiscalização e estímulo dos gestores públicos, a começar pelo Presidente da República, que, lamentavelmente, toma medidas que atendem aos interesses dos garimpeiros. O garimpo no Rio Madeira, como ficou claro, nunca foi totalmente paralisado e, agora, com essa sensação de impunidade e estímulo a garimpagem ilegal toma fôlego e aumenta sua atividade de degradação do meio ambiente.

O governador de Rondônia, Cel. Marcos Rocha, aliado do Presidente Bolsonaro, tem seguido a política do governo federal no que diz respeito às questões ambientais e editou o Decreto nº 25.780/2021, que regulamenta garimpo no rio madeira, e demais do estado.

Com a publicação deste decreto, o Governo revoga o Decreto n° 5.197, de 29 de julho de 1991, que proibia extração de minério ou garimpagem no Rio Madeira, compreendido pela Cachoeira Santo Antônio e a divisa interestadual de Rondônia com Amazonas.

O decreto que foi revogado, considerava a prática do garimpo do ouro uma atividade que degrada o Rio Madeira de forma irremediável, alterando inclusive “a variação de qualidade da água, sedimentação do canal principal, poluição das águas por óleo combustível, degradação do solo nas margens e ilhas, comprometimento de navegação fluvial e/ou atividades portuárias responsáveis pelo abastecimento de combustíveis das usinas termo elétricas, veículos, aeronaves, gás de cozinha e outros derivados de petróleo, bem como terminal exportação e importação, provocação de poluição do ar, do solo e da água pelo mercúrio” 

O governo do Amazonas, com relação a atual situação de garimpagem ilegal no Rio Madeira, no território de seu Estado, diz que não tem nada a ver com isso, esquivando-se de qualquer responsabilidade sobre a ação criminosa que reúne mais de 600 balsas clandestinas. Por meio de nota, o Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas (Ipaam), órgão Estadual responsável pela fiscalização do meio ambiente, declarou que a atribuição de agir contra o garimpo ilegal na região é do governo federal e de órgãos vinculados à gestão do Executivo em Brasília. O Ipaam afirmou que, ao identificar a presença das balsas, comunicou o Ibama para “alinhamento de providências”.

O diretor-presidente do Ipaam, Juliano Valente, declarou que as balsas estão ancoradas no Rio Madeira, em “área de competência dos órgãos federais”. “A regulamentação da exploração mineral na área, conforme o gestor, é de competência da Agência Nacional de Mineração. O licenciamento é de responsabilidade do Ibama, e a atuação, em caso de crimes de exploração ilegal de minério, é competência da Polícia Federal. Ainda sobre a trafegabilidade e de poluição hídrica, o acompanhamento é feito pela Marinha”, afirmou Valente. 

Segundo o Ipaam, embora a competência de atuação na área seja federal, o governo do Estado “está à disposição para atuar em parceria com os demais órgãos” e, na manhã desta quarta-feira, fez uma reunião de alinhamento com Ibama, Marinha e Polícia Federal.

É um jogo de empurra-empurra. Ninguém assume responsabilidade. Essas centenas de dragas não pareceram ali da noite para o dia. Os responsáveis pela fiscalização fecharam os olhos e deixaram que o crime acontecesse.

Saiba mais: O que se sabe sobre a invasão de garimpeiros no Rio Madeira

É de estranhar que depois que essa situação criminosa veio à tona, virando notícias nacional, o Ministério Público Federal cobrou dos órgãos federais e estaduais uma ação emergencial coordenada, no prazo de 30 dias, para combater o garimpo ilegal em Autazes. Ação emergencial em 30 dias??? Será que o governo federal e estadual não possuem estrutura e recursos humanos e materiais para intervir imediatamente para reprimir esse crime? Será que foram pegos de surpresa? Que nada sabiam dessa garimpagem ilegal? Não é possível. Pelo que consta, durante os próximos 30 dias a garimpagem está liberada, pois nada será feito para coibi-la.

Ao que parece, não existe uma preocupação com o meio ambiente. E não adiante falar que a exploração de minério nos rios da Amazônia produz riquezas para o Estado. Essas supostas riquezas não têm ficado aqui no país, vão para o exterior, resultado do tráfico de pedras preciosas. O que fica aqui é a destruição das florestas, poluição dos rios, contaminação dos peixes, doenças na população que consome os produtos dessas áreas degradadas e muita violência. No entanto, muitos gestores preferem fechar os olhos para o problema e fazer de conta que ele não existe. 

https://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2021/11/24/centenas-de-balsas-de-garimpo-ilegal-desafiam-fiscalizacao-e-tomam-conta-de-trecho-do-rio-madeira-na-amazonia.ghtml 

ii https://revista.fct.unesp.br/index.php/pegada/article/viewFile/3892/3209

iii  https://idoc.pub/documents/69477030-historia-de-mato-grosso-no-periodo-colonial-joao-antonio-pereira-pdfpdf-qvnd95jrvw4x

ⅳ https://www.diariodaamazonia.com.br/nos-tempos-do-garimpo/

ⅴ  https://www.rondoniagora.com/geral/donos-de-balsas-sao-presos-e-dragas-apreendidas-durante-operacao-em-porto-velho-fotos

ⅵ  https://g1.globo.com/ro/rondonia/noticia/2020/01/25/6-dragas-com-ouro-sao-apreendidas-em-operacao-no-rio-madeira-em-porto-velho.ghtml

ⅶ https://orondoniense.com.br/marcos-rocha-regulamenta-a-atividade-de-garimpo-no-rio-madeira/

Sobre o autor

Sávio A. B. Lessa é Doutor em Ciência Política; pós graduado em Ciências Penais, Segurança Pública, Direitos Humanos e Direito Militar; Advogado Criminalista; Professor de Direito Penal e Processual Penal da FCR; Pesquisador do PROCAD/MIN. DEFESA; e Coronel da Reserva da PMRO.

*O conteúdo é de responsabilidade do colunista

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