Indígenas da Amazônia têm dores frequentes, mas não reclamam

Estudo feito com três etnias verificou que apesar de 77% sentirem dores não há o costume de reclamar, por considerarem o processo natural e não uma anormalidade

No ritual da tucandeira, realizado como forma de iniciação masculina pela tribo sateré-mawé, na Amazônia, para demonstrar força e coragem, meninos da aldeia têm que vestir uma luva feita de palha (saaripé) cheia de formigas tucandeiras (Paraponerinae) e resistir por, pelo menos, 15 minutos às doloridas ferroadas do inseto.

Pesquisadora do manejo e controle da dor em pacientes em hospitais e em populações vulneráveis, como moradores de rua em São Paulo, Eliseth Ribeiro Leão, professora da Sociedade Beneficente Israelita Brasileira Albert Einstein, ficou intrigada como aqueles indígenas resistiam e tratavam tamanha dor após o ritual na floresta. “Imaginava o processo inflamatório que aqueles índios apresentam quando tiram as mãos das luvas e o que fazem para curá-lo”, disse.

A fim de tentar encontrar resposta para essa e outras questões, a pesquisadora empreendeu um estudo inédito sobre as dores de indígenas na Amazônia e como elas são tratadas. Resultado do mestrado de Elaine Barbosa de Moraes, sob orientação de Eliseth, o trabalho foi apresentado no Congresso Interdisciplinar de Dor (Cindor) da Universidade de São Paulo (USP). 

Foto: Eliseth Leão

“Há uma visão de que os indígenas suportam a dor causada por rituais, como o da tucandeira, mas não se sabia como era a comunicação dessa e de outras dores sentidas por eles e como são tratadas”, disse Eliseth à Agência FAPESP. “Decidimos mapear o perfil de dor, da experiência dolorosa dos indígenas, e também identificar que tipo de terapia eles utilizam para aliviá-la.”

Durante 23 dias, entre junho e julho de 2017, Eliseth e Elaine visitaram as tribos matis, kanamary e marubo no Vale do Javari, na divisa do Brasil com Peru e Colômbia, a 1,1 mil quilômetros de Manaus, capital do Amazonas.

Para chegar à região, que apresenta a maior densidade de povos indígenas isolados no mundo, foi preciso viajar de barco até a primeira aldeia, dos matis, carregado com tanques de gasolina suficientes para garantir o abastecimento na ida e na volta, e sob medo constante da possibilidade de o combustível ser saqueado. Tempo semelhante de navegação foi despendido para o acesso à aldeia kanamary.

Por meio de intérpretes, Elaine e Eliseth entrevistaram 45 índios das três etnias, com perguntas do tipo de que forma sentiam dor, se era forte, moderada ou fraca e onde doía, além de fatores que contribuíam para a piora ou a melhora.

Para surpresa das cientistas, no momento da entrevista 77,8% dos índios afirmaram que estavam sentindo dor, principalmente músculo-esquelética (73,2%), localizada nos membros inferiores (46,6%), coluna (37,9%), articulações (35,5%), membros superiores (33,3%) e no abdome (24,4%).

Em relação à intensidade da dor, as respostas ficaram divididas. Enquanto 37,8% dos 45 participantes da pesquisa declararam sentir dores fortes, outros 33,3% alegaram intensidade fraca. Outros 26,7% não souberam responder à pergunta.

“Observamos que a dor entre os indígenas é bastante prevalente e está muito relacionada ao estilo de vida. Os índios das três etnias trabalham diariamente em roçados, saem para caçar e carregam muito peso, como toras de madeira, por longas distâncias. Isso faz uma sobrecarga no sistema músculo-esquelético e desencadeia esse tipo de dor neles, que é muito semelhante à dos trabalhadores rurais”, disse Eliseth.

 Vencer a dor

As pesquisadoras também avaliaram a “qualidade” da dor dos índios das três etnias ao pedir que expressassem espontaneamente como era a sua dor, uma vez que não existem questionários validados para utilização junto a essa população.

Segundo Eliseth, o Questionário de Dor de McGill – um instrumento desenvolvido pela McGill University, do Canadá, que analisa as várias dimensões da dor por meio de 72 descritores sensitivos, afetivos e cognitivos, com o intuito de mensurar a experiência dolorosa – é complexo e, às vezes, de difícil compreensão.

As palavras espontâneas usadas pelos índios para expressar a experiência da dor, entretanto, foram muito semelhantes às existentes no questionário desenvolvido pela universidade canadense para avaliar a dor em pacientes em hospitais, por exemplo. Os indígenas, porém, só usaram descritores sensitivos para descrever a experiência dolorosa, como pontada e queimação.

“Constatamos que os índios não expressam muito a experiência da dor pelo lado emocional, como fazemos, em que em algumas situações avaliamos a dor como desesperadora, por exemplo. Eles não reclamam da dor”, disse Eliseth.

Ao pedir para as mulheres relatarem dores pregressas, por exemplo, nenhuma delas, das três etnias, fez referência à dor do parto. “Isso mostra que a dor para elas faz parte de um processo natural, não é vista como anormalidade”, avaliou.

Uma das hipóteses para explicar a resistência dos índios à expressão emocional da experiência dolorosa está relacionada aos aspectos culturais, que interferem no limiar da dor. Como são submetidos desde a infância a aprender a vencer a dor e passam por uma série de rituais dolorosos ao longo da vida, como o da tucandeira, isso faz com que tenham um maior limiar de dor e contenham a expressão emocional da experiência dolorosa.

Outra hipótese é a de que, como vivem em um sistema econômico de subsistência, não adianta reclamar da dor em um dia uma vez que no seguinte precisarão voltar para o roçado, caçar e garantir o alimento para sobreviver.

“A sobrevivência deles e da aldeia onde vivem depende de atividades que podem provocar dor, como caçar, trabalhar no roçado e carregar muito peso. Isso faz com que acabem se adaptando a esses quadros dolorosos e tenham que conviver com a dor para poder sobreviver”, disse Eliseth.

 Formas de tratamento

A resistência dos índios à expressão emocional da experiência dolorosa não significa que a dor não tenha impacto na qualidade de vida, ponderou a pesquisadora. Mais de 60% dos entrevistados disseram que a dor interfere no sono e nas atividades diárias deles e mais de 50% afirmaram que afeta seus relacionamentos. “Quando a dor se manifesta, às vezes eles se recolhem naquele dia, não vão trabalhar, e alguns falam que ficam tristes”, disse Eliseth.

Para tratar a dor, 86,7% dos índios entrevistados disseram que recorrem à medicina convencional – ou os “remédios do branco”, como anti-inflamatórios não hormonais, relaxantes musculares e corticoides – e 80% contam com a ajuda da medicina tradicional indígena como o “remédio do mato”, feito de acordo com as tradições de cada tribo com ervas e outros extratos vegetais.

Os “medicamentos do branco”, porém, foram apontados como fator de melhora da dor por apenas 22,2% dos indígenas. Já o “remédio do índio”, que envolve benzimento, pajelança, banhos, rezas, veneno de sapo, picadas de formiga, cantos e fumaça, foi apontado como fator de alívio da dor por 64,4% dos entrevistados, seguido pelo “remédio do mato”, feito a partir de extratos de plantas (60%).

“Imaginávamos que eles tomavam muito mais medicação por via oral, como infusões de ervas, e vimos que, na realidade, eles utilizam muito emplastro, como uma resina de breu-branco [Protium heptaphyllum] misturada com urucum [Bixa orellana]”, disse Eliseth.

As pesquisadoras também entrevistaram 36 funcionários do Distrito Sanitário Especial Indígena – órgão do governo federal ligado ao Sistema Único de Saúde–, que prestam atendimento às três tribos na Amazônia para avaliar como os agentes de saúde lidam com a dor dessas populações. No total, 73% deles disseram que não investigam a dor dos índios durante o atendimento.

Do total de 45 índios das três etnias que foram entrevistados, 37% relataram automedicação com os remédios usados na medicina convencional, como os anti-inflamatórios não hormonais. “Isso provavelmente se deve ao fato de não ter um profissional de saúde com formação apropriada para avaliar a dor deles adequadamente”, disse Eliseth.

Com base nas constatações do estudo, as autoras elaboraram uma cartilha com informações e recomendações para o manejo da dor, que incluem conceitos da medicina convencional e as práticas culturais da medicina tradicional indígena, para facilitar o diálogo entre profissionais de saúde e indígenas.

“A cartilha será traduzida para as línguas das três etnias e distribuída para os profissionais dos Distritos Sanitários Especiais Indígenas e as lideranças indígenas”, disse Eliseth.

*Texto por Elton Alisson, da Agência Fapesp

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